ética e saúde como critérios de verdade

Considere a seguinte situação: durante um sonho, enquanto perambula por uma paisagem insólita e onírica, você se depara com uma criatura, uma entidade mágica ou sobrenatural. Esta criatura, um gnomo, um gênio, um daemon, lhe diz coisas que ressoam profundamente em sua consciência. Ao acordar, você decide encarar este diálogo como um tipo de orientação para o restante da sua vida. Depois, ao repassar a história para um amigo, você ouve que “tudo foi apenas um sonho”, e que “não há meios de saber se o encontro com a tal entidade foi real ou não”.

Em quais outras circunstâncias um encontro improvável como este poderia vir a ser? Durante um ritual mágico ou, mais provavelmente, durante uma experiência com substâncias alucinógenas, é claro. Então consideremos que, em vez de um sonho, na verdade o encontro com a entidade extraplanar aconteceu enquanto você desfrutava intensamente dos efeitos lisérgicos de uma dose cavalar de LSD, ou DMT, ou psilocibina – ou qualquer coisa do tipo. Mantenhamos os elementos da situação anterior: o encontro fez desencadear um diálogo, e a mensagem da entidade sobrenatural (digamos, uma serpente cósmica, um bicho mitológico, ou um espírito de luz) se harmonizou com algumas verdades pessoais e aspectos de sua personalidade que pareciam ocultos para você mesmo.

A primeira pergunta é: como fazer para saber se este encontro foi real ou não?

A segunda e terceiras perguntas amplificam o problema: quais partes deste encontro podem ser consideradas reais ou não; e o que vem a ser exatamente o critério de real que pretendemos distinguir neste encontro?

A primeira pergunta, logicamente, resvala nas noções mais simples que fundamentam o bom-senso, noções que estabelecem um ceticismo prévio e comum diante de situações que aconteçam durante os estados alterados da consciência: sonho; embriaguez; alucinações. É de bom tom desconfiar destas experiências – e, um tal ceticismo, muito provavelmente, tem a ver com a cultura que se estabeleceu desde o início da Modernidade.

Em tempos mais arcaicos, a depender dos acontecimentos transcorridos em sonhos ou nos estados de alucinação, indivíduos poderiam derivar orientações vitais ou conclusões práticas para sua vida. Uma boa parte do trabalho oracular e das artes divinatórias tinha a ver com a produção de significados a partir destes encontros oníricos ou alucinatórios. Antes mesmo que a ciência moderna estabelecesse um primado lógico e empírico, a religião cristã já havia exorcizado uma variedade de práticas desta ordem, preservando apenas aquele nível de superstição que não poderia ser eliminado, posto que participava da subjetividade mais íntima dos membros da sociedade medieval e, mais tarde, moderna: as experiências particulares com a memória dos mortos, pequenos vislumbres da alma. Se num passado antigo as artes divinatórias funcionavam até mesmo como um tipo de tecnologia política e militar, no presente esta função se preserva em nichos muito pequenos e depende de uma infusão de significados provenientes dos mais variados lugares.

Assim, encontros com entidades sobrenaturais, seres interplanares, alienígenas, anjos, demônios, ou fantasmas, são recebidos e interpretados, principalmente, a partir da mensagem que eles entregam para os indivíduos que deles participam.

Digamos que um amigo seu teve um sonho com o pai que já há muito havia morrido. A não ser que este sonho seja submetido a um escrutínio frio (que ninguém gostaria de levar adiante), a comunidade ao redor deste amigo poderia perfeitamente aceitar este sonho se ele possuísse um conteúdo de verdade próprio, para além da possibilidade de que o espírito do pai morto houvesse de fato estado ali. E no que consiste este “conteúdo de verdade”? Provavelmente em algo semelhante ao conteúdo de verdade desvelado nas obras de arte que sabemos serem ficcionais. Trata-se de uma mensagem que alude a algo real de nossa existência, e que produz um efeito sobre nossa percepção e conduta. Trata-se de uma mensagem que, pela conexão que estabelece com aspectos vívidos de nossa realidade, acaba por revelar elementos até então ocultos ou despercebidos – fixando, portanto, uma verdade ao mesmo tempo velha e nova para o indivíduo que se torna capaz de contemplá-la.

