ética e saúde como critérios de verdade

Considere a seguinte situação: durante um sonho, enquanto perambula por uma paisagem insólita e onírica, você se depara com uma criatura, uma entidade mágica ou sobrenatural. Esta criatura, um gnomo, um gênio, um daemon, lhe diz coisas que ressoam profundamente em sua consciência. Ao acordar, você decide encarar este diálogo como um tipo de orientação para o restante da sua vida. Depois, ao repassar a história para um amigo, você ouve que “tudo foi apenas um sonho”, e que “não há meios de saber se o encontro com a tal entidade foi real ou não”.

Em quais outras circunstâncias um encontro improvável como este poderia vir a ser? Durante um ritual mágico ou, mais provavelmente, durante uma experiência com substâncias alucinógenas, é claro. Então consideremos que, em vez de um sonho, na verdade o encontro com a entidade extraplanar aconteceu enquanto você desfrutava intensamente dos efeitos lisérgicos de uma dose cavalar de LSD, ou DMT, ou psilocibina – ou qualquer coisa do tipo. Mantenhamos os elementos da situação anterior: o encontro fez desencadear um diálogo, e a mensagem da entidade sobrenatural (digamos, uma serpente cósmica, um bicho mitológico, ou um espírito de luz) se harmonizou com algumas verdades pessoais e aspectos de sua personalidade que pareciam ocultos para você mesmo.

A primeira pergunta é: como fazer para saber se este encontro foi real ou não?

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budismo e marxismo

Me perguntaram recentemente se seria possível uma afinidade entre o projeto marxista dirigido a uma sociedade mais igualitária e uma suposta ética budista. Penso que não, devido às seguintes divergências:

A origem do sofrimento: o ponto de partida da ética budista é muito simples, e começa com uma única verdade incontestável: “o sofrimento existe”. Não tenho dúvidas de que os marxistas concordariam com isso, mas o diagnóstico parte de observações completamente distintas. Para os marxistas este sofrimento resulta de uma má distribuição das riquezas da sociedade. Para os budistas, ele é inerente à natureza da mente. Isso explicaria o sofrimento até daqueles que são ricos e possuem mais do que o suficiente para viverem bem – também explicaria o ímpeto quase que natural para a insatisfação, a inveja, a expectativa, e o apego às formas.

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a filosofia surgiu na grécia antiga?

Em virtude dos avanços necessários dos estudos decoloniais, a pergunta em torno da origem da filosofia tem sido feita com cada vez mais frequência. Diante disso, temos observado os esforços intelectuais de pensadores que afirmam que a filosofia grega não é a primeira, e nem a única filosofia do mundo – mas apenas uma dentre outras filosofias. Esta afirmação vem carregada de uma acusação na qual se cruzam diferentes fatores históricos, sociológicos, epistêmicos, e segundo a qual a narrativa que entrega aos gregos a autoria da filosofia é, na verdade, uma narrativa eurocêntrica que contribuiu para descaracterizar e apagar o legado cultural de povos como os egípcios, por exemplo.

A acusação de epistemicídio e apagamento é fundada na suposição, inteiramente correta, de que os séculos do colonialismo, neste processo de apagamento, acabou definindo uma hierarquia epistêmica cujo centro é a textualidade e a razão europeia moderna. No edifício desta hierarquia, a filosofia grega seria tomada como um ponto de partida original da ciência ocidental – uma trajetória ao longo da qual a crítica decolonial encontra uma série de construções históricas que ocultam o parentesco da filosofia grega com outras expressões culturais circunvizinhas. Mas o aspecto mais importante desta crítica, acredito, tem a ver com a sua capacidade para trazer à baila uma variedade de outras tradições e expressões do conhecimento humano que não se dobram às matrizes definidas pela modernidade europeia.

Tendo em vista estes sucedâneos mais recentes da crítica cultural e histórica, a pergunta, o seu motivo, e o seu significado, adquirem uma maior clareza. A questão “a filosofia nasceu na Grécia Antiga?” na verdade não quer ser respondida, porque sabemos que a pergunta em si não é tão relevante – o que ela pretende é denunciar as outras formas de saber que foram apagadas pela história, posto que isso que chamamos de “filosofia” é um constructo recente que serviu de parâmetro e referência a partir da qual julgamos todas as outras “candidatas a filosofia”. Considerando esta denúncia, a “originalidade” da filosofia grega perderia o seu valor singular, e ela seria apenas mais uma outra sabedoria colocada ao lado de um repositório humano comum. Todavia, esta tentativa mais plural de estabelecer uma vizinhança de filosofias, por mais bem intencionada que seja, traz consigo alguns problemas graves para o próprio estudo da história e da filosofia.

