Cérebros Funcionais

Last exit to Babylon

“A vida. Ela não fará sentido se eu não puder, depois de morto, transferir meu cérebro para outra forma de vida. Eles congelam seu corpo até conseguirem ter tecnologia suficiente pra isso. O cérebro, preservado, quero que o coloquem depois num carro. Se não tiver grana suficiente na poupança, me botem num Aspirador-de-Pó viciado em pó. O carro, bem musculoso, apaixonando-se por outros carros, esfregando-se em outros carros, outras traseiras, rabôs-de-peixe ou capôs-de-fusca, os pneus subindo nos capôs encapotados, ou então conversíveis, tudo pra que eu pudesse sentir o que sentiria um carro quando estivesse com tesão, pois que se os carros sentissem tesão uns pelos outros, o orgasmo coletivo das ruas das metrópoles futuras seriam revoluções puerperais de efeitos indeléveis às contas públicas, e isso obrigaria os governos a adotarem meditas proibitivas em relação ao orgasmo dos veículos, criando, para tanto, provavelmente um índice capaz de medir a porcentagem de revolução latente em cada gozo e um órgão público pra fazer valer a lei do índice, e cada esporrada teria de, a partir de então, ser, pelo menos, um pouco mais contida, um pouco mais adequada às regras de convívio impostas pelos orgasmos humanos, muito mais insossos e secos que os lubrificados e equinos orgasmos automobilísticos, só que, e isso há de se levar a sério, sabendo disso tudo, alguns poucos Exploradores de Orgasmo poderiam muito bem começar a fazer isso meio que na clandestinagem, os safardanas, eles bem poderiam começar a criar Clubes de Gozo para os Automóveis mais boêmios, mais subversivos, mais dispostos a chegarem até a quinta ou sexta marcha do Orgasmo, pra depois descansar na banguela em ponto-morto, e depois engatar no tranco de novo, de repente, e isso tudo disponível também para aqueles que, mais reprimidos, quisessem se soltar um pouco mais de vez em quando, eles também montados em pneumáticos, nas lanternas-de-freio e eixos-cardãs alheios, inalando quantidades de fumaça de escapamento que Stuart Angel nenhum botaria defeito. O desempenho, também dependeria muito do combustível. E quem é que consegue pensar em combustível no Brasil sem pensar que o preço da parada só tem aumentado desde que o mundo é mundo? Coloquem-me então num Aspirador-de-Pó, ou num Saca-Rolhas. O orgasmo de cada eletro-doméstico-inteligente do futuro será alcançado toda vez que algum outro humano, ou então o próprio eletro-doméstico-inteligente, executar a função para a qual o eletro-doméstico em questão foi projetado. Um liquidificador-inteligente terá um orgasmo toda vez que destruir os ingredientes que porventura caíam em suas hélices, por exemplo. Imagine o orgasmo de um Saca-Rolhas?”

O Verme dos Rochedos.

Espirais Políticas

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É triste, e até mesmo um tanto inevitável, que uma pesquisa pela Internet contendo os caracteres ‘Agosto’ e ‘Rubem Fonseca’ acuse uma quantidade gigantesca de resumos preparatórios para o vestibular, e quase nenhum artigo realmente importante que tenha se dado conta de um valor que, neste livro, vai muito além daquele esperado pelas exigências de uma prova. É quase como se, ao colocarem o romance numa lista obrigatória de vestibular com a bela e nobre justificativa de canonizá-lo ou, o que é mais plausível, de obrigá-lo à leitura da população, todo o seu conteúdo acabasse se limitando a estas mesmas exigências, a ponto de fazer parecer que o livro existe apenas para isso. A verdade é que nada disto importa. Agosto, romance de Rubem Fonseca publicado em 1990, talvez, tornou-se obrigatório porque é, provavelmente, o livro mais famoso dentre aqueles que se dedicaram ao tema da entropia e da paranóia política que de vez em quando, em certas situações bem específicas, aflora na opinião pública brasileira.

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Odisseias

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“Quando em 1934 atravessei sozinho o deserto de Iguidi, tendo por única companhia um casal de borboletas, ocorreu-me a aventura mais surpreendente que pode acontecer a um homem vivo ou morto, e procurarei resumir em três linhas. Foi o caso que um dia despertei transformado em mulher e, nessa qualidade, fui pouco depois recrutado para o harém do sultão de Marrocos, onde servi como pude durante um ano e 14 dias. (Minha experiência nesse setor só deve interessar a mim mesmo, e manda o recato que eu me abstenha de entrar em maiores detalhes sobre o assunto, a menos que a isso me obrigue a minha consciência na hora derradeira).

