Cada conversa possui, é claro, um certo grau de fertilidade em seus significados. E pode ser que, realmente, este grau aumente com o tempo, de modos que passemos a fertilizar os nossos diálogos de acordo com a dimensão psicológica que adquirimos ao longo da vida, na medida em que amadurecemos ou aprofundamos as nossas ideias, noções, princípios – os nossos enunciados.
Em se tratando de conversas, existem aquelas que travamos com os outros e aquelas que travamos com nós mesmos. Monólogos, diálogos, triálogos.
Mas não estaríamos errados em supor que há ainda um outro gênero de discussão. Pois qual? Aquele ao qual pertencem os diálogos que se transformam em monólogos. Ou melhor: as conversas e discussões que continuamos tendo conosco depois que a participação de um outro se encerrou.
Os franceses possuem uma expressão muito conhecida, L’esprit de l’escalier, que significa algo como “o espírito da escada”. Como não pretendo oferecer nenhuma definição original para o termo, copio a explicação da Wikipédia:
Ela representa pensar em uma resposta esperta quando já é tarde demais. A frase pode ser usada para descrever uma resposta a um insulto, argumento ou comentário inteligente ou esperto do interlocutor que chega tarde demais para ter alguma utilidade. Depois de ir embora, (descendo a escada da tribuna – daí a origem da expressão), encerrar o encontro (tarde demais) a pessoa encontra a frase justa que teria sido a resposta necessária para seu oponente. O fenômeno é geralmente acompanhado por um sentimento de arrependimento por não ter pensado na resposta quando ela mais era necessária ou adequada.
O espírito da escada também poderia ser uma frase que poderia ter decidido a discussão se não fosse pelo fato de já ser tarde demais.
Levemos em conta, então, a possibilidade de que uma sensação como essa é muito mais comum do que se imagina, não tanto porque nos faltam as respostas e que as discussões se interrompam, mas porque o significado deste outro gênero de discussão é fertilizado proporcionalmente pela nossa introspecção, ou seja, nossa tendência psicológica para ruminar e revisitar certos significados a partir dos quais a nossa vida parece se desdobrar.
Aquilo que ouvimos continua por ressonar no núcleo da nossa memória, se inscreve na nossa duração. Muito depois de que se imagina encerrado o diálogo, a conversa continua, se prolonga – e um assunto que demandava, ao menos, dois sujeitos para existir, chega ao fim de uma existência local, espacial, os sujeitos se despedem, e a coisa passa a existir de outra forma numa outra dimensão, talvez apenas temporal, no universo interior de cada um deles, agora separados do encontro original.
Se todo diálogo nasce portando uma sexualidade hermafrodita primordial, sua existência individual é resultado de uma cisão, talvez, também sexual, limitada pelas grandezas da personalidade, do intelecto e da intuição daqueles que levam este hermafrodita adiante. Talvez, por isso, todo raciocínio cujo significado seja de algum modo um tanto profundo, parece portar uma certa nostalgia de se reintegrar no entendimento de um outro ao qual a conversa se devolve – condição fulcral dos processos de individuação.
A questão é essa: às vezes, muito tempo depois de terminada uma conversa, a relação se rompe, nunca mais as vozes se encontram e, mesmo assim, a discussão sobrevive – talvez porque o seu significado era rico, nutritivo o bastante para que continuasse alimentando o pensamento. Que seja um amigo, uma pessoa que existiu apenas num encontro único, mas a circunstância é que essa pessoa passa a habitar o pensamento a partir deste diálogo. Aquilo que era uma pessoa dotada de materialidade, solidez, vontade e impenetrabilidade, se torna então a personagem de um diálogo-convertido-em-monólogo – fenômeno da intelecção que se manifesta internamente muito depois de encerrada a colaboração local entre o eu-sujeito e o outro-interlocutor.
E agora que este outro interlocutor não mais participa fisicamente da construção deste diálogo-monólogo, ele passa a existir apenas como um interlocutor ideal ao qual atribuímos objeções e posicionamentos que seriam opostos aos nossos. Sua imagem se torna o receptáculo de uma voz dissonante, e passa a funcionar como um sinal refratário dos significados que busco conscientemente e que estou interessado em defender nesta conversa que se prolonga para além da conta. A guarnição imaginária em que eu o posiciono parece se apresentar, então, como a referência contrária daquilo de que necessito para fazer sentido, ou seja, aquela certeza de que preciso para me convencer de qualquer coisa. A referência pode, ainda, se tornar permanente, conquanto sintetiza toda uma diversidade de manifestações do mundo num único conceito. Dizendo de forma mais simples: é perfeitamente plausível que uma conversa infeliz com alguém que defenda uma posição política completamente adversa à minha servirá de modelo para os próximos encontros com pessoas que defendem posições semelhantes. Todos aqueles argumentos que eu botar à prova deste interlocutor (que agora é) imaginário, poderão, no futuro, ser endereçados aos interlocutores reais que correspondam mais ou menos a este “modelo”.
