A TV no Mudo

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A TV no Mudo

Manhã cinzenta na sala da Capadócia. Neblina canábica sobre picos nevados. Lá pelas tantas, Djair diz para Kebab:

– Eu precisava falar com você, um negócio.

– Que negócio? – quis saber Kebab.

– Mas não se ofenda, ok? Eu sei que você sempre se ofende…

– Eu nunca me ofendo.

– E sempre que você se ofende, fica foda, e a gente termina discutindo a própria discussão, e enfim, não é isso, mas não se ofenda, certo? – não era um costume conversarem olhando um no olho do outro. O costume era ficarem sentados em seus respectivos lugares olhando para o teto.

– Quando foi que me ofendi? – perguntou Kebab.

– Não importa, não é sobre isso…

– Porque se você falou pra eu não me ofender, deve estar esperando que eu faça isso.

– Ã? – realmente não havia entendido, assim como também Kebab não entendeu o “Ã?” do amigo e imaginou que aquilo significasse algo como: “não seja idiota, parça”.

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A Era das Apontações de Dedo

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A Era das Apontações de Dedo

Está vendo aquela ribanceira ali? Bem no meio do gráfico? Foi ali que nascemos, nas encostas de um buraco, uma curva demográfica que nunca vai descer. Nunca vai descer. Até chegar à lua, e daí galgar escalas mais astronômicas. O Papa Francisco é um bundão em não convocar os cristãos para a Guerra Santa contra os muçulmanos. Quem impede? Um amigo me disse que o Papa, sabendo ser o último cristão, deverá manter a humildade, como é recomendado que o façamos em tempos apocalípticos. Novos eões, mais complicados, nos aguardam. Uma era em que se possa queimar livros à vontade, sem que se sinta a falta deles.

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Vaticínios

RWS_Tarot_05_Hierophant – Há boatos bem convincentes que dizem que as últimas palavras do rei Mitradates II, do Império Arsácida, foram: “Os tigres já estão alimentados?”.

– Até 2020, cientistas japoneses prometem ter dominado a engenharia genética a ponto de conseguirem produzir em laboratório um cão que emite sinal de wi-fi. A rede não deverá ter senha.

– Brodowski, terra de Portinari, no início do século XX, era bem mais perigosa do que qualquer cidadezinha do velho Oeste americano.

– Polvos representam 11% dos animais abduzidos por alienígenas.

– A atividade da usina hidrelétrica Três Gargantas, construída na China, retardou a rotação da Terra.

– Cientistas da Universidade da Califórnia suspeitam que alguns odores sejam capazes de viajar através do espaço-tempo.

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Arte e Ciência

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O ‘Demoiselle’ e a ‘Ceia’

A verdade é que quando a gente vê a locomotiva “Baronesa” ou o avião “Demoiselle” de Santos Dumont (produções recentíssimas da ciência aplicada) tem vontade de rir. São objetos ridículos. A ternura que nos possam infundir vem de pensarmos que homens já confiaram (como Santos Dumont) suas vidas a uma coisa tão precária. Além disto, só há ridículo quando comparamos o “Demoiselle” a um “Constellation”.

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Estamos por aí

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Estamos Por Aí

– Pois saiba que esse é meu direito. É minha opinião.

Mas será que é tua mesmo?

– Bandido bom…

– Não! Nem precisa terminar! Bandido bom… eu nem quero saber!

– Deixa ele terminar, porra, e se rolasse um plottwist no meio da frase?

Não preciso terminar porque vocês já sabem, mas fingem que não querem saber.

– Por que eu iria fingir ter uma opinião que não tenho?

Eu faço isso o tempo todo. Dá licença?

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8 de Março

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Katherine, a rendeira mulher amante

“Nasceu em meados do século quinze, na rua de la Parcheminerie, próxima à rua Saint-Jacques, num inverno em que fez tanto frio que os lobos correram em Paris sobre a neve. Recolheu-a uma velha mulher, de nariz vermelho sob o capuz, que a criou. E de início ela brincou sob os pórticos com Perrenette, Guillemette, Ysabeau e Jehanneton, que usavam pequenas cotas e mergulhavam nas valetas as mãozinhas vermelhas para pegar pedaços de gelo. Também observavam os que lesavam os transeuntes no jogo de tabuleiro chamado Saint-Merry. E, nos alpendres, espiavam as tripas dentro das selhas, e as compridas salsichas balançantes e os enormes ganchos de ferro em que os açougueiros penduram a carne. Nas proximidades de Saint-Benoît le Bétourné¹, onde ficavam os scriptorium, escutavam o ranger das penas, e ao entardecer, pelas frestas dos ateliês, sopravam as candeias na cara dos clérigos. Na Ponte Pequena, escarneciam das peixeiras e escapuliam ligeiro para a praça Maubert, escondiam-se nas esquinas da rua de Trois-Portes; então, sentadas à beira da fonte, tagarelavam até as brumas da noite.

