ó a lama lá

Inter urinas et faeces nascimur. – Santo Agostinho

 

Uma multidão de pás, enxadas, tochas acesas, abominável gente feia e suja e esbravejante na rua se aglomera. Não hesitam em destruir as vidraças dos bancos, nem os automóveis. A polícia é chamada pra resolver a situação, mas os policiais não pensam em nenhum momento em resolver coisa alguma. Com as armas em mãos, apenas assistem. À frente da turba, de coleiras no pescoço e roupas rasgadas, forçados a rastejarem de quatro, com lama tóxica esparramada por todo o corpo e enfiada até o preenchimento total em cada orifício destes corpos, inclusive nos olhos e orelhas, vão aqueles que foram identificados como responsáveis pelo crime. Não são os primeiros a passarem pelo ato de humilhação pública – mas no momento, são os únicos vivos. Políticos, funcionários premiados, empregados perfunctórios. Todos os outros culpados já foram mortos, seus corpos deixados pelo caminho no enorme rastro de destruição e revolta percorrido pela turba furiosa.

Diante do imenso edifício da Companhia a rua é um rebuliço em chamas. Uma placa de PARE é arrancada junto de uma enorme porção de concreto e terra. A gritaria é ensurdecedora. Os policiais, contrariados, discutem o que fazer. O contingente é muito pequeno – foram pegos desprevenidos. A tropa de choque espera, assanhada, mas algo a impede de chegar. Por enquanto são apenas algumas poucas viaturas. Bombas de efeito moral não parecem surtir efeito. E os sprays de pimenta são revidados com pedras e paus. Um enorme lodaçal infectado acompanha o povaréu. Não há líderes, não há porta-vozes, e o único laço de comunhão entre estes miseráveis plebeus é o ódio, o furor, o desespero.

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o dia em que nossa amizade não sobreviveu a uma reavaliação ideológica

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Até que acontece. Nem as previsões epistemológicas e análises dóxicas mais precisas conseguem antever o dia em que será, o assunto do qual brotará a cabal divergência – aquela decisiva opinião que será o ponto de chegada ou o ponto de partida para as carteiradas vindouras -, a germinante centelha que, espalhando-se como o fogo no cerrado, terminará incendiado os ânimos, os amigos, ou o casal, ou os pais e os filhos (caso em que o fenômeno é mais frequente, e às vezes até mesmo procurado pelas partes envolvidas), pra depois esfriá-los dentro da geladeira pra onde vão depois de mortos.

Até que acontece. Ou já somos suspeitos há algum tempo, e a patrulha à paisana está num dia muito atribulado, não nos é permitido tolerar certas transgressões, incompatibilidades, humores caprichosos e insensatos, belicosos, fleumáticos, uma distância enorme entre os lugares que habitamos nos espectros políticos e a certeza absurda de que é justamente aí que devemos firmar pé.

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por uma direita esquerda

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A Última e Mais Completa Crítica Social já se encontra disponível para ser compartilhada entre os povos.

A cada Semana uma Crítica mais terminal, uma Análise mais nocauteante que a anterior.

Ninguém se arrepende em esperar. Quem discorda ou concorda, todos saem ganhando.

Ninguém é salvo pelo gongo.

São milhares de acessos por hora.

Os apostadores apostam em quem vai chegar primeiro à Linha de Chegada: se o Modelo Explicativo, ou a Realidade Vivenciada. Os apocalípticos ou o Apocalipse.

Empates são raros.

Pelo bem geral da Nação, proibiremos os cidadãos de possuírem opiniões.

Queremos evitar as disputas por significados.

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o dia do exame

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O dia do exame

Paralelo 20º 32º 20 sul.

Meridiano 47º 24º 03º oeste.

Terça-feira, 24º, tempo parcialmente nublado.

Hora local 0800

Umidade Alta: 33%.

O cruzamento defronte ao CIRETRAN amanhece preenchido pelos veículos das 68 autoescolas do município. Apoiados às grades, com os pés nos muros, os braços cruzados, um clima perfunctório no humor da maior parte dos candidatos que discutem entre si os macetes da prova da baliza. Os carros populares rebatizados com os nomes de cada companhia, cada um em uma grafia própria – Central; Metrópole; Bom Jesus; Líder; Modelo; Nova; Dois Irmãos; o gentílico do nome da cidade ou do Estado – pastam bovinamente o asfalto das vagas ao redor do quarteirão.

