guerra nuclear e pornografia

No dia 13 de janeiro de 2018 a Agência de Gestão de Emergências do Havaí, muito imprudentemente, cometeu um erro, e disparou um alerta nuclear por toda a região do Oceano Pacífico sob jurisdição americana.

O contexto político de troca de ameaças entre os líderes americano e norte-coreano nos últimos meses tem se tornado de fato um pouco mais tenso, de modos que não seria completamente inverossímil a deflagração de um ataque nuclear da parte dos orientais, de quem já ouvimos, por exemplo, que a guerra estava declarada.

Entretanto, o alerta havia sido emitido graças ao erro de um funcionário da Agência. Precisamente 38 minutos depois, o governo desmentiu a notícia, e os cidadãos do Havaí puderam retomar suas rotinas.

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o problema da literatura contemporânea segundo um velho sábio persa

“[…] o discurso que ouvira, em minha mocidade, quando de minha primeira estada na Pérsia, num dia em que assistia a uma reunião de intelectuais, na qual se discutia sobre a cultura contemporânea.

Entre os que mais falaram nesse dia, estava um velho intelectual persa – intelectual, não na acepção europeia da palavra, mas no sentido que se lhe dá no continente da Ásia, isto é, não somente pelo saber mas pelo ser. Era, aliás, muito instruído e possuía um profundo conhecimento da cultura europeia.

Disse, entre outras coisas:

‘É muito lamentável que o período atual de cultura – que denominamos e será denominado pelas futuras gerações civilização europeia – seja intermédio, por assim dizer, na evolução da humanidade; em outros tempos, que seja um abismo, um período de ausência no processo geral de aperfeiçoamento humano, uma vez que os representantes dessa civilização são incapazes de transmitir a seus descendentes, como herança, qualquer coisa de válido para o desenvolvimento da inteligência, esse motor essencial a todo aperfeiçoamento.

Assim, um dos meios principais de desenvolvimento da inteligência é a literatura.

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o efeito forer

A primeira vez que ouvi falar sobre “validação subjetiva” deve ter sido em uma reportagem na Revista Galileu. O artigo dedicava-se a abordar o fenômeno como um viés cognitivo capaz de localizar em sistemas reais uma quantidade de informação compatível com o sistema de crença pessoal de cada um, ao mesmo tempo em que transforma em ruído qualquer informação que contrarie a lógica embutida no resultado de tal operação. Resumindo: uma estratégia psicológica pra validarmos coisas que já acreditamos, recolhendo e interpretando arbitrariamente informações que parecem se adequar àquilo que queremos. Os inúmeros casos de paranoia social e a reincidência de teorias da conspiração seriam demonstrações genéricas e vulgares deste fenômeno, além de, claro, qualquer outro tipo de ideologia contemporânea que ouse adquirir alguma popularidade na Internet.

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há Marte em Água, digo…

MartianChronicles05

Se estamos certos em afirmar que o diálogo estabelecido entre a imaginação e a ciência funciona mais ou menos segundo um esquema que prediz que o que uma pensa ou intui em uma época, a outra tem por dever inventar ou conhecer na época seguinte, neste século sinistro e terminal talvez que a equação tenha se invertido um pouco, e decadentes que estão as nossas poéticas, não é cedo nem tarde invertermos os fatores pra sugerir que, depois desta última descoberta, se a ciência pretende continuar expandindo suas fronteiras, faz-se necessário que a imaginação a acompanhe.

Soa enfadonho e apocalíptico cogitar que a imaginação humana tenha envelhecido, e que o acúmulo dos séculos tenha transformado a nossa experiência, o nosso convívio, em uma espécie de demora, de atraso. A enorme carga de autoconsciência histórica é um componente obrigatório em qualquer enunciado filosófico, mas o fardo dos tempos não pesa apenas nas esferas sociológicas. Seu peso é sentido também entre aquelas artes que, há pouco tempo, conseguiam articular em um âmbito estético toda a paixão e o impulso que catapultavam as vontades de liberdade, de paz, de evolução da consciência, todo o deslumbramento oferecido pelas novas substâncias alucinógenas, como o LSD, naquele breve respiro de vinte anos após o holocausto, antes da curva descendente de um belíssimo e colorido espírito de época que desaguou na cocaína e nos anos 80. Os sonhos não envelhecem – morrem.

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a necessidade de narrar os sonhos

A literatura que recorre ao sonho enquanto matéria-prima ou fonte para a elaboração de narrativas é abundante, farta.

O livro que tenho em mãos é o diário de sonhos de Georges Perec, La boutique obscure, traduzido para o espanhol (porque o livro não existe em português) como La cámara oscura [Editora Impedimenta, 2010; tradução de Mercedes Cebrián].

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luv, dmt, secreções ectoplásmicas & o Nepal

katmandu

“Dois anos antes, durante a primavera e o verão de 1969, morei no Nepal e estudei a língua tibetana. A onda de interesse por estudos budistas estava apenas começando, de modo que nós, que estávamos o Nepal querendo aprender tibetano, éramos um grupo unido. Meu objetivo ao estudar tibetano era diferente do da maioria dos ocidentais envolvidos com a linguagem no Nepal. Quase todos estavam interessados em algum aspecto do budismo Mahayana, ao passo que eu me sentia atraído pela tradição religiosa que antecedeu, no século XVII, a introdução do budismo no Tibete.

