a necessidade de narrar os sonhos

A literatura que recorre ao sonho enquanto matéria-prima ou fonte para a elaboração de narrativas é abundante, farta.

O livro que tenho em mãos é o diário de sonhos de Georges Perec, La boutique obscure, traduzido para o espanhol (porque o livro não existe em português) como La cámara oscura [Editora Impedimenta, 2010; tradução de Mercedes Cebrián].

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quando nos reunimos para ouvir o bardo

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Bem afortunados aqueles que tiveram a chance de se emocionar, de perder os olhos e os pensamentos nas miragens de jardins distantes, enquanto viam e ouviam um bardo dedilhar na frente deles as suas canções mais memoráveis.

Que as apresentações musicais tenham sempre sido uma forma de espetáculo, isso é óbvio, e que, com o avanço inadiável da indústria cultural e da consequente cooptação de quaisquer ambições ou gozos estéticos à ordem da mercadoria programada para seus espaços específicos, sabemos, ninguém tem quaisquer dúvidas. Mas encontrar, no auge de sua consolidação, um vídeo tão singelo, tão absoluto na maneira com que perpetua o clímax afetivo que somente a escuta musical dentro de um espaço doméstico pode permitir, é, no mínimo do mínimo, inspirador. Radicalmente inspirador.

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o dia do exame

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O dia do exame

Paralelo 20º 32º 20 sul.

Meridiano 47º 24º 03º oeste.

Terça-feira, 24º, tempo parcialmente nublado.

Hora local 0800

Umidade Alta: 33%.

O cruzamento defronte ao CIRETRAN amanhece preenchido pelos veículos das 68 autoescolas do município. Apoiados às grades, com os pés nos muros, os braços cruzados, um clima perfunctório no humor da maior parte dos candidatos que discutem entre si os macetes da prova da baliza. Os carros populares rebatizados com os nomes de cada companhia, cada um em uma grafia própria – Central; Metrópole; Bom Jesus; Líder; Modelo; Nova; Dois Irmãos; o gentílico do nome da cidade ou do Estado – pastam bovinamente o asfalto das vagas ao redor do quarteirão.

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o tio que foi à guerra

robert knox sneden

Depois de tanto insistirem pra que o tio lhes contasse da campanha da Itália, as crianças conseguiram tirá-lo de sua mudez casmurra, e dali, de sua cadeira de balanço, o que as crianças ouviram foi um discurso que jamais esperariam ouvir do tio, posto que quase nunca o ouviram falar tão depressa e com tanto volume:

– Meninos, se querem saber, eu conto, eu respondo, mas com a condição de que se faça silêncio. Querem saber como é ir à guerra? Pensem em duas coisas que, provavelmente, qualquer um de vocês já deve ter vivido. Coisas da infância. Comecem esquecendo os filmes, as explosões, os mocinhos e os bandidos. Não precisam de nada disso pra imaginar como é a guerra. Para quem esse destino terrível não se imponha, espero que nenhum de vocês, moleques, tenha de ir à guerra, é bem possível de imaginarem como é o conflito, a sensação terrível do front, sem terem até mesmo estado lá. As sensações que sentimos num lugar desses é só uma forma mais avançada de certos medos e temores que já sentimos na infância. Quero que se concentrem em duas sensações que todos vocês já devem ter sentido. A primeira é semelhante a certos momentos que experimentamos também em brincadeiras de esconde-esconde. Sabe, aquele segundo em que estamos escondidinhos, atrás da janela, ou atrás do arbusto, de uma pilastra, na sombra, aquele preciso instante em que estamos escondidos e nos acomete uma vontade repentina de dar uma mijada? Talvez seja o risco de sermos descobertos, não há quem não tenha sentido isso, pelo menos por uns dez segundos quando foi criança, quando brincou de esconde-esconde, principalmente pentelhos como vocês, que ficam na rua dia e noite¹. Agora imagine essa sensação triplicada, exagerada até o grau mais agudo, essa ânsia de mijar, de dar aquela urinada, mais ou menos como quando você, meninos, ficam segurando a vontade durante o futebol inteiro, as pernas contraídas, antes de voltarem pro intervalo da aula e depois se refestelarem no mictório do banheiro, pensem nessa sensação de dar essa mijada escandalosa como se fosse algo permanente, algo que não vai embora, e que persiste durante toda batalha. Ela dura tanto tempo que você se acostuma com ela, e quando vai mijar de novo, quando vai mijar de verdade, fica parado um tempão na frente da privada, sem saber se tem mesmo algo querendo sair dali ou não. E pode acontecer até de a vontade continuar com você, mesmo depois de ter esvaziado a bexiga. Conseguem imaginar algo assim? Talvez outros tenham desfrutado a guerra de maneira mais relaxada ou prazerosa do eu, porque a guerra em que lutei, fazendo o que eu fazia… Pra alguns deve ter sido divertido, eu não duvido! E olha, nunca me chamaram de covarde. Nada disso está em jogo. Nada a ver com covardia, bravura. É tão raro alguém encontrar alguma oportunidade que seja pra provar o próprio valor… Qualquer um pode ganhar ou perder medalhas! E se essas sensações não falharam comigo, que era um soldado, eu não quero nem saber como é que deve ser com os que estão desarmados, as pessoas comuns, as que chegam a abandonar o próprio país. Pois bem, como eu dizia! A segunda sensação crianças, como eu dizia!, também deve ter já acontecido com alguns de vocês. Isso é importante. Todos devem se lembrar. Envolve você, qualquer um, menino, menina, você, a sua família, e um supermercado, ou uma feira, que seja, a festa junina, e envolve você perder-se deles. É sempre por um breve momento até que se resolva, mas a duração é o bastante para que se cogite o fato de que nos perderemos para sempre, porque há evidências, não há? Todos sempre ouvimos falar de crianças que são sequestradas e que são separadas para sempre de seus pais. Imagine que entre os soldados que lutam juntos há algum tempo, todos são a família de todos. Então é mais ou menos como quando vamos aos lugares grandes, shows, carnavais, por exemplo, e ficamos preocupados de as pessoas não irem muito longe e se perderem, porque na guerra, se elas se perderem, elas nunca voltam, os da nossa família.

1. – Esse diálogo aconteceu em 1982, o que explica que as crianças ainda brincassem na rua, e não com os seus tablets e videogames em apartamentos cinzentos.


Imagem: Robert Knox Sneden