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o tio que foi à guerra

robert knox sneden

Depois de tanto insistirem pra que o tio lhes contasse da campanha da Itália, as crianças conseguiram tirá-lo de sua mudez casmurra, e dali, de sua cadeira de balanço, o que as crianças ouviram foi um discurso que jamais esperariam ouvir do tio, posto que quase nunca o ouviram falar tão depressa e com tanto volume:

– Meninos, se querem saber, eu conto, eu respondo, mas com a condição de que se faça silêncio. Querem saber como é ir à guerra? Pensem em duas coisas que, provavelmente, qualquer um de vocês já deve ter vivido. Coisas da infância. Comecem esquecendo os filmes, as explosões, os mocinhos e os bandidos. Não precisam de nada disso pra imaginar como é a guerra. Para quem esse destino terrível não se imponha, espero que nenhum de vocês, moleques, tenha de ir à guerra, é bem possível de imaginarem como é o conflito, a sensação terrível do front, sem terem até mesmo estado lá. As sensações que sentimos num lugar desses é só uma forma mais avançada de certos medos e temores que já sentimos na infância. Quero que se concentrem em duas sensações que todos vocês já devem ter sentido. A primeira é semelhante a certos momentos que experimentamos também em brincadeiras de esconde-esconde. Sabe, aquele segundo em que estamos escondidinhos, atrás da janela, ou atrás do arbusto, de uma pilastra, na sombra, aquele preciso instante em que estamos escondidos e nos acomete uma vontade repentina de dar uma mijada? Talvez seja o risco de sermos descobertos, não há quem não tenha sentido isso, pelo menos por uns dez segundos quando foi criança, quando brincou de esconde-esconde, principalmente pentelhos como vocês, que ficam na rua dia e noite¹. Agora imagine essa sensação triplicada, exagerada até o grau mais agudo, essa ânsia de mijar, de dar aquela urinada, mais ou menos como quando você, meninos, ficam segurando a vontade durante o futebol inteiro, as pernas contraídas, antes de voltarem pro intervalo da aula e depois se refestelarem no mictório do banheiro, pensem nessa sensação de dar essa mijada escandalosa como se fosse algo permanente, algo que não vai embora, e que persiste durante toda batalha. Ela dura tanto tempo que você se acostuma com ela, e quando vai mijar de novo, quando vai mijar de verdade, fica parado um tempão na frente da privada, sem saber se tem mesmo algo querendo sair dali ou não. E pode acontecer até de a vontade continuar com você, mesmo depois de ter esvaziado a bexiga. Conseguem imaginar algo assim? Talvez outros tenham desfrutado a guerra de maneira mais relaxada ou prazerosa do eu, porque a guerra em que lutei, fazendo o que eu fazia… Pra alguns deve ter sido divertido, eu não duvido! E olha, nunca me chamaram de covarde. Nada disso está em jogo. Nada a ver com covardia, bravura. É tão raro alguém encontrar alguma oportunidade que seja pra provar o próprio valor… Qualquer um pode ganhar ou perder medalhas! E se essas sensações não falharam comigo, que era um soldado, eu não quero nem saber como é que deve ser com os que estão desarmados, as pessoas comuns, as que chegam a abandonar o próprio país. Pois bem, como eu dizia! A segunda sensação crianças, como eu dizia!, também deve ter já acontecido com alguns de vocês. Isso é importante. Todos devem se lembrar. Envolve você, qualquer um, menino, menina, você, a sua família, e um supermercado, ou uma feira, que seja, a festa junina, e envolve você perder-se deles. É sempre por um breve momento até que se resolva, mas a duração é o bastante para que se cogite o fato de que nos perderemos para sempre, porque há evidências, não há? Todos sempre ouvimos falar de crianças que são sequestradas e que são separadas para sempre de seus pais. Imagine que entre os soldados que lutam juntos há algum tempo, todos são a família de todos. Então é mais ou menos como quando vamos aos lugares grandes, shows, carnavais, por exemplo, e ficamos preocupados de as pessoas não irem muito longe e se perderem, porque na guerra, se elas se perderem, elas nunca voltam, os da nossa família.