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Em Negativo

casamento

“Houve um tempo em que deixei crescer a barba, tinha tanta vergonha de ser branco que procurava escurecer-me de qualquer jeito – foi muito antes da guerra. Usava luvas também, a pretexto de frio: e eu sentia mesmo um frio por dentro, só de pensar que me haviam feito branco. O cabelo, esse sempre me ajudou bastante, aos 15 anos já era carapinha, não fosse minha mãe quem era e eu nem sei o que teria pensado: ou então eram as raízes dele que conheciam o meu sentimento e foram muito além do que fui: de qualquer forma um mistério.

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Nullus

Scalping of Jane McCrea

“Não me são muito claras as razões pelas quais anulei meu voto na eleição para presidente. Não foi a primeira vez. 2010 havia sido a mesma coisa. Uma diferença era incapaz de passar despercebida: na eleição anterior eu sabia desde o início que iria anular o voto. Em 2014 a coisa foi outra: assumi, inclusive publicamente, que iria votar na Dilma desde que soubera que o segundo turno seria disputado entre ela e o Aécio. Defendi suas propostas, argumentei em reuniões de família. Se algo me deixou longe das redes sociais foi como uma espécie de preferência pela limpeza, pela discrição, e pela desconfiança. Apenas no último dia foi que me resolvi pelo voto nulo.

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Notas sobre o Deserto Patagônico

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– Kant diz que se o mundo é redondo e, portanto, finito, então as gentes são obrigadas a suportarem umas as outras, sem a opção de poderem debandar em direção ao infinito, caso o mundo fosse uma planura sem fim.

– Kepler dizia que os corpos celestes eram todos do mesmo tamanho. Talvez estivessem distribuídos em círculos. Sem um telescópio para observá-los com mais nitidez, ninguém, em sua época, pôde oferecer uma contestação mais fundamentada. A diferença de brilho, de uma estrela para outra, provinha da distância que nos separava delas – é o que ele pensava.

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Diagnósticos

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Se, no passado, a paranoia anticomunista justificou intervenções, hoje tal discurso não deixa de clamar por salvadores. Mas, se o comunismo, num cenário de 50 anos atrás, existia enquanto ameaça real, pertencente a um contexto de Guerra Fria, hoje, aquilo que os seus inimigos temem e atacam não é senão uma farsa. Aqueles que se opõem ao PT recorrem a motivos praticamente simétricos: os que enxergam no partido o germe da vontade comunista estão a ver uma caricatura de feições exageradas; os que o entendem como um veículo burguês que traiu suas bases operárias têm diante de si uma deformidade, uma anomalia.

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“Yo no estoy completo de la mente…”

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Insensatez, o romance do salvadorenho Horacio Castellanos Moya, é, no mínimo, desconcertante. Escrito em 2004, o movimento que parece ilustrar as poucas páginas do livro (155, ao todo) é um debruçar vertiginoso sobre a violência e as incicatrizáveis feridas da América latina – e consequentemente de sua própria literatura. Mais do que isso, é também um potente testemunho do poder e da responsabilidade da leitura, ao mesmo tempo em que aponta certas tendências literárias do nosso tempo.

A história: narrador, cujo nome nunca é revelado, espécie de alter-ego de Moya, aceita a tarefa de ir a algum país da América Central (Guatemala) revisar certos documentos que tratam do massacre das populações nativas – massacre este perpetrado pelo próprio exército guatemalteca ao longo de mais de vinte anos de genocídio. O trabalho faz parte da iniciativa de uma diocese local interessada em expor a matança para os órgãos internacionais que se dedicam às questões que envolvem os direitos humanos. A recompensa pelo serviço prestado envolve uma quantia de mais ou menos cinco mil dólares. Trata-se, portanto, do romance de uma leitura – a leitura, feita pelo narrador, de um passado sangrento perpetuado em relatos que, muitas vezes, acabam ganhando dimensões ainda maiores nas vozes das próprias vítimas.

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O Deus Ready-Made

Marcel_Duchamp
“Perguntei a ele se acreditava em Deus.

