folia de reis

Ontem foi Dia de Santos Reis.

Venho estudando a figura dos três reis magos já há quatro anos, desde que me dei conta de quão misteriosos e enigmáticos eram estes personagens, uma vez que não há qualquer menção a eles fora do Evangelho de Mateus.

Assim consta a sua aparição, no Novo Testamento:

E, tendo nascido Jesus em Belém de Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém,
Dizendo: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? porque vimos a sua estrela no oriente, e viemos a adorá-lo.
Mateus 2:1

O mistério que acompanhava e adornava estas figuras penetrou os séculos ensejando festas populares, romarias, especulações teológicas, filosóficas, e geográficas, ocultismos e misticismos. Quais insights se abrem para nós, hoje, habitantes de uma cultura dois milênios mais velha?

No Evangelho de Lucas, no lugar dos reis magos que vêm do Oriente, temos apenas a figura dos pastores da região que servem de testemunha do nascimento de Jesus na manjedoura. A coisa mais curiosa que alguém perceberia, de imediato, é o fato de que Mateus, em nenhum momento, disse que eram três os reis magos. Nós supomos que eram três porque eram três os presentes que foram dados ao Cristo: incenso, mirra e ouro. Estes três ingredientes alquímicos têm um significado simbólico: o ouro é a realeza de Cristo; o incenso é a sua autoridade espiritual; a mirra é a sua imortalidade. Todavia, uma interpretação mais mundana também é possível: o incenso era necessário para afastar o mau cheiro da manjedoura em que o menino havia nascido; a mirra era um bálsamo importante para proteção física do bebê; e o ouro um presente valioso para um casal tão pobre e tão jovem vivendo nas imediações de Belém – e que logo teria de se exilar para fugir da fúria do Rei Herodes.

Mateus era o mais judeu dos evangelistas. A menção a uma realeza mágica e oriental é um recurso importante de legitimação da autoridade de Cristo; comitivas de estrangeiros visitando monarcas eram um tópico importante do mundo antigo e na própria Bíblia há uma cena muito conhecida e citada cujo esquema é semelhante: a visitação da rainha de Sabá à corte do Rei Salomão. O que há de admirável na narrativa dos Reis Magos, contudo, é o fato de que ela aponta para uma via de legitimação que vem de fora: o Oriente sempre foi o lugar dos sábios, e a palavra “mago”, do persa, quer dizer exatamente isso. Que eles tenham vindo seguindo uma estrela, não pode significar outra coisa senão a hipótese de um cálculo astrológico; evidências textuais indicam que, naqueles breves anos que precederam a era cristã, caravanas de viajantes chegavam a Jerusalém trazidos exatamente por cálculos parecidos – a sugestão de que uma grande figura, um grande rei, nasceria naquela região. Assim como Buda ou Krishna tiveram seus nascimentos anunciados por presságios, sonhos, e configurações celestes propícias, Cristo abriria um novo capítulo na história espiritual do mundo. Que os reis magos venham de longe apenas para presentear e testemunhar esta figura, parece haver algo de muito singelo, posto que eles retornam para o lugar de onde vieram – mas por um caminho diferente, tal como o anjo lhes indicou num sonho.

Mas essa história bonita também guarda um lado terrível; não fossem os reis magos darem com a língua nos dentes, Herodes não teria ficado desconfiado e ordenado a matança dos recém-nascidos, os primeiros mártires, os santos inocentes do cristianismo.

A festa dos reis magos se iniciou como uma festividade popular em Bizâncio. Nela, era comum que os papeis se invertessem, e um certo escárnio geral predominasse. Observava-se o travestismo, mulheres se vestindo de homens, e homens se vestindo de mulheres – e a algazarra era tanta que num concílio de 692 a prática foi condenada e transformado em blasfêmia.

Com o passar dos séculos, o culto às três figuras se consolidou e se normalizou, e a cidade de Colônia na Alemanha se tornou um ponto de peregrinação quando, então, os supostos corpos dos três reis foram encontrados e, enquanto relíquias, colocados na catedral. Tornou-se então um costume régio, cada novo imperador do Sacro Império Romano, assim que era consagrado, rumava para a catedral em busca da legitimidade espiritual de que seu reinado dependia.

A alteridade intrínseca a essas figuras permitiu ainda que todo tipo de especulação sobre sua origem e identidade viesse à tona nos séculos seguintes. Cada rei mago passou a ser associado a um continente, a uma raça diferente. Conforme o contato com a África negra aumentou, e o nome de Mansa Musa se tornou popular no mundo árabe e no mundo cristão, um dos reis magos foi permanentemente pintado de negro não apenas nas representações medievais, como também nas festividades seguintes. Teria sido esse o primeiro “black face” da história? Provavelmente sim.

Na Renascença, conforme um novo influxo de viajantes e comerciantes chegavam na Itália, provenientes de Bizânico e do Oriente, todo um novo vocabulário e um novo repertório visual passou a adornar estas figuras que se tornaram, então, um modelo definitivo do que pudesse ser o “exótico”, o “estrangeiro” e o “diferente” – colares, joias, vestimentas, perfumes, temperos e tecidos raros. Esse exotismo, contudo, nunca se converteu em racismo ou aversão ao estrangeiro – na verdade, era o seu justo contrário que parecia funcionar: o exotismo, enquanto germe do orientalismo, trazia consigo a alusão a um mundo mais antigo, mais rico, mais misterioso e mais sábio do que o europeu.

Com a descoberta da América, o mito dos reis magos também passou a orientar toda uma geração de viajantes que exploravam as terras do Novo Mundo seguindo um tipo de geografia sagrada que retirava da Bíblia as referências da terra: os rios do Paraíso; a dispersão das Tribos de Israel etc. Não foi difícil, portanto, para os portugueses, pintarem uma imagem que trazia um índio como um dos reis magos – a função destes personagens era, justamente, a de agregar todas as raças, culturas e crenças sob a autoridade do Cristo.

A contemplação da jornada destes peregrinos, talvez, hoje em dia, diante da pluralidade religiosa dos nossos tempos, serviria para revelar não apenas a “autoridade” do Cristo – um recurso muito mais importante numa época de expansão do império da fé -, mas para permitir o reconhecimento de uma fraternidade espiritual entre povos diferentes, sublinhando a posição do capítulo do cristianismo numa longa história de revelações e buscas que cruzam os continentes e as eras.


Imagem: A adoração dos reis magos, de Vasco Fernandes. 1505.

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