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abençoados sejam os discípulos de mahavira

Ao contrário da atenção que a cultura brasileira tem dado ao budismo e ao hinduísmo nas últimas décadas, pouco ou quase nada até hoje já foi dito sobre os jainas neste mesmo território nacional. Também pudera, diferentemente das outras tradições espirituais provenientes da Índia, o jainismo, em virtude do seu ascetismo radical, encontrou poucas chances para transpor as fronteiras do país onde foi primeiramente difundido. Nos século XX e XXI, contudo, pequenas comunidades se fixaram em países como Estados Unidos e Inglaterra, ao passo que a maior parte dos seus devotos permanece na Ásia e somam na atualidade 6 milhões de indivíduos. Este pequeno artigo é uma tentativa de apresentar, para o público leitor brasileiro, uma brevíssima narrativa daquele que é considerado o seu fundador histórico, e um resumo um tanto sintético das principais ideias filosóficas e espirituais desta tradição religiosa.

Atribui-se a fundação histórica do jainismo a um sujeito chamado Mahavira (540 a 468 a.C.), que teria vivido na região de Magadha, por volta do século VI a.C., sendo, de fato, um contemporâneo de Sidarta Gautama, o Buda. Na verdade, tanto Gautama quanto Mahavira (tampouco era este o seu nome de berço), pertenciam a um mesmo contexto de buscadores espirituais denominado śramaṇa – movimento mais ou menos contracultural gestado do lado de fora da cultura védica e que se opunha a inúmeros princípios do bramanismo, tais como, por exemplo, a estrutura das castas sociais.

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folia de reis

Ontem foi Dia de Santos Reis.

Venho estudando a figura dos três reis magos já há quatro anos, desde que me dei conta de quão misteriosos e enigmáticos eram estes personagens, uma vez que não há qualquer menção a eles fora do Evangelho de Mateus.

Assim consta a sua aparição, no Novo Testamento:

E, tendo nascido Jesus em Belém de Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém,
Dizendo: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? porque vimos a sua estrela no oriente, e viemos a adorá-lo.
Mateus 2:1

O mistério que acompanhava e adornava estas figuras penetrou os séculos ensejando festas populares, romarias, especulações teológicas, filosóficas, e geográficas, ocultismos e misticismos. Quais insights se abrem para nós, hoje, habitantes de uma cultura dois milênios mais velha?

No Evangelho de Lucas, no lugar dos reis magos que vêm do Oriente, temos apenas a figura dos pastores da região que servem de testemunha do nascimento de Jesus na manjedoura. A coisa mais curiosa que alguém perceberia, de imediato, é o fato de que Mateus, em nenhum momento, disse que eram três os reis magos. Nós supomos que eram três porque eram três os presentes que foram dados ao Cristo: incenso, mirra e ouro. Estes três ingredientes alquímicos têm um significado simbólico: o ouro é a realeza de Cristo; o incenso é a sua autoridade espiritual; a mirra é a sua imortalidade. Todavia, uma interpretação mais mundana também é possível: o incenso era necessário para afastar o mau cheiro da manjedoura em que o menino havia nascido; a mirra era um bálsamo importante para proteção física do bebê; e o ouro um presente valioso para um casal tão pobre e tão jovem vivendo nas imediações de Belém – e que logo teria de se exilar para fugir da fúria do Rei Herodes.

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confúcio e a fuga das galinhas

Confúcio sempre foi e continua sendo um perfeito exemplo de como a filosofia chinesa é profundamente diferente da filosofia ocidental. É muito provável que qualquer cidadão brasileiro com um grau médio de letramento já tenha ouvido falar do sábio chinês ou tenha se deparado, então, com alguns de seus ensinamentos e máximas. E, ao passo que a filosofia ocidental progrediu construindo sistemas muitíssimo elaborados de compreensão do mundo e dos seres humanos, a filosofia chinesa se perpetuou através da prática dos seus comentaristas. Assim, a busca pela formulação de um sistema mais original e mais completo que o de seus antecessores, como se tornou comum no ocidente, sobretudo a partir da entrada da Europa na modernidade, não cabia na tradição da filosofia chinesa – cujo sentido compreendia uma reverência quase que absoluta ao clássicos. Deste modo, mais importante do que inventar uma nova possibilidade de significado, convinha interpretar e esclarecer aqueles ensinamentos trazidos ao mundo pelas palavras dos antigos mestres. No caso de Confúcio essa sabedoria, cristalina e simples, encontra grande lastro na literatura de auto-ajuda atual. Sem qualquer preconceito ou prejuízo, há, de fato, uma afinidade possível entre aquilo que os velhos mestres tinham para ensinar, e aquilo que os leitores de hoje em dia buscam para acrescentar às suas vidas. Veremos neste pequeno texto como que essas afinidades são mais amplas do que imaginamos, e às vezes até um tanto divertidas.

