maneiras curiosas de ir à guerra

As guerreiras bafudas

O aventureiro e explorador espanhol Francisco de Orellana é o responsável pela primeira menção às amazonas feita em terras do Novo Mundo, no início do século XVI. A lenda das mulheres guerreiras conhecidas por tal nome remete a um repertório de conteúdo clássico, mas a sua ocorrência não se limita apenas à Europa ou ao mundo helênico. As amazonas citadas pelo grego Heródoto habitavam em algum lugar próximo ao reino dos sármatas, na costa do Mar Negro. Para Orellana, as amazonas sul-americanas habitariam algum lugar da densa floresta tropical, hoje bem próximo às Guianas.

Em sua viagem, que atravessou todo o Rio Amazonas, não há nenhuma menção às guerreiras bafudas que aparecem nas lendas mati – distantes de Orellana tanto no tempo como no espaço, uma vez que seu reino estaria mais próximo do Peru, no Vale do Javari, no Alto Solimões, e suas histórias remetam a acontecimentos mais recentes.

Os contadores de histórias da tribo dos mati oferecem uma imagem bastante exótica dessas guerreiras, tanto medo e terror elas levaram aos seus inimigos, brancos ou até mesmo outros índios. Diferentemente de suas parentes históricas, que, pelo que contam, tinham o hábito de arrancar o seio esquerdo para facilitar o manejo do arco, as guerreiras bafudas (é assim que os mati as chamam em seu idioma) não faziam uso de qualquer tipo de arma que não fosse o tacape.

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versões indígenas

É considerável a quantidade de visões e lendas que envolvam a perspectiva de uma “queda”. Antes que se pense no Arcano da Torre, falamos aqui de uma situação cosmogônica – a origem da nossa existência, sulcada numa divisão dualista da natureza e do universo.

Pensemos no mito edênico: a queda de Adão e Eva, de um estado paradisíaco original onde não se distinguiam dos animais, para um mundo mais abaixo, marcado pelo trabalho, pela vergonha e pelo abandono. Adão e Eva, diferenciados  dos animais e da natureza, e, cientes do grau de sua condenação – dotados de uma linguagem verbal, e de uma certa noção de si mesmos. Curiosidade, conhecimento.

A situação do mito edênico é um momento arquetípico daquilo que chamamos de “dualismo” – a ideia de que o universo possui uma natureza dupla, uma parte divina, sagrada e absoluta, e a outra parte profana, sublunar, e que nós, humanos perdidos aqui na Terra, habitamos a sua contraparte mundana não-divina, ou seja: mundana.

Essa divisão postula uma diferença de linguagem entre ambas as instâncias: a parte divina é absoluta. Nela, a palavra já vem acompanhada com o seu sentido. No mundo mais abaixo tudo é temporário e marcado pelo signo da relatividade. As palavras são apenas palavras.

Existem outros dualismos filosóficos e religiosos com elaborações mitopoéticas e estéticas realmente ricas. Na Índia ou na Grécia, veremos estas noções se desenvolverem a partir da atividade e do debate de várias escolas filosóficas. Os debates requalificam os termos, e às vezes abrem-se para novas concepções – o monismo, do qual o Advaita Vedanta é um exemplo perfeito.

Ao lado de quais perspectivas dualistas e monistas as noções cosmogônicas indígenas podem ser colocadas? Pensemos no perspectivismo ameríndio e na contribuição que as visões indígenas teriam para o mito edênico. Ora, o perspectivismo ameríndio nada mais é que a generalização teórica do processo de produção do ponto de vista dentro de sociedades selvagens como os araweté, yanomami e juruna. Aqui, a Queda não é protagonizada pelo Homem, mas pelos animais. Em outras palavras: quem se diferiu da humanidade foram os animais, os quais ainda convivem de acordo com uma humanidade própria, camuflada por sua roupagem animal.

Como exemplo do primeiro caso, contudo, penso no mito dos marubo, bem representado pelo título do livro em que o encontrei, “Quando a Terra deixou de falar”, de Pedro de Niemeyer Cesarino [Editora 34; 2013].

Segundo os marubo, o mundo teria passado por um processo de silenciamento, ocasionado pelo povo sol (Vari Nawavo) como punição para o comportamento sexual dos antigos. Em outro episódio, o silenciamento é resultado do feitiço de Kana Voã, um herói de suas narrativas, que decide silenciar o Céu, que, através de seus trovões, estaria cobiçando os habitantes da Terra daqui abaixo. A concepção que os marubo possuem dos espíritos, das formas da natureza, e da atuação do demiurgo que as criou é suficientemente complexa pra que eu não tente resumi-las aqui, mas o depoimento do xamã Armando Mariano é bastante curioso. Transcrevo:

As colinas de terra falavam…

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A guerra nas sociedades selvagens

Cave_paintings

“Foi o descobrimento da América que, como se sabe, forneceu ao Ocidente a ocasião de seu primeiro encontro com aqueles que, desde então, seriam chamados de selvagens. Pela primeira vez os europeus viram-se confrontados com um tipo de sociedade radicalmente diferente de tudo o que até então conheciam, precisaram pensar uma realidade social que não podia ter lugar em sua representação tradicional do ser social: em outras palavras, o mundo dos selvagens era literalmente impensável para o pensamento europeu. Aqui não é o lugar de analisar em detalhe as razões dessa verdadeira impossibilidade epistemológica: elas se relacionam à certeza, coextensiva a toda a história da civilização ocidental, sobre o que é e o que deve ser a sociedade humana, certeza expressa desde a aurora grega do pensamento europeu do político, da polis, na obra fragmentária de Heráclito. A saber, que a representação da sociedade como tal deve encarnar-se na figura do Um exterior à sociedade, na disposição hierárquica do espaço político, na função de comando do chefe, do rei ou do déspota: só há sociedade sob o signo de sua divisão em Senhores e Súditos. Resulta dessa visão do social que um grupo humano que não apresente o caráter da divisão não pode ser considerado uma sociedade. Ora, quem é que os descobridores do Novo Mundo viram surgir nas praias atlânticas? “Gente sem fé, sem lei, sem rei”, segundo os cronistas do século XVI. A causa era assim entendida: esses homens no estado de natureza não haviam ainda chegado ao estado de sociedade. Quase unanimidade, perturbada apenas pelas vozes discordantes de Montaigne e La Boétie, nesse julgamento sobre os índios do Brasil.

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