“Não me são muito claras as razões pelas quais anulei meu voto na eleição para presidente. Não foi a primeira vez. 2010 havia sido a mesma coisa. Uma diferença era incapaz de passar despercebida: na eleição anterior eu sabia desde o início que iria anular o voto. Em 2014 a coisa foi outra: assumi, inclusive publicamente, que iria votar na Dilma desde que soubera que o segundo turno seria disputado entre ela e o Aécio. Defendi suas propostas, argumentei em reuniões de família. Se algo me deixou longe das redes sociais foi como uma espécie de preferência pela limpeza, pela discrição, e pela desconfiança. Apenas no último dia foi que me resolvi pelo voto nulo.
A irmã já havia se anulado há dois meses e dois dias. Pouco ou nenhum interesse tinha ela pelos debates políticos. Aliás, seu desinteresse pelas coisas do mundo era tão grande que sequer a Copa de futebol, disputada no Brasil, foi algo digno de nota. Nunca serviu para mim como amostragem dos interesses nacionais, a não ser no modo com que cometia infrações de trânsito e arranjava desculpas para elas.
Mas o futebol… Àquela época efervescia em minha mente uma teoria que parecia vincular tudo ao fracasso do futebol brasileiro durante a Copa. O evento (que fora um sucesso), todos sabíamos, era apenas a culminação de um projeto futebolístico que estava tentando, já há muito tempo, fracassar. Cartolas de mãos pequenas, técnicos de pouco talento e faro, e disputas endinheiradas haviam contaminado tudo. Seu final era uma decadência que vivia em coma com a ajuda de aparelhos. A validade do esporte enquanto instância capaz de conjugar a experiência e o sentido – questões do Espírito Brasileiro – havia anulado-se a ponto do Fla-Flu ter ido parar na política. A polarização, num terreno tão vulgar como este em que deu-se a contenda, não poderia resultar em outra coisa. E isso em nada pesou para que eu votasse nulo. No primeiro turno fui PSOL de cabo a rabo.
Um certo comentário visto em fóruns de internet me deixou rir por alguns minutos. O sujeito dizia que a coisa ficara tão feia com ele que quando menos percebeu já estava interrompendo suas punhetas para responder aos comentários políticos, em discussões sinistras, no feed de notícias de terceiros, nesta verdadeira arena que eram as redes sociais. O lado bom de vincular-se, a alma brasileira, tão profundamente aos espaços virtuais, poderia facilitar os historiadores do futuro providenciando a eles uma abundância discursiva tão grande que suas fontes estariam para sempre garantidas. Um novo tipo de estudo os aguardava, pois que, sendo a quantidade de fontes tão vertiginosa, teriam de desenvolver novos métodos para lidar com o movimento browniano dos discursos.
O fanatismo, a sujeira, os golpes-baixos, escândalos, em suma, a falação toda; tudo isso, naquele sábado chuvoso, vinha para dizer que a alma brasileira, inconscientemente, apaixonara-se pelo debate político. Só que vincular uma hipótese de transcendência ao debate político de cunho eleitoreiro é, no mesmo instante, comprometer e sacrificar essa própria transcendência.
Passei o dia todo na companhia de um bom amigo, os dois agasalhados pela fumaça da maconha na qual se mergulhava a casa toda. A vontade era de anular tudo, não só o voto. E quando ia embora, o carro parado esperando o semáforo abrir, a chuva ainda despencava. Chover era o mais necessário e importante de tudo, houvesse ou não houvessem eleições. A semana tinha sido quente, e a estiagem persistia, então o fim de semana foi como uma benção. Os dias frios que prolongam-se em chuviscos, paixões de longa data, parecem querer preservar algumas coisas, pontos cardeais, que seja. A chuva me deixava alegre e eu era alguém relativamente bem informado. Migalhas foram suficientes para dividir o país.
Mas a decisão só veio depois, em alguma curva noturna, o tanque do carro ainda cheio. Isso nada tinha a ver com broches ou estrelas vermelhas, bandeiras, cartazes, posicionamentos, cartas abertas, greves.
