Me perguntaram recentemente se seria possível uma afinidade entre o projeto marxista dirigido a uma sociedade mais igualitária e uma suposta ética budista. Penso que não, devido às seguintes divergências:
A origem do sofrimento: o ponto de partida da ética budista é muito simples, e começa com uma única verdade incontestável: “o sofrimento existe”. Não tenho dúvidas de que os marxistas concordariam com isso, mas o diagnóstico parte de observações completamente distintas. Para os marxistas este sofrimento resulta de uma má distribuição das riquezas da sociedade. Para os budistas, ele é inerente à natureza da mente. Isso explicaria o sofrimento até daqueles que são ricos e possuem mais do que o suficiente para viverem bem – também explicaria o ímpeto quase que natural para a insatisfação, a inveja, a expectativa, e o apego às formas.
Consciência de classe: os marxistas estão acostumados a pensar em classes e categorias, raramente em indivíduos. Isto quer dizer que o sujeito histórico da transformação social, para os marxistas, é a classe operária, sobre quem, em virtude de suas condições de exploração, recai a responsabilidade pela transformação social. Para os budistas não existe iluminação coletiva – se a iluminação é o equivalente à libertação social, ela é conseguida apenas pelo indivíduo ao longo de uma evolução gradual de sua personalidade. Não podemos nos responsabilizar pela ação dos outros – e a coletividade sempre dilui a responsabilidade da nossa ação (tal como observamos nos linchamentos). A iluminação reincide sobre os nossos atos, sobre o nexo causal de onde deriva o karma. Dividir a sociedade em grupos, numa perspectiva revolucionária marxista, equivale a cindi-la entre os que têm razão e os que não têm. Uma ação coletiva sempre se justifica numericamente, e aderir a ela terminaria por ocultar a nossa responsabilidade pessoal sob o respaldo de uma finalidade coletiva. O contrário disso remete a uma frase que ouvi há poucos dias, de um professor de yoga que dizia que “o próximo Buda será coletivo”. Segundo ele: “o coletivo tem mais forças para mudar a sociedade”. A frase original é do Mestre Thich Nhat Hanh e não tem nada a ver com desejos de transformação social, mas com a prática do amor em comunidade. A ideia de um Buda coletivo, colocado desta forma, aliás, seria um caminho aberto para que diferentes grupos entrassem em conflito reivindicando o seu próprio Buda.
Alienação e iluminação: o conceito marxista de “alienação” se ampara basicamente na relação que o trabalhador passa a ter, numa sociedade industrial, com o seu objeto de trabalho. Na medida em que ele não se realiza mais pelo trabalho, uma vez que a produção é totalmente dividida e ele está alheio ao produto final, sua consciência é falseada – o que o leva a um desconhecimento da realidade. Vencer esse estado de ignorância envolve restituir a posição do trabalhador a uma relação mais completa com aquilo que ele produz – um tipo de iluminação disponível a uma sociedade redimida pela eliminação das classes sociais. Se isso é o mais próximo que o marxismo chegou a esboçar de algo como uma “iluminação”, os budistas compreendem que nem isso seria necessário para eliminar a verdadeira ignorância. O trabalho é apenas uma outra ilusão, posto que não há uma identidade fixa entre o “eu” e a “ação”. Insistir nisso seria confirmar a disposição natural para a produção do karma. Os enunciados emitidos por Buda, portanto, se amparam numa espécie de “não-lugar”, cuja retórica é descritiva e pouquíssimo especulativa – de onde se pode renunciar a qualquer tipo de ilusão (e não apenas àquelas ilusões supostamente construídas pela sociedade em uma determinada época). De qualquer modo, ele não deixou de observar alguns sintomas recorrentes até mesmo entre aqueles que eram os seus seguidores, como, por exemplo, o apego ao ponto de vista. Se aderimos a um movimento cujo interesse envolve modificar a sociedade como um todo, inclusive convencer os outros de que estamos certos, estamos necessariamente convictos de nossa posição, e profundamente arraigados às verdades pronunciadas por aqueles que formaram a nossa própria opinião. O alerta de Buda não o excluía desse tipo de situação: apegar-se à sua imagem e à sua doutrina também é um tipo de ignorância.
