A guerra nas sociedades selvagens

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“Foi o descobrimento da América que, como se sabe, forneceu ao Ocidente a ocasião de seu primeiro encontro com aqueles que, desde então, seriam chamados de selvagens. Pela primeira vez os europeus viram-se confrontados com um tipo de sociedade radicalmente diferente de tudo o que até então conheciam, precisaram pensar uma realidade social que não podia ter lugar em sua representação tradicional do ser social: em outras palavras, o mundo dos selvagens era literalmente impensável para o pensamento europeu. Aqui não é o lugar de analisar em detalhe as razões dessa verdadeira impossibilidade epistemológica: elas se relacionam à certeza, coextensiva a toda a história da civilização ocidental, sobre o que é e o que deve ser a sociedade humana, certeza expressa desde a aurora grega do pensamento europeu do político, da polis, na obra fragmentária de Heráclito. A saber, que a representação da sociedade como tal deve encarnar-se na figura do Um exterior à sociedade, na disposição hierárquica do espaço político, na função de comando do chefe, do rei ou do déspota: só há sociedade sob o signo de sua divisão em Senhores e Súditos. Resulta dessa visão do social que um grupo humano que não apresente o caráter da divisão não pode ser considerado uma sociedade. Ora, quem é que os descobridores do Novo Mundo viram surgir nas praias atlânticas? “Gente sem fé, sem lei, sem rei”, segundo os cronistas do século XVI. A causa era assim entendida: esses homens no estado de natureza não haviam ainda chegado ao estado de sociedade. Quase unanimidade, perturbada apenas pelas vozes discordantes de Montaigne e La Boétie, nesse julgamento sobre os índios do Brasil.

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Os futuros pretéritos

Faz sentido medir a qualidade de uma obra de ficção a partir da quantidade de previsões “acertadas” que seu autor fez em relação ao futuro? Acho que se 1984 ou Admirável Mundo Novo possuem alguma qualidade, ela certamente não se destaca de sua forma literária.

Acho que toda obra destinada a falar do futuro, por mais trágico ou belo que ele seja, acaba produzindo visões maravilhosas. O mundo improvável que entrou na obra, que ali no texto se viu traduzido traduzido, e ninguém, autor ou profeta, previu nenhum futuro que já não estivesse se anunciando no presente em que ele foi visto ou antecipado.

Os germes, os desdobramentos de certas ideias que ecoam e que vão acrescentando acentuações ou grafias diferentes em cada pronúncia, muita literatura é feita simplesmente disso. A ninguém cabe o monopólio deste ofício – quantos mundos irrealizáveis o próprio mundo real produz? Da genialidade convém dizer que não há nenhum atributo mais execrável, e  dentre os seus adoradores destacam-se aqueles que outorgam aos seus gênios dotes mais ou menos proféticos – até mesmo a ideia de que estariam eles “à frente de seus tempos”.

Acho que os cabalistas teriam algo a dizer sobre isso, sobre a necessidade das coisas absolutas se adequarem ao tempo terrestre: o mundo não permite vestimentas inadequadas. Se o tempo é uma ilusão, não há futuro a ser previsto, posto que não há uma sequência plausível de eventos. Tudo já está, infinitamente estendido por sobre uma eternidade feita de instantes coincidentes.

Mas de que serve pensar assim?

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