– O voto não é por mim. Trata-se de uma questão estratégica. Não podemos perder este espaço. É algo que deve ser disputado, no corpo-a-corpo. É a posição da esquerda que está em jogo.
As minhas premissas eram outras: esquerda, ou direita, estava me cagando pra isso. Categorias ao redor das quais organizamos os móveis de uma casa que não deve ter móveis. Para que pensem por nós. Era necessário que anulássemos tudo, absolutamente tudo. Voto nulo para presidente, prefeito, vereador, governador, senador, deputado, de todos estados e províncias e cidades, reinos, condados, comarcas… – abandonar as casas, os carros, as famílias. Uma exigência muito séria precisava ser feita: é necessário largar. Sequer anular. Sequer ir votar. No dia seguinte acabei apertando 77, ou 00. Não me lembro.
O voto nulo era, mais ou menos, para mim, a mais irracional das utopias. Não podia servir como veículo para o anarquismo. Se algum governo ou partido flertasse minimamente com isso já teríamos sérias razões para desconfiarmos deles. Nossa derrota, garantida de antemão, era preciosa porque jamais acreditou em discursos desenvolvimentistas.
– Tudo bem, não precisamos voltar a viver como os índios, ou em falanstérios, em paraísos anarquistas, cavernas, idiomas regredindo a grunhidos, mas um governantezinho bom, que seja, será que é pedir demais? O mais imprescindível de tudo: eleitores para votar num caboclo desses.
E desde cedo naquele dia ameaçava formular-se em algum lugar do pensamento um parágrafo memorável de Los Siete Locos, no qual Erdosain confessava algo. Às vezes acometiam-me estas moléstias: acordar com um parágrafo inteiro ou uma simples frase na cabeça. Às vezes acontecia de ser pior, e o que ficava se repetindo era uma palavra só. Desta vez veio-me um parágrafo longo, lido e relido, mas que não preservou-se intacto. Uma coisa justificava a outra. A nulidade era um encontro de sábios. Quando cheguei em casa a primeira coisa que fiz foi procurá-lo no livro:
“Yo creía que el alma me había sido dada para gozar de las bellezas del mundo, la luz de la luna sobre la anaranjada cresta de una nube, y la gota del rocio temblando encima de una rosa. Más, cuando fui pequeño creí siempre que la vida reservaba para mí un acontecimiento sublime y hermoso. Pero a medida que examinaba la vida de los otros hombres, descubrí que vivían aburridos, como habitaran en un país siempre lluvioso, donde los rayos de la lluvia les dejaran en el fondo de las pupilas tabiques de agua que les deformaban la visión de las cosas. Y compreendí que las almas se movian en la tierra como los peces prisioneros en un acuario. Al otro lado de los verdinosos muros de vidrio estaba la hermosa vida cantante e altísima, donde todo sería distinto, fuerte y múltiple, y donde los seres nuevos de una creación más perfecta, con sus bellos cuerpos saltarían en una atmósfera elástica. – Entonces me decía: ‘- Es inútil, tengo que escaparme de la tierra’.”.
A chuva foi-se embora naquela madrugada, prometendo voltar nas próximas semanas, mas a certeza que ela trouxe continuou pelos meses que restaram até o fim do ano. Como um catarro do qual a garganta não livrou-se, continuei implorando para que anulassem tudo até o fim dos dias. Foi quando pude compreender melhor a vaga natureza de minhas escolhas: o voto nulo era algo virtual, de dúbias substâncias, mais ou menos como a esperança, o último dos monstros a permanecer na caixa de Pandora, e por isso mesmo o pior deles. Existia para salivar e manter vivos os irrealizáveis sonhos de honestidade e justiça de alguns raros heróis, sem nunca oferecer a eles uma fresta através da qual pudessem vislumbrar, por menor que fosse, o cumprimento das promessas feitas por suas escolhas. Romantismo niilista. Não era algo sério, e nem pretendia ser.
Era preciso anular os que eram sérios. Escalpelá-los todos.”
Diario de um Futuro Próximo
tags: párrafo sublime, derrocar al presidente, 😉