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Na Arena do Templo

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Denuncie-se o exército da fé. Os Gladiadores do Altar me fazem pensar que talvez não haja nenhum inimigo mais admirável e mais justo do que aquele que encontra na fé a motivação para a guerra. No caso, um tipo de monoteísmo muito bem representado pelos seus líderes expansionistas. Gladiadores, do primeiro ao terceiro milênio, são soldados que lutam entre si, dentro de arenas, para a diversão do público. Tendo fé, terão fé em seus líderes? Seguirão ordens?

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A guerra nas sociedades selvagens

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“Foi o descobrimento da América que, como se sabe, forneceu ao Ocidente a ocasião de seu primeiro encontro com aqueles que, desde então, seriam chamados de selvagens. Pela primeira vez os europeus viram-se confrontados com um tipo de sociedade radicalmente diferente de tudo o que até então conheciam, precisaram pensar uma realidade social que não podia ter lugar em sua representação tradicional do ser social: em outras palavras, o mundo dos selvagens era literalmente impensável para o pensamento europeu. Aqui não é o lugar de analisar em detalhe as razões dessa verdadeira impossibilidade epistemológica: elas se relacionam à certeza, coextensiva a toda a história da civilização ocidental, sobre o que é e o que deve ser a sociedade humana, certeza expressa desde a aurora grega do pensamento europeu do político, da polis, na obra fragmentária de Heráclito. A saber, que a representação da sociedade como tal deve encarnar-se na figura do Um exterior à sociedade, na disposição hierárquica do espaço político, na função de comando do chefe, do rei ou do déspota: só há sociedade sob o signo de sua divisão em Senhores e Súditos. Resulta dessa visão do social que um grupo humano que não apresente o caráter da divisão não pode ser considerado uma sociedade. Ora, quem é que os descobridores do Novo Mundo viram surgir nas praias atlânticas? “Gente sem fé, sem lei, sem rei”, segundo os cronistas do século XVI. A causa era assim entendida: esses homens no estado de natureza não haviam ainda chegado ao estado de sociedade. Quase unanimidade, perturbada apenas pelas vozes discordantes de Montaigne e La Boétie, nesse julgamento sobre os índios do Brasil.

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Os futuros pretéritos

Faz sentido medir a qualidade de uma obra de ficção a partir da quantidade de previsões “acertadas” que seu autor fez em relação ao futuro? Acho que se 1984 ou Admirável Mundo Novo possuem alguma qualidade, ela certamente não se destaca de sua forma literária.

Acho que toda obra destinada a falar do futuro, por mais trágico ou belo que ele seja, acaba produzindo visões maravilhosas. O mundo improvável que entrou na obra, que ali no texto se viu traduzido traduzido, e ninguém, autor ou profeta, previu nenhum futuro que já não estivesse se anunciando no presente em que ele foi visto ou antecipado.

Os germes, os desdobramentos de certas ideias que ecoam e que vão acrescentando acentuações ou grafias diferentes em cada pronúncia, muita literatura é feita simplesmente disso. A ninguém cabe o monopólio deste ofício – quantos mundos irrealizáveis o próprio mundo real produz? Da genialidade convém dizer que não há nenhum atributo mais execrável, e  dentre os seus adoradores destacam-se aqueles que outorgam aos seus gênios dotes mais ou menos proféticos – até mesmo a ideia de que estariam eles “à frente de seus tempos”.

Acho que os cabalistas teriam algo a dizer sobre isso, sobre a necessidade das coisas absolutas se adequarem ao tempo terrestre: o mundo não permite vestimentas inadequadas. Se o tempo é uma ilusão, não há futuro a ser previsto, posto que não há uma sequência plausível de eventos. Tudo já está, infinitamente estendido por sobre uma eternidade feita de instantes coincidentes.

Mas de que serve pensar assim?

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Crates, O Cínico

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“Nasceu em Tebas, foi discípulo de Diógenes e também conheceu Alexandre. Seu pai, Ascondas, era rico e deixou-lhe duzentos talentos. Certo dia, ao assistir uma tragédia de Eurípedes, sentiu-se inspirado com a aparição de Télefo, rei da Mísia, vestindo molambos de mendigo e carregando uma cesta na mão. Levantou-se no teatro e anunciou com voz forte que distribuiria a quem quisesse os duzentos talentos de sua herança, e que doravante lhe bastariam as roupas de Télefo. Os tebanos puseram-se a rir e se amontoaram em frente à sua casa; ele, contudo, ria mais do que eles. Jogou-lhes seu dinheiro e seus móveis pelas janelas, apanhou um manto de linho e um alforje, e então se foi.

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