É considerável a quantidade de visões e lendas que envolvam a perspectiva de uma “queda”. Antes que se pense no Arcano da Torre, falamos aqui de uma situação cosmogônica – a origem da nossa existência, sulcada numa divisão dualista da natureza e do universo.
Pensemos no mito edênico: a queda de Adão e Eva, de um estado paradisíaco original onde não se distinguiam dos animais, para um mundo mais abaixo, marcado pelo trabalho, pela vergonha e pelo abandono. Adão e Eva, diferenciados dos animais e da natureza, e, cientes do grau de sua condenação – dotados de uma linguagem verbal, e de uma certa noção de si mesmos. Curiosidade, conhecimento.
A situação do mito edênico é um momento arquetípico daquilo que chamamos de “dualismo” – a ideia de que o universo possui uma natureza dupla, uma parte divina, sagrada e absoluta, e a outra parte profana, sublunar, e que nós, humanos perdidos aqui na Terra, habitamos a sua contraparte mundana não-divina, ou seja: mundana.
Essa divisão postula uma diferença de linguagem entre ambas as instâncias: a parte divina é absoluta. Nela, a palavra já vem acompanhada com o seu sentido. No mundo mais abaixo tudo é temporário e marcado pelo signo da relatividade. As palavras são apenas palavras.
Existem outros dualismos filosóficos e religiosos com elaborações mitopoéticas e estéticas realmente ricas. Na Índia ou na Grécia, veremos estas noções se desenvolverem a partir da atividade e do debate de várias escolas filosóficas. Os debates requalificam os termos, e às vezes abrem-se para novas concepções – o monismo, do qual o Advaita Vedanta é um exemplo perfeito.
Ao lado de quais perspectivas dualistas e monistas as noções cosmogônicas indígenas podem ser colocadas? Pensemos no perspectivismo ameríndio e na contribuição que as visões indígenas teriam para o mito edênico. Ora, o perspectivismo ameríndio nada mais é que a generalização teórica do processo de produção do ponto de vista dentro de sociedades selvagens como os araweté, yanomami e juruna. Aqui, a Queda não é protagonizada pelo Homem, mas pelos animais. Em outras palavras: quem se diferiu da humanidade foram os animais, os quais ainda convivem de acordo com uma humanidade própria, camuflada por sua roupagem animal.
Como exemplo do primeiro caso, contudo, penso no mito dos marubo, bem representado pelo título do livro em que o encontrei, “Quando a Terra deixou de falar”, de Pedro de Niemeyer Cesarino [Editora 34; 2013].
Segundo os marubo, o mundo teria passado por um processo de silenciamento, ocasionado pelo povo sol (Vari Nawavo) como punição para o comportamento sexual dos antigos. Em outro episódio, o silenciamento é resultado do feitiço de Kana Voã, um herói de suas narrativas, que decide silenciar o Céu, que, através de seus trovões, estaria cobiçando os habitantes da Terra daqui abaixo. A concepção que os marubo possuem dos espíritos, das formas da natureza, e da atuação do demiurgo que as criou é suficientemente complexa pra que eu não tente resumi-las aqui, mas o depoimento do xamã Armando Mariano é bastante curioso. Transcrevo:
“As colinas de terra falavam…