Comunidade/Sangha: a iluminação é individual, mas a vida é coletiva. É correto dizer que as diferentes ramificações da doutrina budista se diferem uma da outra pela ênfase com que colocam nas suas práticas individuais ou coletivas, oscilando entre renúncias bastante profundas e devoção e serviço a toda uma comunidade. Se a iluminação é individual, o auxílio da comunidade para que isto ocorra é fundamental, e influi também na preservação dos tesouros desta iluminação para o restante da vida consciente. A comunidade budista, contudo, não se define segundo os mesmos critérios de comunidade colocados pelo fator de identificação marxista – que se dá segundo as capacidades produtivas de cada um. Buda, desafiando o brahmanismo, sempre se posicionou num lugar contrário ao sistema de castas – e, de fato, não haveria impedimento algum quanto à presença variada de representantes de distintos estratos da sociedade no interior de uma comunidade de devotos. O critério aqui, contrariamente daquilo que deveria ser desenvolvido e cultivado para dar cola à consciência e ação budista, é tão somente a compaixão, sem qualquer prerrogativa de ação política transformadora quantos aos modos pelos quais a realidade material é produzida. Quando se fala de vidas de meio corretos são excluídos a escravidão de seres humanos, comércio de venenos ou entorpecentes, e comércio de animais. Mas não há qualquer impedimento doutrinário que impeça um budista de entender a divisão dos meios de produção como um procedimento ético correta quando a sobrevivência do dharma e da coletividade estiver em jogo. Tampouco haveria impeditivos quanto aos desejos de um budista em se filiar a um partido. Mas a ideia de uma sangha partidarizada não parece fazer muito sentido.
Desejo: os marxistas não produziram uma reflexão sobre o desejo tão profunda quanto os budistas. Do lado marxista, esta reflexão quase sempre se ampara nos conceitos de “ideologia” ou de “fetiche”. Imagina-se que a crise de desejo é puramente social, e seria sanada ao longo da construção de uma comunidade mais harmoniosa. Para além do fato de que a transformação da sociedade e dos seres humanos que a habitam seja, por si só, um amálgama complexo e violento de projeções e desejos (inclusive desejos de vingança), a reflexão marxista não toca aquele que seria o cerne do problema para os budistas: a impermanência do desejo e a impossibilidade de satisfazê-lo. Ele é, pois, a origem do mundo e do sofrimento. O triunfo sobre uma ordem social específica daria início a um outro sofrimento, desta vez vinculado à necessidade de preservar essa nova ordem social ideal em vista das ameaças que a destruiriam – de onde surgem disputas sobre quem tem razão a respeito do caminho certo a se seguir.
Escatologia: o horizonte revolucionário marxista se ampara num acerto de contas que remete a uma teleologia hegeliana, de realização do espírito absoluto, tanto como de um milenarismo profundamente cristão, pelo qual os justos e pobres herdarão a terra. Esta perspectiva se ampara numa concepção linear do tempo, o que difere das noções cíclicas e circulares dos budistas e hindus. Qualquer ação gera uma nova condição, e não existe mudança na ordem social que resolva um problema que é interno à nossa consciência desejosa. Uma nova ordem social, por melhor organizada que fosse, ainda seria insuficiente.
Revolução: este é o tópico em que as divergências se tornam mais óbvias e explícitas. Um budista estaria proibido de se juntar a uma revolução violenta e concordar com qualquer tipo de limpeza ideológica e social. Todavia, isto não impediu historicamente que reis budistas conquistassem novos territórios, ou que monges budistas apoiassem projetos imperiais violentos – ou que, em casos mais recentes, difundam discursos de ódio dirigidos a minorias étnicas e religiosas em lugares como Myanmar.
Isso tudo não quer dizer que não seja possível encontrar, também, algumas semelhanças entre o budismo e marxismo. Acredito que a semelhança mais importante esteja na vontade, que cada filosofia possui, de viver num lugar melhor, mais igualitário e harmonioso. Buda nunca se envolveu com política, e nada tinha a dizer sobre as questões políticas de seu tempo. Entretanto, encontramos em suas palavras comentários sobre as virtudes necessárias aos reis e à importância de maior justiça social. Por que? Porque uma pessoa pobre e necessitada provavelmente encontraria grandes dificuldades em seguir o dharma. Ou seja, as mazelas sociais estão diretamente ligadas à violência. Por isso encontramos no século XX um tipo de “budismo engajado”, que parte da seguinte ideia: se o mundo continuar caminhando neste ritmo, não será possível nem para os próprios budistas preservarem e viverem as suas verdades.