Qual Deus? Acredito em Deus apenas enquanto problema filosófico. Nada disso de uma força ou uma entidade maior regendo a nossa vida. Nada de destino, ou de vontades divinas. As gentes depositam muita confiança nos grandes acontecimentos, as fatídicas reviravoltas. Dá a impressão de que estão criando lugares nos quais Deus pode se esconder. Há muito mistério por aí. Deus é um bem grande. Talvez que do problema filosófico possamos derivar um ente metafísico, mas o Seu estatuto ontológico jamais será por nós conhecido. E sabe por quê? Porque Ele pode ser tanto sujeito como objeto. Aquilo que conhece e Aquilo que pode ser conhecido. Isso inclui os banheiros do Clóvis (fecha a porta, Brás!), o pinto que mija na privada, a urina que sai do canal peniano &  até mesmo a água da privada que o recebe. É a Sua insignificância que me atrai. Imagine uma transcendência tão poderosa que seu poder seja confundindo com a banalidade, com tudo que é mais corriqueiro, inclusive com a feiura. E não falo dos feios, da feiura da gente pobre e com fome, porque até mesmo os santos padres, que almoçam e jantam direitinho, são todos bem caquéticos. Nada de bondade, nada de maldade. Um Deus ambíguo, que depende de combinações ainda mais transparentes quando quer se apresentar. Estou falando de certas ruas inconscientes onde os cidadãos deixam os animais mortos, ratazanas de aqueduto, vistas panorâmicas sobre valas mortuárias, sacos de lixo, eletrodomésticos aposentados, botijões de gás. Um Deus que não pede por altares, e que seria capaz de reprovar qualquer conduta. Digo até que, de um ponto de vista mais formal, a existência deste Deus, enquanto conceito, pode ser questionada. Por que não confundimos Deus com o Mundo? Até hoje não encontrei nenhum problema filosófico maior que Ele. Até mesmo o Homem, no campo do conceito, há de perder esta batalha. E mesmo assim, Seu valor pragmático continua absolutamente nulo.

Respondi-lhe que seu Deus já havia sido patenteado por um holandês que outrora fora excomungado. Hoje é muito mais difícil ser excomungado. A Santa Sé não se ocupa dos Deuses insignificantes dos balcões. As elegias já vêm acompanhadas de blasfêmias. Quando quis saber o nome do holandês, aleguei que eu o havia esquecido, ou que, na verdade, ele também não me revelara. Coisas de albergues guardados em mochilas de litros. A teoria do holandês, todavia, era um pouco mais simpática que a sua.

É uma pena que o tal holandês tenha patenteado algo tão vulgar. Este Deus já foi contemplado e sugerido por muita gente, até por cantores de rádio. Eu lhe disse: insignificante! Qualquer um, em qualquer lugar, em qualquer época, é capaz de acessá-lo.

Insignificante, banal, tens razão. E no entanto, não deixa de ser uma perspectiva muito poética.”

Estejam atentos

ET-Biberman

“- Por que é que alguém tem uma ‘visão melhor sobre as coisas’? Por que é que, quando exigimos mais objetividade, falamos em clareza? Associamos a lucidez ao bom olhar, à boa visão, a visão do caçador. Ao passo que todos pensam em limpar a vista, também há quem fale em desentupir os ouvidos. Já houve quem confundiu o som de tiros de canhão com o de um terremoto, mas não se esqueçam: há uma doença comum entre os especialistas da leitura labial, que só é adquirida após muitos anos de trabalho. Alguns chamam isso de problema de imaginação, ao mesmo tempo em que o que ocorre é um verdadeiro excesso dela, provocado pelo acumulo dos anos em que o indivíduo passou lendo os lábios alheios. A noção de diferença foge em direção ao que se diz e o que se quer que seja dito, o que pode ser dito, os movimentos feitos pela boca. A vítima começa a ver semelhanças em tudo, e passa a, literalmente, inventar os diálogos que pensa ter lido, quando alguma semelhança indica a ela que já pode ter ouvido isso em algum lugar. Alguns chamam isso de enfermidade, outros de síndrome. O cérebro torna-se preguiçoso. É como quando tentamos resolver apenas de cabeça certas operações matemáticas que já conhecemos. Os referenciais derivados das experiências anteriores acabam impedido que outros apareçam. A leitura labial é uma técnica bem apurada. Há alguns truques e segredos que esses heróis desenvolveram para evitar a perda dos referenciais. Não percam de vista a língua, nem o olhar. Evitem as semelhanças. Já lidei com inimigos que treinaram o suficiente para conquistarem o divórcio dos olhos com a boca, conseguindo assim enganar os que os leem, levando-os a crer, pelo olhar, que disseram algo triste, ao passo que todos em volta deram risada. Mais ou menos como aquela música dos Bee Gees: I Started a Joke.”