o que é uma pergunta?

O que é uma pergunta?

Acho que essa questão, inicialmente, poderia ser desdobrada em diferentes níveis. Certamente poderíamos desdobrá-la num nível linguístico-gramatical, e talvez também num nível neurológico. Mas minha abordagem aqui é outra, mais próxima da filosofia e da metafísica.

Dito de outra forma, o que é que a consciência precisa ter diante de si para que possa formular uma pergunta?

Para que a questão possa ser situada, colocada de uma tal forma, talvez seja necessário arriscar uma breve definição de consciência. Mas existirá um desafio filosófico mais difícil que este? Talvez ambas as questões estejam interrelacionadas, e quando encontrarmos respostas para uma, encontraremos respostas para outra.

Que assim seja: a consciência é um fenômeno perceptivo. Não precisamos ir além diso; não precisamos afirmar que ela está alocada no cérebro, nem que ela é uma faculdade da alma. Podemos estendê-la à realidade psicofísica de outros reinos, dos animais e até das plantas. Teremos de diferenciar mente e consciência? Talvez a mente seja o seu estado transitivo, ao passo que a consciência é o terminal que garante tanto a percepção quanto outras capacidades, como memória e ação.

E em qual destas instâncias se encontra a capacidade para formular perguntas? Neurocientistas, apoiados em um paradigma materialista, dirão que esta capacidade está situada num lugar específico do cérebro. Seguindo um exercício filosófico mais arriscado, e subscrevendo a uma perspectiva bergsoniana, alguém poderia dizer que, pelo contrário, é porque a capacidade de formular perguntas se apresenta como uma faculdade necessária para a aventura da consciência, a natureza ampliou essa capacidade na medida em que a articulou a certos ganhos vitais – escolha e liberdade.

Pensando em termos gramaticais: quais tipo de perguntas exitem? Identificamos dois: perguntas abertas e perguntas fechadas. No primeiro caso: “qual é o seu nome?” – não temos um grupo definido de respostas. No segundo caso: “furar fila é certo ou errado”? – aqui há apenas das respostas possíveis.

Quais experiências produzem na consciência a necessidade de formular perguntas? Os seres humanos são os únicos seres capazes de formular perguntas? Perguntas dependem de uma linguagem verbal para serem formuladas? Qualquer um que já teve um cachorro como animal de estimação e o viu inclinar a cabeça diante de alguma situação, sabe que aquela reação corporal comporta uma dúvida. Nos vídeos em que pessoas fazem mágicas para macacos, a sua reação de espanto e riso também guarda consigo algum tipo de dúvida, que se expressa fisicamente de forma espontânea.

A pergunta, portanto, é a expressão verbal de uma dúvida, por sua vez provocada por algum tipo de descontinuidade e quebra de expectativa. Pensemos nas experiências mais primitivas que produziram estas dúvidas, também disponíveis para outros animais além do ser humano: “aqui onde deveria haver um objeto, não há mais nada, então para onde ele foi”? “Que barulho é este que eu não conheço”? “Que movimento imprevisível este corpo anda a percorrer”? Tudo isso depende de linguagem e gramática para se realizar, mas desconfio que estas questões já estejam de colocada de forma muito simples e um tanto intuitiva para alguns seres que não dispoẽm de linguagem verbal. A descontinuidade dos dados sensoriais produz um intervalo na consciência que instaura uma dúvida – e a dúvida é experimentada como um estado diferente para a consciência.

A capacidade para estabelecer relações de causa e efeito, portanto, fundamental para o desenvolvimento do intelecto racional, não parece ser algo exclusivo da humanidade, e talvez seja justamente no interior da descoberta destas relações que se produzam as primeiras dúvidas – posteriormente expandidas em direções praticamente infinitas. Talvez este caminho aberto há tanto tempo pela natureza, e avidamente seguido e expandido pelos seres humanos, seja o que caracterize a especificidade de sua profundidade cultural e social perante os outros animais.

Gadamer, ampliando sugestões já colocadas pelo segundo Wittgenstein, teceu palavras bastante cuidadosas a respeito da pergunta no interior do paradigma hermenêutico. É certo que para ele a pergunta toma a dianteira na condução dos problemas próprios a este paradigma, mas, dizendo de forma um tanto óbvia, claro está que “para perguntar é preciso querer saber”. E, pois, por que alguém quer saber de alguma coisa? A demanda mais imediata diz respeito a uma questão de sobrevivência. Somente em realidades muito posteriores a coisa adquire uma gradação própria a um novo campo da vida humana, que é o campo do conhecimento. Nesta dimensão, a colocação da pergunta depende de sua própria delimitação. Parece-nos, aliás, que o esboço de perguntas que progressivamente vão melhor se desenhando com a ajuda dos intrumentais linguísticos que inventamos e colocamos à sua disposição, contribui para a delimitação que finalmente constitui o campo científico. A pergunta é o impulso que tomamos na direção do desconhecido, algo que media o saber e o não-saber. Só pode formular uma pergunta, afinal, alguém que sabe que não sabe. Toda pergunta, de fato, tem um “sentido de orientação” e, ao fim e ao cabo, “perguntar é mais difícil do que responder”.

Disse Wittgenstein, na nota 24 de suas Invetigações Filosóficas: “Quem não tiver diante dos olhos a multiplicidade dos jogos de linguagem estará talvez inclinado a perguntas como esta: ‘o que é uma pergunta?’. – será ela a constatação de que eu não sei isso e aqulo, ou a constatação de que eu desejo que alguém pudesse me dizer…? Ou será ela a descrição do meu estado anímico de incerteza?

Quantas outras perguntas a consciência precisou elaborar, por exemplo, antes que pudesse perguntar a si mesma o que é uma pergunta?

Deixe um comentário