É triste, e até mesmo um tanto inevitável, que uma pesquisa pela Internet contendo os caracteres ‘Agosto’ e ‘Rubem Fonseca’ acuse uma quantidade gigantesca de resumos preparatórios para o vestibular, e quase nenhum artigo realmente importante que tenha se dado conta de um valor que, neste livro, vai muito além daquele esperado pelas exigências de uma prova. É quase como se, ao colocarem o romance numa lista obrigatória de vestibular com a bela e nobre justificativa de canonizá-lo ou, o que é mais plausível, de obrigá-lo à leitura da população, todo o seu conteúdo acabasse se limitando a estas mesmas exigências, a ponto de fazer parecer que o livro existe apenas para isso. A verdade é que nada disto importa. Agosto, romance de Rubem Fonseca publicado em 1990, talvez, tornou-se obrigatório porque é, provavelmente, o livro mais famoso dentre aqueles que se dedicaram ao tema da entropia e da paranóia política que de vez em quando, em certas situações bem específicas, aflora na opinião pública brasileira.
Não é para tanto. A história, um romance noir detetivesco de prosa seca e objetiva, transcorrida no mês que dá o título ao livro, o mês do cachorro louco, do ano de 1954, envolve conspirações, crimes, conluios e sujeiras em todos os níveis: de bicheiros a michês, senadores, industriais e matadores de aluguel, alguns deles reais e outros não, mas todos igualmente verossímeis. Pra quem não sabe, um mês que começou com um atentado ao jornalista Carlos Lacerda, tendo matado o major da Aeronáutica Rubens Vaz e que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas no dia 24, numa época em que Brasília não existia e o avô do Aécio Neves era Ministro da Justiça. Rubem Fonseca, que já foi delegado, centraliza a história na figura do Comissário Mattos, um sujeito metódico e incorruptível. O mês em questão, não é exagero dizer, poderia muito bem ser considerado o capítulo mais importante da política brasileira do século XX, perdendo, talvez, apenas para abril de 1964.
Digno de nota é o formato em espiral com que a narrativa converge a vida pessoal do personagem principal e a situação política pela qual passa o país. O desdobramento da paranóia e da especulação, naquilo que se anunciava como uma situação tensa e de possível de golpe militar, grandes proclamações e acusações, crises morais e inventamento de heróis, tudo, de uma forma ou de outra, pronto para ser apropriado pelos meios de comunicação (a emissora Globo não existia, mas Roberto Marinho já dava seus corres), é capaz de capturar o personagem principal quase que para longe da esfera dos acontecimentos pessoais, pelos quais ele passa como quase que blindado durante toda a história. Neste ponto reside um dos méritos do livro: o arco crescente de confusão nos quais correm paralelas a vida pessoal do Comissário Mattos, com úlcera, ameaçado de morte, com trabalho acumulado, e disputado por duas mulheres (uma depressiva e a outra esquizofrênica), e a própria vida política do país, num palco onde atuam forças e interesses contraditórios e nem sempre muito claros. O romance histórico e político de Rubem Fonseca deveria ser literatura obrigatória não apenas nos vestibulares, há de se dizer, onde pouco serão aproveitados. Tendo ou não inúmeras falhas (mais falhas ainda tem a minissérie para qual foi adaptado) o livro é o próprio momento de paranóia e incerteza que nos assoma e nos invade em momentos de crise. Resta saber se o que temos vivido nesses últimos anos é a crise que alguns querem acreditar que estamos vivendo, pois que qualquer um é livre para tecer suas próprias interpretações e se apropriar como bem entender dos fatos – assim têm feito certos grupos. Que o trem saiu dos trilhos já tem tempo, e que a corrupção não tenha sido inventada pelo PT, todos já sabemos. À parte isso,precisamos de mais romances políticos. Agosto já tem seus 24 anos. É natural esperarmos que os acontecimentos sedimentem-se no imaginário popular para que possam virar literatura, posto que os eventos narrados no livro já tinham 35 anos quando este foi escrito.
É que, querendo ou não, a maneira com que entendemos a nossa vida privada, enquanto um eterno transcorrer da experiência no qual contracenam inúmeros coadjuvantes, onde sempre aparecemos como protagonistas, e, ao final da qual podemos resumir no formato de uma biografia com uma trama mais ou menos coesa, ou seja, a maneira com a qual não só a nossa vida se edifica em paralelo à dos personagens da história humana (nos quais miramos), mas, até mesmo, se realiza de maneira muito mais complexa que a deles, tudo isso possui uma fundação absoluta e incontestável naquilo que acontece na esfera pública, nos eventos políticos que vão parar nos livros de história. As coisas nos afetam mais do que gostaríamos, e o efeito às vezes é por demais devastador. Visões mudam e estruturas colidem. Exatamente quando Mattos, ao saber da morte de Getúlio, naquilo que seria o dia mais conturbado de sua vida (o ápice do livro), entende como prioritária a necessidade de ver o corpo de Vargas e testemunhar a comoção popular – algo que descambou para uma revolta bem séria e que poderia ter desencadeado uma guerra civil. A ameaça de uma hemorragia por conta da úlcera, a necessidade premente de ir ao hospital, nada disso parece preocupar Mattos depois que ele se converte em testemunha ocular. É um caso claro em que os ânimos são arrebatados pela História: pouco antes de morrer pelas mãos de um matador, Mattos refaz toda a sua trajetória pessoal em paralelo com a da figura ambígua de Getúlio. As personalidades da História, os eventos singulares no tempo não deixaram de ser referências, muito embora a sua significação ocorra quase que no plano do cotidiano, na esfera da experiência pessoal. A espiral entrópica de violência não se finaliza na morte dos indivíduos – o ruído permanece. É por isso que Pádua, colega de trabalho de Mattos, ao tentar vingar sua morte, acaba matando o sujeito errado; é por isso que os militares não descansaram até que tomaram o poder 10 anos depois.
Claro está que o brasileiro nunca foi pacífico, nem muito bem adestrado ou civilizado. Ânimos quentes, isto sim, que justificam a hospitalidade, a alegria, mas também a violência e a paixão com que se digladiam em contextos mais ou menos políticos. Junho de 2013 não foi nada daquilo que poderia ter sido. Se a História (o passado) não é feita daquilo que poderia ter sido, mas daquilo que de fato foi, o mesmo não se pode dizer do presente misterioso que nos envolve com seus tantos caminhos interrompidos e descontinuados. Muitos livros de ficção possuem pretenções de verdade, talvez até em graus bem próximos aos de uma pesquisa histórica, dos quais todos eles, de uma forma ou de outra, dependem. No entanto, num romance tudo é permitido, seja em termos de linguagem ou em termos de precisão histórica. Às vezes, é até provável que encontremos mais conteúdo de verdade na escrita de um romance do que na escrita de uma notícia. É difícil saber pra onde olhar. O único lugar privilegiado do qual podemos observar o caos (o mirante dos altos cargos de poder ou das planícies mais populares, do qual pôde observar, com grande clareza, um certo Maquiavel) não se encontra num local físico, mas no tempo. Pois é também no tempo que está a própria ignorância, e as próprias trevas.