Ora, diante disso, pouco parece importar se o fantasma do pai morto era real ou não. Interpretações mais psicológicas apontarão para camadas da consciência que supostamente já gestavam o conhecimento desta verdade e, portanto, a entregaram para o indivíduo com uma roupagem diferente. A interpretação dos sonhos, seja através de Freud ou de Jung, com moduladores próprios a cada abordagem, parecem concordar com esta possibilidade – de que a nossa consciência é tão sofisticada que possui um esquema próprio de produção e mascaramento de verdades, e que, em alguns casos, há uma intervenção de símbolos arquetípicos transpessoais. O mecanismo funciona de uma tal forma que transfere à imagem de um outro o poder de nos entregar esta mensagem: o espírito do pai morto, ou a criatura sobrenatural.

Mas, mesmo assim, a primeira pergunta persistiria, já que não dispomos de quaisquer meios para verificar se o espírito do pai era de fato o espírito do pai. Talvez, numa circunstância mais específica, estes encontros tragam informações verídicas para indivíduos que não tinham quaisquer condições de conhecê-las. A revelação, neste caso, não diz respeito apenas a aspectos pessoais de uma verdade íntima, mas a situações concretas de um mundo compartilhado – de modos que outras pessoas também teriam condições de verificar, por si mesmas, a correspondência entre a mensagem entregada pelo sobrenatural e a disposição das coisas no mundo real.

O problema é que estes encontros são sempre muito raros. Fala-se de experiências de quase morte (EQM) das quais os indivíduos retornaram com informações que eram impossíveis de serem obtidas – uma vez que eles estavam simplesmente deitados e desacordados numa mesa de operações. Mas a maior parte dos encontros acontece sempre em condições muito questionáveis, que os céticos facilmente classificarão como experiências anômalas de dissociação. Não temos razão alguma para crer que estas entidades são reais – mas por que, então elas aparecem? E por que elas dizem algo que parece ser verdadeiro?

São verdades genéricas ou específicas? É aquilo que gostaríamos de ouvir ou ocorre uma introdução de novas ideias? Certamente que um estudo mais aprofundado sobre os fenômenos de canalização de mensagens da Nova Era fornecerão um manancial de dados prontos para serem conferidos e desvendados. Quais casos nos parecerão mais convincentes?

Penso que, para além do discernimento quanto ao conteúdo de suas mensagens, não teremos condições nem critérios claros para determinar a realidade destes personagens. No entanto, acredito que dispomos de dois critérios importantíssimos na validação da mensagem que é por eles transmitida. E, nesta hermenêutica das alucinações, talvez, a mensagem seja mais importante do que o mensageiro.

Estes dois critérios são, afinal, a ética e a saúde.

No caso da ética, sou levado a crer que a mensagem se justifica a partir do momento que ela introduz uma orientação ética determinante para a conduta futura dos indivíduos. Relatos de experiências com ayahuasca, por exemplo, mencionam insights e reflexões que redirecionam os indivíduos para uma conciliação com antigos desafetos, e o cultivo de uma atitude compreensiva diante dos outros. Neste caso, a presença de um ser fantástico não faz falta, e os indivíduos poderiam muito bem chegar por conta própria ao insight. Mas este insight foi, todavia, necessariamente desencadeado pela potência do efeito resultante deste encontro e pelo contexto cujo terreno está preparado para produzir uma tal ordem de experiência e reflexão.

Ora, a pergunta mais óbvia produz de imediato um desvio: por que, afinal, um melhoramento ético haveria de servir como um critério de verdade? Porque há, provavelmente, uma semelhança entre o bem e a verdade. Uma mensagem pacífica e compreensiva, um impulso criativo de união e bondade, para ser entregue, precisa talvez de um portador. Seu efeito depende da dimensão de afeto acessada por este encontro. Uma mensagem com estas qualidades se entregará sozinha? Os seus efeitos não seriam tão grandes se o indivíduo soubesse que, por meio de seu próprio raciocínio, ele chegou sozinho a esta conclusão. A infusão de anima deve vir de fora – ou pelo menos assim deve parecer. Eis, então, o caminho da conversão do olhar e da conduta: para começar a caminhar em sua direção, é necessário ser tocado por uma experiência que envolva visão (a contemplação do ente sobrenatural), e afeto (o sentimento provocado pelo encontro).

O segundo critério, a saúde, tem uma direção inversa ao do primeiro. Se a ética é dirigida aos outros, a saúde nada mais é do que a ética dirigida para si mesmo.