Essa religião pré-budista do Tibete era uma espécie de xamanismo estreitamente relacionado com o xamanismo clássico da Sibéria. O xamanismo do povo tibetano, chamado de Bön, continua a ser praticado hoje em dia na área montanhosa do Nepal que faz fronteira com o Tibete. Seus praticantes são em geral desprezados pela comunidade budista, vistos como heréticos e, geralmente, como pessoas de baixo nível.

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ascenção e queda do bidê

bidet

Foi mesmo o modernismo quem transformou em piada esse negócio de mobilizar um grande aparato teórico pra levar adiante a análise de uma banalidade? Ascenção e Queda do Bidê; A Extinção do Touro-Mecânico; Genealogia da Uva-Passa; coisas assim. Quem foi que riu primeiro? Haveria de ser necessário que, antes, chegássemos à hipótese de que não há banalidades, simplesmente porque não há nada abaixo da superfície? Certo está, que foi antes dos historiadores tornarem isso um ofício. Há quem goste de pensar que, em termos literários, Ulysses, de Joyce, seja o êxito (e fracasso) máximo desse tipo de vontade. Uma piada seríssima. Uma piada e a gargalhada, às vezes relaxada às vezes desesperada, de quem riu da própria piada.

Tendo sido o modernismo ou não, a piada persiste até hoje nos circunscritos meios intelectualizados, às vezes servindo até como exercício literário-criativo: tergiversar sobre o nada, sobre aquilo que se confunde com o nada, recorrendo, para tanto, se e quando necessário, aos clássicos e cânones do pensamento e das letras – tornar interessante, e engraçado, aquilo que é ordinário e banal, mas de um modo que o esforço por tornar este algo em algo interessante não fique tão nítido a ponto de soterrar, com o excesso de estilo, a superficialidade transcendental de um caroço de azeitona, por exemplo, ou do cheiro do esmalte, ou dos processos fisiológicos humanos. A literatura, assim, é mais um esforço de criar o extraordinário do que de relatá-lo, esta que seria sua função original.

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anatomia de uma obra

eric fischl

O romance do escritor luso-argelino Aconcágua Mem, intitulado Looping Roliço (Editora Ventre & Vida), de 2011,  tornou-se, há pouco tempo, objeto de culto por uma parte da crítica literária especializada em coisa alguma, três anos após uma estreia que, ninguém discorda, passou-se bem desapercebida. A obra chamou a atenção daqueles que a leram, um grosso volume de 884 páginas, especialmente depois que Aconcágua supostamente deu-se por desaparecido seis semanas após o seu lançamento, tendo sido visto pela última vez em um café, em Medelín, a cidade colombiana em que residia.

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8 de Março

22-Lacemaker

Katherine, a rendeira mulher amante

“Nasceu em meados do século quinze, na rua de la Parcheminerie, próxima à rua Saint-Jacques, num inverno em que fez tanto frio que os lobos correram em Paris sobre a neve. Recolheu-a uma velha mulher, de nariz vermelho sob o capuz, que a criou. E de início ela brincou sob os pórticos com Perrenette, Guillemette, Ysabeau e Jehanneton, que usavam pequenas cotas e mergulhavam nas valetas as mãozinhas vermelhas para pegar pedaços de gelo. Também observavam os que lesavam os transeuntes no jogo de tabuleiro chamado Saint-Merry. E, nos alpendres, espiavam as tripas dentro das selhas, e as compridas salsichas balançantes e os enormes ganchos de ferro em que os açougueiros penduram a carne. Nas proximidades de Saint-Benoît le Bétourné¹, onde ficavam os scriptorium, escutavam o ranger das penas, e ao entardecer, pelas frestas dos ateliês, sopravam as candeias na cara dos clérigos. Na Ponte Pequena, escarneciam das peixeiras e escapuliam ligeiro para a praça Maubert, escondiam-se nas esquinas da rua de Trois-Portes; então, sentadas à beira da fonte, tagarelavam até as brumas da noite.

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Os futuros pretéritos

Faz sentido medir a qualidade de uma obra de ficção a partir da quantidade de previsões “acertadas” que seu autor fez em relação ao futuro? Acho que se 1984 ou Admirável Mundo Novo possuem alguma qualidade, ela certamente não se destaca de sua forma literária.

Acho que toda obra destinada a falar do futuro, por mais trágico ou belo que ele seja, acaba produzindo visões maravilhosas. O mundo improvável que entrou na obra, que ali no texto se viu traduzido traduzido, e ninguém, autor ou profeta, previu nenhum futuro que já não estivesse se anunciando no presente em que ele foi visto ou antecipado.

Os germes, os desdobramentos de certas ideias que ecoam e que vão acrescentando acentuações ou grafias diferentes em cada pronúncia, muita literatura é feita simplesmente disso. A ninguém cabe o monopólio deste ofício – quantos mundos irrealizáveis o próprio mundo real produz? Da genialidade convém dizer que não há nenhum atributo mais execrável, e  dentre os seus adoradores destacam-se aqueles que outorgam aos seus gênios dotes mais ou menos proféticos – até mesmo a ideia de que estariam eles “à frente de seus tempos”.

Acho que os cabalistas teriam algo a dizer sobre isso, sobre a necessidade das coisas absolutas se adequarem ao tempo terrestre: o mundo não permite vestimentas inadequadas. Se o tempo é uma ilusão, não há futuro a ser previsto, posto que não há uma sequência plausível de eventos. Tudo já está, infinitamente estendido por sobre uma eternidade feita de instantes coincidentes.

Mas de que serve pensar assim?

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