O exemplo acima diz respeito à política, mas esse outro gênero de discussão pode, afinal, nascer de qualquer assunto. Pode envolver um relacionamento, uma disputa esportiva, religiosa – as condições de sua germinação são, no final das contas, sempre as mesmas: muita coisa ficou por ser dita. Mesmo que não soubéssemos disso, sua fertilidade era, de certo modo, virtual, potencial. Pode ser que nos levasse a algum lugar – como podia ser que não. Sofrimento ou graça. Se essa conversa continua sendo travada muito depois é porque muita coisa ficou por ser dita.
Sua virtualidade, ou então o seu potencial, se deve ao fato de que muitos significados poderão ser produzidos ou acessados somente muito depois – como também poderão não ser -, justamente porque esse diálogo continuou se recriando dentro da nossa cabeça, se desdobrando numa geometria de sentidos, se acoplando a novas informações e experiências. Agora que ele é cultivado internamente, enquanto monólogo, dentro dos nossos poderes de criar e recriar cenas e cenários, ele passa a servir de terreno para a testagem de hipóteses lógicas e semilógicas diante de uma constelação de mensagens e possíveis destinos – recursos derivados de um núcleo de significado que já estava contido no diálogo original, provavelmente enquanto semente. Este núcleo não é, todavia, uma criação individual: a participação de um outro sujeito foi fundamental para que ele pudesse vir a ser. Seu cultivo ao longo do tempo pode também ser celebrado, acolhido, enquanto prestamos à sua cultura uma homenagem perpétua – os encontros benfazejos da nossa existência, estas nossas visitas sagradas à verdade.
Mas quantas são, na frequência de uma vida, as conversas dignas de serem abençoadas com a longevidade?
O espírito da escada, a expressão e o significado guardam em si mesmos referências ao mundo competitivo daquelas discussões carregadas de vaidade, presunção, arrogância, discordância, conduzidas pela obsessão de uma disputa em torno da verdade – de uma disposição beligerante voltada para o convencimento do interlocutor. Cada degrau que descemos aponta para aquisição de uma nova plataforma de consciência, e, ao contrário do que a visão de uma descida sugere, cada novo degrau também proporciona um desnível favorável de entendimento em relação ao estado anterior. O arrependimento não é obrigatório. A aquisição de consciência convive, por isso mesmo, com os riscos de um beco sem saída psicologizante, depressor e paranoico. O esclarecimento, contudo, a compreensão do evento original a partir da exploração dos seus muitos lados, descendo sempre mais um pouco, parece se desdobrar num sentido contrário ao daquele que se produz no lugar-comum de uma vista panorâmica. Pois, inversamente ao que diz Stevie Wonder, na introspecção o entendimento se dá by standing on a lower ground.
Mas e se este espírito da escada que mencionamos antes fosse, na verdade, muito mais orgânico, situado em algum lugar entre a vitalidade e a psicologia coletiva? E se ele fosse, em tese, aquela chance de uma telepatia residual dentro da qual se dispõem as grandezas necessárias para um processo de individuação permanente? E se essa conversa que travamos com nós mesmos, portanto, não se interrompesse nunca? Ora, e se essa conversa tivesse surgido, na verdade, de um trauma, e não apenas de uma discordância? Outrossim, em tese, não houve conversa inicial alguma, mas um evento violento, uma complicação que passou a existir e a persistir no indivíduo enquanto diálogo-monólogo interior, sendo constantemente submetida ao assédio de sua própria consciência, o proto-exame de uma impressão que continua reverberando: eis a razão pela qual falamos sozinhos. Algo ficou por ser dito, um trauma que não foi vivido na sua intensidade quando de fato aconteceu.
Por outro lado, pensando bem, é claro que podemos, então, nos esquecermos do conteúdo preciso de cada discussão. Ninguém se lembra do autor de cada frase, quem foi que disse o quê, e de que forma, e quais palavras foram exatamente usadas, em qual ordem se dispuseram. O tempo passou, seu tronco se ramificou em galhos muito distantes do eixo central. Cada chance de reconstruir a conversa original resultou num sentido final diferente: a ordem dos fatores alterou o produto. A personalidade se estende por sobre lacunas, palácios de silêncio que no intervalo de uma noite ou de um lapso se redecoram com mobílias novas eternamente estranhas e eternamente reconhecíveis. Existe uma margem, portanto, e ela varia de uma situação para outra, de uma pessoa para outra, e é dentro dessa margem que podemos atribuir novos significados a este diálogo-monólogo. Não temos um corrimão que nos sirva de apoio. Depois de muito tempo, é verdade, a depender dos nossos hábitos, pode ser que tenhamos reconstruído totalmente o diálogo original em nossa imaginação, chegando mesmo a inverter os lados, ter trocado de posição com o nosso interlocutor, o que era uma descida se tornou uma subida e, por meio de um gesto de absoluta nobreza em sua reverência e em seu tributo, passamos a defender aquilo que os nossos adversários defendiam antes – e, sem que eles possam vir a saber um dia, para o incremento de sua glória, teremos feito isso apenas para nós mesmos, na faina mental das nossas cavilações.