A leitura dos textos de filosofia chinesa nunca se desdobrou num método de leitura tão racionalmente obcecado como o dos ocidentais. É verdade que essa obsessão, maravilhosa em seus desenvolvimentos, favoreceu uma miríade de articulações de pensamento imbuídas de ceticismo e dedicadas a desvendar as limitações de suas próprias leituras e entendimentos, permitindo, então, que alguns campos filosóficos florescessem precisamente por conta das incertezas: a hermenêutica e a epistemologia são algumas destas áreas inseminadas pelos problemas típicos da mente ocidental. Não cabia, portanto, para os orientais, pensar o próprio pensamento – ainda que algumas práticas de meditação efetuassem exatamente isso. A esta característica própria do pensar, acrescentamos a diferença entre os idiomas: o chinês antigo era claro e conciso, e não abria tanto espaço assim para argumentações. Não havia, para o filósofo do extremo oriente, a necessidade de sustentar uma tese ou defendê-la de seus opositores. Nada parecerá mais estranho à filosofia ocidental, arvorada nas suas dialéticas e escolásticas, do que a simplicidade das palavras de Confúcio, principalmente se temos em vista o fato de que esta simplicidade, que já alcança dois milênios, continua a render comentários riquíssimos da parte de seus leitores.

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buda, heráclito e o fogo

É claro que não sou o primeiro a estabelecer comparações entre a doutrina de Sidarta Gautama, o Buda, e a de Heráclito de Éfeso. Também pelo fato de terem sido, muito provavelmente, contemporâneos, a similaridade entre suas ideias chama atenção porque ambas se apresentam, em seus contextos, com um elevado grau de originalidade – e criam condições para uma certa compreensão da realidade à qual não podemos permanecer indiferentes. Um insight que revele a impermanência das coisas, da matéria e da forma, e que sirva de plataforma para uma percepção mais profunda das mudanças e, por consequência, do vazio subjacente a tudo, é algo que atrai a atenção de qualquer um que tenha tendência para a filosofia.

            As análises comparativas da filosofia antiga não se restringem a colocar Buda ao lado de Heráclito. Também um grande representante da filosofia chinesa, Lao Tsé, tem, na sua mensagem, palavras que se assemelham àquelas proferidas pelo filósofo pré-socrático.

            Neste pequeno ensaio, contudo, dedicarei minha atenção à ideia de fogo, tentando compreender o papel que este elemento cumpre, enquanto metáfora, analogia ou imagem, na doutrina espiritual de Buda, e na doutrina filosófica de Heráclito.

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brazilla

Foram duas as vezes em que sonhei com o Godzilla.

Quer dizer: eu não sei se era realmente O Godzilla. Era um monstro gigante (um kaiju, ou algo assim). Não me lembro exatamente do seu formato, se era um lagarto, um macaco, um robô, não dava pra ver. Devo dizer, aliás, que essa é a questão mais curiosa que envolve ambos os sonhos: a perspectiva.

Com exceção do filme Hospedeiro, de 2006 e Cloverfield, de 2008, desconheço qualquer outro filme sobre monstros gigantes que se preocupe tanto assim com a questão da perspectiva, o local do observador, e o ponto de onde é possível testemunhar a ação do monstro. No caso do Hospedeiro, o monstro não é tão grande; no caso de Cloverfield, é um dos maiores já retratados no cinema. Ora, pois estamos falando de criaturas que são maiores que edifícios, verdadeiros colossos abissais capazes de sacudirem um continente. De que modo elas podem se tornar terríveis, se não através de uma perspectiva que acentue o seu tamanho impressionante?

Pois bem: nos dois sonhos que eu tive, a perspectiva foi fundamental para as sensações que desfrutei ali.

