sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há 2 mil anos?

A pergunta-título deste ensaio surgiu durante uma conversa com um amigo meu, pastor da Igreja Assembleia de Deus. Perguntei a ele se sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há dois mil anos. A resposta dele foi um sonoro sim.

Independentemente da existência de Deus (e dos deuses) jamais ter sido comprovada pela ciência moderna, sabemos que os seres humanos são, naturalmente, criaturas dispostas a acreditar em seres superiores, em entidades sobrenaturais, e, sobretudo, num Criador.

É possível que essa crença se converta em conhecimento? É possível ir do crer em direção ao saber? Imagino que cada religião daria uma resposta diferente a esta pergunta. No caso cristão, as palavras de Justiniano parecem ecoar: credo quia absurdum – creio porque é absurdo.

Isso quer dizer que, mesmo com toda a teologia católica, protestante, muçulmana, hindu, nem mesmo com toda a graça, jamais seria possível que atravessássemos o véu dos mistérios divinos. Pelo menos não nesta vida, sob esta forma. Parece estranho, mas não temos como saber se sabemos ou não sobre Deus.

Então por que meu amigo pastor respondeu sim à minha pergunta?

Porque ele entende que hoje há um número maior de pessoas convertidas ao cristianismo, que o paganismo já não é uma ameaça, que há livros, publicações, e conhecimento circulando a respeito da religião cristã. De certo modo, ele quis dizer que o acesso à fé cristã é um incremento no saber sobre Deus – e, segundo ele, a História poderia provar isso.

Mas a minha opinião era outra, bem distinta, porque não estava interessado em confundir o conhecimento sobre Deus com a expansão da fé cristã.

Por isso, todas as palavras desta pergunta-título merecem um esclarecimento.

Comecemos pela palavra de maior gravidade, então: Deus – o substantivo ao redor do qual a pergunta gravita. Sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há 2 mil anos? Quem ou qual é o Deus da pergunta? Falamos de Javé, Brahma, Alah, Aura-Masda, do deus cristão, de Zeus, Thor, Anansi, Quetzalcoátl, Osíris, Oxalá, ou de Silap Inue?

É claro que esta pergunta adquire um sentido e um significado diferente de acordo com quem faz, e do local em que ela é feita. A religião, enquanto fenômeno cultural, se divide numa quantidade inestimável de expressões simbólicas diferentes, de modos que não especificar qual é o deus da pergunta pressupõe uma série de operações, e a principal delas é abrandar os nossos critérios. Isso quer dizer que o conhecimento sobre qualquer deus já seria válido para responder a esta pergunta. Não estamos procurando saber a respeito de um deus especificamente. Muito embora as próprias religiões contemporâneas se ocupem de refutar os deuses anteriores e alternativos a elas, em virtude do império da ciência elas precisaram sofisticar e empreender abstrações cada vez menos falseáveis a respeito dos deuses que alegam cultuar. Foi assim que o Jardim do Éden se tornou apenas uma alegoria, e a criação do mundo em 6 dias é um ato poético análogo ao Big Bang. Assim, quando pensamos na probabilidade da existência do deus cristão, não o fazemos a partir das concepções mais antigas deste deus, muito embora os textos antigos e sagrados possam ser evocados, principalmente porque neles podemos encontrar pistas a seu respeitopistas que nos permitem, pelo menos, começar a imaginá-lo. Há diversas formas de crer e nas formas religiosas mais populares não encontraremos tanta sofisticação quanto entre os especialistas. O imaginário religioso não é o mesmo de 2 mil anos atrás. Por mais que se diga o contrário e que uma tal afirmação encontre resistência, sabemos que a Terra não é o centro do Universo.

Continuar lendo

O Deus Ready-Made

Marcel_Duchamp
“Perguntei a ele se acreditava em Deus.

Qual Deus? Acredito em Deus apenas enquanto problema filosófico. Nada disso de uma força ou uma entidade maior regendo a nossa vida. Nada de destino, ou de vontades divinas. As gentes depositam muita confiança nos grandes acontecimentos, as fatídicas reviravoltas. Dá a impressão de que estão criando lugares nos quais Deus pode se esconder. Há muito mistério por aí. Deus é um bem grande. Talvez que do problema filosófico possamos derivar um ente metafísico, mas o Seu estatuto ontológico jamais será por nós conhecido. E sabe por quê? Porque Ele pode ser tanto sujeito como objeto. Aquilo que conhece e Aquilo que pode ser conhecido. Isso inclui os banheiros do Clóvis (fecha a porta, Brás!), o pinto que mija na privada, a urina que sai do canal peniano &  até mesmo a água da privada que o recebe. É a Sua insignificância que me atrai. Imagine uma transcendência tão poderosa que seu poder seja confundindo com a banalidade, com tudo que é mais corriqueiro, inclusive com a feiura. E não falo dos feios, da feiura da gente pobre e com fome, porque até mesmo os santos padres, que almoçam e jantam direitinho, são todos bem caquéticos. Nada de bondade, nada de maldade. Um Deus ambíguo, que depende de combinações ainda mais transparentes quando quer se apresentar. Estou falando de certas ruas inconscientes onde os cidadãos deixam os animais mortos, ratazanas de aqueduto, vistas panorâmicas sobre valas mortuárias, sacos de lixo, eletrodomésticos aposentados, botijões de gás. Um Deus que não pede por altares, e que seria capaz de reprovar qualquer conduta. Digo até que, de um ponto de vista mais formal, a existência deste Deus, enquanto conceito, pode ser questionada. Por que não confundimos Deus com o Mundo? Até hoje não encontrei nenhum problema filosófico maior que Ele. Até mesmo o Homem, no campo do conceito, há de perder esta batalha. E mesmo assim, Seu valor pragmático continua absolutamente nulo.

Respondi-lhe que seu Deus já havia sido patenteado por um holandês que outrora fora excomungado. Hoje é muito mais difícil ser excomungado. A Santa Sé não se ocupa dos Deuses insignificantes dos balcões. As elegias já vêm acompanhadas de blasfêmias. Quando quis saber o nome do holandês, aleguei que eu o havia esquecido, ou que, na verdade, ele também não me revelara. Coisas de albergues guardados em mochilas de litros. A teoria do holandês, todavia, era um pouco mais simpática que a sua.

É uma pena que o tal holandês tenha patenteado algo tão vulgar. Este Deus já foi contemplado e sugerido por muita gente, até por cantores de rádio. Eu lhe disse: insignificante! Qualquer um, em qualquer lugar, em qualquer época, é capaz de acessá-lo.

Insignificante, banal, tens razão. E no entanto, não deixa de ser uma perspectiva muito poética.”