1. – Esse diálogo aconteceu em 1982, o que explica que as crianças ainda brincassem na rua, e não com os seus tablets e videogames em apartamentos cinzentos.


Imagem: Robert Knox Sneden

ascenção e queda do bidê, parte 2

 

Há quem diga que o bidê, após o acoplamento da ducha, tenha se tornado o instrumento mais capaz e o maior responsável dentre os dispositivos modernos a dar uma dimensão verdadeiramente nova de significados à palavra “analógico”. O seu uso ancilar à higiene no século XX chegou até mesmo a tornar-se obrigatório em alguns países, como a Itália. Costumava instalar-se no quarto, de onde foi demovido, passando depois a habitar os banheiros. A origem da palavra vem do francês “bidet”, ou “bider”, que quer dizer “trotar” – uma óbvia comparação à posição em que montamos num cavalo sugere que também estaríamos montando este valoroso utensílio doméstico, que hoje, após a cansativa saga dos anos 80 e 90, sobrevive em grande parte dos apartamentos de classe média funcionando como um depósito de revistas velhas, em cujo acervo deveriam certamente constar algumas edições clássicas da Revista Isto É, Época, ou Veja, e Playboys da época em que vaginas ainda tinham pelos, sempre no fundo mais inalcançável da pilha de revistas que, erguendo-se de dentro do bidê, parece não ter fim. A comparação é pertinente. O coice proporcionado pela forte propulsão de alguns bidets que experimentei já me fez sentir violado.

Quando colocados ao lado da privada, em banheiros de menor espaço, distintos dos banheiros modelo europeu, podem acabar levando crianças ou idosos com problemas de vista a confundi-los com a própria privada, e as fezes, ao contrário de boiarem no confortável reservatório de água da privada, escorreriam pela fria louça do bidê antes de esvoaçarem pelo banheiro quando o defecante girasse a válvula pensando em ativar a descarga e, sem saber, desse vazão à água que, com forte impulso, saltaria pra fora do bidê, onde antes estava acostumada a entrar na cavidade anal ainda mais ou menos suja do defecante em questão e exercer ali o seu poder de limpeza, agora voaria livre, levando consigo dejetos nunca dantes vistos.

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Vaticínios

RWS_Tarot_05_Hierophant – Há boatos bem convincentes que dizem que as últimas palavras do rei Mitradates II, do Império Arsácida, foram: “Os tigres já estão alimentados?”.

– Até 2020, cientistas japoneses prometem ter dominado a engenharia genética a ponto de conseguirem produzir em laboratório um cão que emite sinal de wi-fi. A rede não deverá ter senha.

– Brodowski, terra de Portinari, no início do século XX, era bem mais perigosa do que qualquer cidadezinha do velho Oeste americano.

– Polvos representam 11% dos animais abduzidos por alienígenas.

– A atividade da usina hidrelétrica Três Gargantas, construída na China, retardou a rotação da Terra.

– Cientistas da Universidade da Califórnia suspeitam que alguns odores sejam capazes de viajar através do espaço-tempo.