Se há na história do pensamento algum filósofo cujas ideias podem ser de boa monta para este raciocínio, certamente é o caso de Baruch Spinoza. Não precisaremos ir muito além daquilo que ele já foi por si só capaz de delinear em sua Ética. Para nós já será mais do que satisfatório considerar aquilo que ele mesmo sugeriu em seu sistema: a felicidade envolve a passagem para um estado superior de perfeição. Este estado envolve um ganho de potência, ou seja, de liberdade para ação sem constrangimento, e, sobretudo, a capacidade de formular ideias adequadas.

No que consistem ideias adequadas? Ideias cujas causas nos são próximas – noções e conceitos que não estejam totalmente suscetíveis e vulneráveis aos nossos afetos. Ou seja: ideias que não se originaram de paixões tristes, mas de intuições criativas corretas, com origens conhecidas, e que elevam a nossa capacidade de compreensão e de ação, nos trazendo pra mais perto daquele núcleo vazio da personalidade a que chamamos de “nós mesmos”.

Pois, se os indivíduos existem e são (ou seja, possuem substância) somente em relação àquilo que os afeta, certamente que o Ser está constituído a partir dos seus encontros. Ora, e no que consiste o encontro com uma criatura sobrenatural? Caso esta ordem sobrenatural esteja descartada do nosso modelo de realidade, diremos que se trata de um encontro delirante – o encontro com um constructo, com o simulacro de uma fantasmagoria. É possível que a nossa própria imaginação nos forneça estes encontros? Toda imaginação encontra seus nutrientes na realidade, certo é, e nenhum cenário imaginado se forma a partir do nada. De onde, então, ela, a imaginação, extrai a matéria-prima de que precisa para a elaboração destes encontros imaginários?

Outro problema filosófico parece querer se ocultar neste caminho. Se este encontro sobrenatural que aqui consideramos tem alguma chance de produzir melhorias éticas para os sujeitos que o experimentam, e carecemos de meios que comprovem a sua concretude fenomênica, então há, possivelmente, duas situações ontológicas separadas por um problema hermenêutico: é possível que uma mentira esteja dizendo a verdade? Ou melhor: é possível que a verdade seja dita de forma acidental? Em quais graus e dimensões a mentira se relaciona com a verdade? A verdade que é dita indiretamente, por meio de uma alegoria ou de uma ficção, desfruta da condição de verdade graças às suas implicações, ou porque se ajusta a um grau interior da intuição que a compreende?

Em certa medida, um dos lados da mentira sempre está voltado para a verdade. E a verdade, por sua vez, possui vida própria? Quer dizer, em quais mensagens ela habita e quais ela é capaz de produzir por si mesma? Quais demandas concretas da realidade criam essa mensagem e a tornam disponível para a consciência – e em quais momentos a verdade faz uso de fantasias para entregar esta mensagem? Em quais circunstâncias ela se dispõe a operar e conduzir o fenômeno reflexivo da mente, expandido a angulatura da linguagem interior? Ora, nenhuma destas perguntas podem ser respondidas aqui. São consequências epistemológicas dos problemas levantados pela questão primeira. Certamente que há inúmeros relatos, em todas as culturas religiosas e místicas disponíveis para o ser humano, e também em muitas outras narrativas folclóricas distribuídas pelos continentes, que me mencionam seres mitológicos e sobrenaturais de conduta duvidosa, dispostos a mentir e a enganar, a trapecear e a despistar viajantes, a roubar objetos e esconder coisas. Como aplicar os nossos critérios de verdade nestes exemplo? É bem provável que eles invalidariam a existência destes seres pouco virtuosos. Mas, em outro sentido, e muito pelo contrário, não estará a realidade destes seres confirmada e sustentada pelo mal que eles produzem? Dizendo de outro modo: uma existência residual. Ora, associar o mal à mentira não o fará sumir de vista. Carente de substância própria, o mal, em seu temporário arranjo, certamente tem algo de muito verdadeiro a dizer sobre o sujeito que acaba por evocá-lo. Dentre as fantasias que a verdade tem para vestir o seu mensageiro, o mal é apenas mais uma outra fantasia – e a mensagem que ele entrega é bem mais difícil de ser compreendida.

Por isso é que, em algum lugar, certamente os sujeitos têm razão em ouvir aquilo que anjos, fadas, gnomos, e até mesmo os fantasmas de seus antepassados têm a dizer. Os alienígenas sempre terão razão se o que eles querem é que paremos de fumar ou que usemos o cinto de segurança.

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