“Houve um tempo em que deixei crescer a barba, tinha tanta vergonha de ser branco que procurava escurecer-me de qualquer jeito – foi muito antes da guerra. Usava luvas também, a pretexto de frio: e eu sentia mesmo um frio por dentro, só de pensar que me haviam feito branco. O cabelo, esse sempre me ajudou bastante, aos 15 anos já era carapinha, não fosse minha mãe quem era e eu nem sei o que teria pensado: ou então eram as raízes dele que conheciam o meu sentimento e foram muito além do que fui: de qualquer forma um mistério.
Na verdade eu era preto e não branco, e ninguém sabia; nas fotografias de família eu custava a reconhecer-me, procurava sempre por mim e não me encontrava, no negativo era mais fácil mas eram os outros que eram os impostores: não havia solução possível. Isso durou anos, eu sem poder dizer a ninguém para não parecer louco, por muito menos tinha visto muita gente desaparecer da circulação, uns tiques de nada, uma palavra dita no momento não exato: a coisa era pra valer.
Com a barba e os acessórios foi-me fácil, longe de casa, sentir-me um negro bastante razoável, até na entonação se percebia nitidamente que eu recuperava enfim a minha voz, após uma tartamudez de quase vinte anos: mal se notava o sotaque antigo, o falso, as palavras me saíam dentre os dentes com uma facilidade espantosa, de natural tímido que era passei a fazer até discursos no bar, não importa se com o estômago cheio de cerveja e a vista outro tanto. Sentava-me à mesa com os negros e era eu o mais negro de todos, alguns me pareciam mesmo repelentemente brancos, era só raspar-lhes a pele e se poriam logo a falar o francês ou o alemão, tudo menos a língua deles, de que já se haviam até esquecido. Eu me sentia um pé na África e o outro ainda no ar, mas o que estava na África era o africano mesmo, eu o continha a custo dentro do sapato e o seu cheiro me inebriava à distância: punha-se a tamborilar no chão e o seu rito nada tinha a ver com a música da orquestra ou do rádio, nem era propriamente uma música mas um aviso – o tantã ou o atabaque debaixo da mesa. Com o dedo eu coçava os cabelos, os do sexo, principalmente que eram os mais autênticos, e fazia planos terríveis para o extermínio de toda a raça branca, ou pálida como a chamava, o olho etíope refletido no espelho em frente.
Ou porque não me aceitavam como negro ou porque não fossem eles realmente negros, o fato é que eu me encontrava sempre só à hora em que os bares cerravam as suas portas – e, branca ou preta, minha solidão continuava sendo a mesma de antes, o assobio ou o cigarro na boca, a sombra divertindo-se à minha custa na calçada, o peso do céu sobre os ombros. O que eu esperava do negro eu o encontrava em mim e não nos outros negros, ou era eu o falso ou os falsos eram eles, parecia que não compreendiam muito bem a importância do seu papel dentro do mundo, procuravam consciente ou insconcientemente copiar as artimanhas do inimigo em vez de simplesmente matá-lo. Um deles, que tinha até o desplante de usar prince-nez e se fazia passar por professor de qualquer coisa – professor de brancos, sem dúvida, e de ideias brancas – esse tomou-se de verdadeiro ódio por mim ao perceber até onde eu queria chegar com a minha para ele insólita atitude, e nunca mais voltou a pôr os pés onde sabia estarem os meus pés, e sobretudo o meu pé aquele, já não me lembro se o direito ou o esquerdo.
Com o tempo descobri por mim mesmo que eu era um intruso, e não apenas um intruso como um motivo de inquietação – e que o que eles, tanto quanto os brancos, queriam era apenas respirar e copular como se fazia desde o começo do mundo, sem outra preocupação que não a de perpetuar a espécie e a ignomínia da espécie, tal como haviam feito com eles e exatamente porque haviam feito com eles.
Cuspi de lado três vezes, arranquei a barba e fui ser branco de novo entre os brancos – ou preto, pouco importa, uma vez que nunca ninguém deu pela diferença, mesmo quando estou inteiramente nu e com os pêlos todos de fora.”
Campos de Carvalho, Vaca de Nariz Sutil.
Genial