o deus-verme e o impítima

Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome obscuro de batismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em conturbérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão…

Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

Augusto dos Anjos

Preparando-se para a maratona televisiva, Maykon, vestido com a usual bermuda de depois do almoço, começa a expelir pelo bóga os primeiros gases que a feijoada de hoje vem forjando desde a ingestão, nos lençóis freáticos do cuecão.

O controle remoto numa mão e o baseado na outra e o isqueiro na outra, pois que Maykon é um marmanjo com três mãos, ele prolonga um suspiro cansado, de dever cumprido. Sem contestar qualquer arroto, uma sacolejada saborosa, como que couve com farofa, sobe-lhe à garganta só pra ser mandada de volta pelo esôfago.

Há uma maratona televisiva pela frente. Um programa sem intervalos nem comerciais. Sem cortes, com a prometida duração de, pelo menos, oito horas. Sem replays, nem narradores obsoletos. Sem comentaristas folgados, nem ex-atletas sendo salvos do ostracismo.

Maykon acompanha, em tempo real, os comentários e as piadas que seus amigos soltam pela rede e compartilham pela rede. 

Maykon acredita que está se divertindo muito mais que todos eles. Acredita que está diante do entretenimento mais prenhe de sentido em toda a História do Brasil (com H e B maiúsculos).

Mais do que a Copa do Mundo de futebol de 1970, por exemplo.

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A Larica de Outros Tempos

 

Excertos de uma memória apresentada pelo Dr. Rodrigues Dória ao Segundo Congresso Científico Pan-Americano, reunido em Washington D.C, a 27 de dezembro de 1915, intitulada Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício:

“O uso do cânhamo é muito antigo. Heródoto fala da embriaguez dos citas que respiravam e bebiam a decocção dos grãos verdes do cânhamo. No livro de Botânica do dr. J. M. Caminhoá, que foi professor desta matéria na Faculdade de medicina do Rio de Janeiro, lê-se que o famoso ‘remédio das mulheres’ de Dióspolis, bem como o nepente de que fala Homero, e que Helena recebera de Polimnésio, era a Cannabis indica. Os cruzados viram os efeitos nos muçulmanos. Marco Polo observou nas cortes orientais entre emires e os sultões. É muito usado no vale do Tigre e Eufrates, nas Índias, na Pérsia, no Turquestão, na Ásia Menor, no Egito e em todo o litoral africano. Com cânhamo se prepara o haxixe, como já foi dito, e ainda pouco conhecido na sua manipulação; o povo do Oriente fuma o pó das folhas e flores no narguilé.”

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O que fazer com os restos?

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AVISO IMPORTANTE: por inúmeros motivos, mas principalmente devido ao ritmo e à duração, esse texto foi feito pra ser lido enquanto o leitor acende e fuma sozinho e silenciosamente um cigarro de maconha, preferencialmente pequeno, mas não importando se sativa ou indica.

O que fazer com os restos?

Estávamos numa festa. Bem meia-boca, por sinal. Joel chegou dizendo que tinha uma ideia. Diante das possibilidades, nenhum flerte sendo sustentado naquele momento, nenhuma música dançante rolando, Joel entendeu aquilo como uma deixa.

– É algo que não vai exigir o menor esforço, essa ideia. – disse, encontrando, com algum custo, um pequeno espaço pra se sentar no sofá logo ao meu lado.

Puxei pro meu colo um livro, uma edição em capa dura, bem velha, da antologia poética do Mario de Sá-Carneiro, deixado ali na mesa de centro por algum veterano jamais mencionado, mas que bem poderia estar pensando, quando abandonou o livro ali, em dar àquele exemplar um uso análogo ao das revistas das salas de espera dos consultórios odontológicos. Só que junto com o livro, e sobre ele, vinham um dixavador e uma sedinha Colomi. Comecei a dixavar um pedaço de maconha que Joel retirou do bolso e me entregou.

– É uma ideia. – ele disse. – tem a ver com maconha.

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A TV no Mudo

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A TV no Mudo

Manhã cinzenta na sala da Capadócia. Neblina canábica sobre picos nevados. Lá pelas tantas, Djair diz para Kebab:

– Eu precisava falar com você, um negócio.

– Que negócio? – quis saber Kebab.

– Mas não se ofenda, ok? Eu sei que você sempre se ofende…

– Eu nunca me ofendo.

– E sempre que você se ofende, fica foda, e a gente termina discutindo a própria discussão, e enfim, não é isso, mas não se ofenda, certo? – não era um costume conversarem olhando um no olho do outro. O costume era ficarem sentados em seus respectivos lugares olhando para o teto.

– Quando foi que me ofendi? – perguntou Kebab.

– Não importa, não é sobre isso…

– Porque se você falou pra eu não me ofender, deve estar esperando que eu faça isso.

– Ã? – realmente não havia entendido, assim como também Kebab não entendeu o “Ã?” do amigo e imaginou que aquilo significasse algo como: “não seja idiota, parça”.

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