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buda enquanto um fenômeno da natureza

Este pequeno ensaio, ou exercício, é uma tentativa de interpretar a realização de Buda, ou seja, sua iluminação, como um fenômeno da natureza, e não enquanto conceito derivado de um dado específico de uma cultura específica. Essa premissa, com certeza, se insere bem no meio de uma dicotomia que muitos gostariam de considerar superada, posto que a separação entre natureza e cultura remete a formas específicas de se fazer antropologia e sociologia. Uma tal dicotomia traz enormes consequências para a nossa compreensão do que vem a ser o humano, e de qual é a sua relação com os outros seres e as outras coisas que o cercam, sobretudo, qual é o momento em que a sociedade se funda e quais são as primeiras formas sociais próprias de um tempo ou de um lugar, das quais se destacam as coisas particulares em contraste com as universais – mas não quero, aqui, me atentar para uma discussão metodológica ou conceitual. De qualquer forma, tentarei completar o raciocínio sem apresentar uma definição final de natureza – e aí já temos um desafio que, na brevidade de uns poucos parágrafos, será muito difícil de superar. Deixarei então que o próprio termo “natureza” se defina ao longo do texto, conforme a exposição for adquirindo algum sentido. Até lá, tiraremos proveito de algumas ideias de dois filósofos franceses: Henri Bergson e Gilbert Simondon. O primeiro, Bergson, comumente associado àquilo que se chamaria de intuicionismo e, então, espiritualismo; e Simondon, provavelmente um dos maiores fisicalistas do século XX – não havendo nenhuma tentativa de conciliação entre estas ideias, gostaria apenas de buscar alguma inspiração em suas palavras.

O que quero dizer, então, quando estou sugerindo que a realização do Buda possa ser interpretada como um fenômeno da natureza, e não da cultura? Quero dizer que vou tentar apreender essa realização segundo conceitos que não aportem diretamente nas formas socioculturais que ligam o Buda à sua época e ao seu lugar, mas que ascendam filosoficamente na direção de um sentido que se construa por sobre a própria vida. Quero dizer, então, que as causas que levam à iluminação do Buda se originam numa etapa anterior à existência humana e, portanto, sua realização responde a certas condições existenciais que são compartilhadas também pelos outros seres da natureza sem que eles disponham, tal como os seres humanos dispõem, de uma capacidade igual de ação e consciência. Não se trata, portanto, apenas de uma limitação linguística – a própria concepção budista da existência presume que apenas os seres humanos estão qualificados para a iluminação, e não os animais. Isso acontece porque eles, os humanos, dispõem de um grau a mais de consciência sobre os seus próprios apetites e desejos. Essa ideia, entretanto, não é um consenso total por parte dos budistas. Na verdade, num texto importante como o Sutra do Lótus, podemos encontrar afirmações a respeito da possibilidade de todos os seres estarem destinados à iluminação. Mas penso que esse texto responde a uma ramificação do budismo e o seu conteúdo, demasiadamente alegórico, é, para mim, de difícil interpretação.

Se interpretássemos a ação deo Buda através das categorias sociológicas, poderíamos chamá-lo de profeta, e veríamos na sua primeira ordem de discípulos a reunião de uma comunidade religiosa, ou uma seita dissidente e desviante, portanto, original em relação às tradições hindus. Os estudiosos apontariam para a história social do movimento dos anacoretas e dos buscadores religiosos das florestas da Índia, do qual também são contemporâneos Mahavira e Gosala. Seríamos levados a pensar nos códigos culturais que fundamentam e dão significado à realização do Buda, e que são próprios de um contexto – a saber, a Índia Antiga, no interior da cultura hindu. Concluiríamos então que a cultura se constrói a partir de um referencial que é imediato: o meio. Todas as realizações da cultura também seriam , e nisso incluímos as outras religiões além do budismo, uma realização da natureza em certa medida. É sob a proteção da cultura que a realização do Buda pode se abrigar – como se uma janela se abrisse por um momento muito breve e um pássaro adentrasse a sala. Há outros indivíduos semelhantes a ele, mas, em matéria de compreensão sobre a física da mente, dificilmente encontraremos uma originalidade tão inteligente num indivíduo só, e concordaríamos em dizer que tal aparição não seria possível em nenhum outro lugar e nenhuma outra época. A natureza esperou a cultura abrir certas janelas para poder entrar. Mas se quisermos nos fiar em outra comparação que leve ainda mais em conta a passagem do tempo, o quadro temporal a que estes fenômenos se abrem, pensemos então numa semente que depende de uma certa estação específica do ano para poder germinar.

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