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Cérebros Funcionais

Last exit to Babylon

“A vida. Ela não fará sentido se eu não puder, depois de morto, transferir meu cérebro para outra forma de vida. Eles congelam seu corpo até conseguirem ter tecnologia suficiente pra isso. O cérebro, preservado, quero que o coloquem depois num carro. Se não tiver grana suficiente na poupança, me botem num Aspirador-de-Pó viciado em pó. O carro, bem musculoso, apaixonando-se por outros carros, esfregando-se em outros carros, outras traseiras, rabôs-de-peixe ou capôs-de-fusca, os pneus subindo nos capôs encapotados, ou então conversíveis, tudo pra que eu pudesse sentir o que sentiria um carro quando estivesse com tesão, pois que se os carros sentissem tesão uns pelos outros, o orgasmo coletivo das ruas das metrópoles futuras seriam revoluções puerperais de efeitos indeléveis às contas públicas, e isso obrigaria os governos a adotarem meditas proibitivas em relação ao orgasmo dos veículos, criando, para tanto, provavelmente um índice capaz de medir a porcentagem de revolução latente em cada gozo e um órgão público pra fazer valer a lei do índice, e cada esporrada teria de, a partir de então, ser, pelo menos, um pouco mais contida, um pouco mais adequada às regras de convívio impostas pelos orgasmos humanos, muito mais insossos e secos que os lubrificados e equinos orgasmos automobilísticos, só que, e isso há de se levar a sério, sabendo disso tudo, alguns poucos Exploradores de Orgasmo poderiam muito bem começar a fazer isso meio que na clandestinagem, os safardanas, eles bem poderiam começar a criar Clubes de Gozo para os Automóveis mais boêmios, mais subversivos, mais dispostos a chegarem até a quinta ou sexta marcha do Orgasmo, pra depois descansar na banguela em ponto-morto, e depois engatar no tranco de novo, de repente, e isso tudo disponível também para aqueles que, mais reprimidos, quisessem se soltar um pouco mais de vez em quando, eles também montados em pneumáticos, nas lanternas-de-freio e eixos-cardãs alheios, inalando quantidades de fumaça de escapamento que Stuart Angel nenhum botaria defeito. O desempenho, também dependeria muito do combustível. E quem é que consegue pensar em combustível no Brasil sem pensar que o preço da parada só tem aumentado desde que o mundo é mundo? Coloquem-me então num Aspirador-de-Pó, ou num Saca-Rolhas. O orgasmo de cada eletro-doméstico-inteligente do futuro será alcançado toda vez que algum outro humano, ou então o próprio eletro-doméstico-inteligente, executar a função para a qual o eletro-doméstico em questão foi projetado. Um liquidificador-inteligente terá um orgasmo toda vez que destruir os ingredientes que porventura caíam em suas hélices, por exemplo. Imagine o orgasmo de um Saca-Rolhas?”

O Verme dos Rochedos.

Estejam atentos

ET-Biberman

“- Por que é que alguém tem uma ‘visão melhor sobre as coisas’? Por que é que, quando exigimos mais objetividade, falamos em clareza? Associamos a lucidez ao bom olhar, à boa visão, a visão do caçador. Ao passo que todos pensam em limpar a vista, também há quem fale em desentupir os ouvidos. Já houve quem confundiu o som de tiros de canhão com o de um terremoto, mas não se esqueçam: há uma doença comum entre os especialistas da leitura labial, que só é adquirida após muitos anos de trabalho. Alguns chamam isso de problema de imaginação, ao mesmo tempo em que o que ocorre é um verdadeiro excesso dela, provocado pelo acumulo dos anos em que o indivíduo passou lendo os lábios alheios. A noção de diferença foge em direção ao que se diz e o que se quer que seja dito, o que pode ser dito, os movimentos feitos pela boca. A vítima começa a ver semelhanças em tudo, e passa a, literalmente, inventar os diálogos que pensa ter lido, quando alguma semelhança indica a ela que já pode ter ouvido isso em algum lugar. Alguns chamam isso de enfermidade, outros de síndrome. O cérebro torna-se preguiçoso. É como quando tentamos resolver apenas de cabeça certas operações matemáticas que já conhecemos. Os referenciais derivados das experiências anteriores acabam impedido que outros apareçam. A leitura labial é uma técnica bem apurada. Há alguns truques e segredos que esses heróis desenvolveram para evitar a perda dos referenciais. Não percam de vista a língua, nem o olhar. Evitem as semelhanças. Já lidei com inimigos que treinaram o suficiente para conquistarem o divórcio dos olhos com a boca, conseguindo assim enganar os que os leem, levando-os a crer, pelo olhar, que disseram algo triste, ao passo que todos em volta deram risada. Mais ou menos como aquela música dos Bee Gees: I Started a Joke.”

Problemas com a Aviação

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“O senhor, no seu estabelecimento, também tem enfrentado problemas com aviadores?”.

“Sim. Semana passada abati dois deles no banheiro feminino, que é quase sempre onde os encontro. Procurei o controle de pragas, mas eles disseram que a aviação não é problema deles.”

“Tinha um senhor a quem sempre recorríamos nesses casos, mas ele já se aposentou, e ninguém o substituiu. Tinha um certo amor pela profissão, e cobrava mais barato também. Costumava atender aqui nas redondezas.”

“Acho que isso é tudo culpa do clima. Pode ser que, com as chuvas que vão entrar agora, essas pragas dêem uma sumida. O tempo tem estado muito seco.”