budismo e marxismo

Perguntaram-me recentemente se seria possível uma afinidade entre o projeto marxista dirigido a uma sociedade mais igualitária e uma suposta ética budista. Penso que não, devido às seguintes divergências:

A origem do sofrimento: o ponto de partida da ética budista é muito simples, e começa com uma única verdade incontestável: “o sofrimento existe”. Não tenho dúvidas de que os marxistas concordariam com isso, mas o diagnóstico parte de observações completamente distintas. Para os marxistas este sofrimento resulta de uma má distribuição das riquezas da sociedade, o que provoca desigualdades, injustiças, explorações e conflitos. Para os budistas, o sofrimento é inerente à natureza da mente, enquanto uma condição própria às manifestações do desejo e à impossibilidade de uma satisfação plena. Isso explicaria o sofrimento até daqueles que são ricos e possuem mais do que o suficiente para viverem bem – também explicaria o ímpeto quase que natural para a insatisfação, a inveja, a expectativa, e o apego às formas.

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folia de reis

Ontem foi Dia de Santos Reis.

Venho estudando a figura dos três reis magos já há quatro anos, desde que me dei conta de quão misteriosos e enigmáticos eram estes personagens, uma vez que não há qualquer menção a eles fora do Evangelho de Mateus.

Assim consta a sua aparição, no Novo Testamento:

E, tendo nascido Jesus em Belém de Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém,
Dizendo: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? porque vimos a sua estrela no oriente, e viemos a adorá-lo.
Mateus 2:1

O mistério que acompanhava e adornava estas figuras penetrou os séculos ensejando festas populares, romarias, especulações teológicas, filosóficas, e geográficas, ocultismos e misticismos. Quais insights se abrem para nós, hoje, habitantes de uma cultura dois milênios mais velha?

No Evangelho de Lucas, no lugar dos reis magos que vêm do Oriente, temos apenas a figura dos pastores da região que servem de testemunha do nascimento de Jesus na manjedoura. A coisa mais curiosa que alguém perceberia, de imediato, é o fato de que Mateus, em nenhum momento, disse que eram três os reis magos. Nós supomos que eram três porque eram três os presentes que foram dados ao Cristo: incenso, mirra e ouro. Estes três ingredientes alquímicos têm um significado simbólico: o ouro é a realeza de Cristo; o incenso é a sua autoridade espiritual; a mirra é a sua imortalidade. Todavia, uma interpretação mais mundana também é possível: o incenso era necessário para afastar o mau cheiro da manjedoura em que o menino havia nascido; a mirra era um bálsamo importante para proteção física do bebê; e o ouro um presente valioso para um casal tão pobre e tão jovem vivendo nas imediações de Belém – e que logo teria de se exilar para fugir da fúria do Rei Herodes.

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buda, heráclito e o fogo

É claro que não sou o primeiro a estabelecer comparações entre a doutrina de Sidarta Gautama, o Buda, e a de Heráclito de Éfeso. Também pelo fato de terem sido, muito provavelmente, contemporâneos, a similaridade entre suas ideias chama atenção porque ambas se apresentam, em seus contextos, com um elevado grau de originalidade – e criam condições para uma certa compreensão da realidade à qual não podemos permanecer indiferentes. Um insight que revele a impermanência das coisas, da matéria e da forma, e que sirva de plataforma para uma percepção mais profunda das mudanças e, por consequência, do vazio subjacente a tudo, é algo que atrai a atenção de qualquer um que tenha tendência para a filosofia.

            As análises comparativas da filosofia antiga não se restringem a colocar Buda ao lado de Heráclito. Também um grande representante da filosofia chinesa, Lao Tsé, tem, na sua mensagem, palavras que se assemelham àquelas proferidas pelo filósofo pré-socrático.

            Neste pequeno ensaio, contudo, dedicarei minha atenção à ideia de fogo, tentando compreender o papel que este elemento cumpre, enquanto metáfora, analogia ou imagem, na doutrina espiritual de Buda, e na doutrina filosófica de Heráclito.

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é verdade que usamos apenas 10% da nossa capacidade cerebral?

É muito pouco provável que você nunca tenha ouvido, em algum momento da sua vida, a história de que nós, seres humanos, usamos apenas 10% de toda a nossa capacidade cerebral. O valor da porcentagem, na verdade, costuma variar. Já encontrei afirmações que diziam que usamos apenas 15%, 20%, ou 25% da nossa mente, e que, se pudéssemos acessar todo o restante do nosso potencial, seríamos capazes de realizar verdadeiras façanhas.

De onde foi que se originou essa história? Costuma-se atribuir a origem dessa ideia aos primórdios do desenvolvimento da psicologia, na virada do século XIX para o XX. Hoje em dia pesquisadores e cientistas entendem que essa hipótese surgiu a partir de uma má compreensão dos estudos dos psicólogos William James e Boris Siddis. A sugestão nasce do deslumbramento em relação às regiões inexploradas do cérebro, e a suspeita de que essas zonas complexas pudessem guardar atividades cerebrais ocultas, até então desconhecidas para nós. A suspeita dessa possibilidade latente na espécie humana teria surgido a partir das pesquisas neurológicas feitas com crianças superdotadas. A má generalização dessa hipótese, aliada à incompreensão do funcionamento dos neurônios naquele período das pesquisas científicas, teria criado as condições para a divulgação desse mito.

Entretanto, acredito que essa explicação não seja suficientemente satisfatória para explicar a popularidade do mito dos 10% na nossa cultura. De fato, se percorrêssemos uma vasta quantidade de produtos culturais, indo desde os filmes de Hollywood, passando pelos livros de ficção científica, e chegando nos livros de autoajuda e programas de coaching, encontraríamos um volume de exemplos realmente acachapante em favor da validade desse mito. Minha hipótese é de que a sua genealogia pode ser extrapolada até contextos mais antigos e recuperada a partir do estudo das religiões.

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sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há 2 mil anos?

A pergunta-título deste ensaio surgiu durante uma conversa com um amigo meu, pastor da Igreja Assembleia de Deus. Perguntei a ele se sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há dois mil anos. A resposta dele foi um sonoro sim.

Independentemente da existência de Deus (e dos deuses) jamais ter sido comprovada pela ciência moderna, sabemos que os seres humanos são, naturalmente, criaturas dispostas a acreditar em seres superiores, em entidades sobrenaturais, e, sobretudo, num Criador.

É possível que essa crença se converta em conhecimento? É possível ir do crer em direção ao saber? Imagino que cada religião daria uma resposta diferente a esta pergunta. No caso cristão, as palavras de Justiniano parecem ecoar: credo quia absurdum – creio porque é absurdo.

Isso quer dizer que, mesmo com toda a teologia católica, protestante, muçulmana, hindu, nem mesmo com toda a graça, jamais seria possível que atravessássemos o véu dos mistérios divinos. Pelo menos não nesta vida, sob esta forma. Parece estranho, mas não temos como saber se sabemos ou não sobre Deus.

Então por que meu amigo pastor respondeu sim à minha pergunta?

Porque ele entende que hoje há um número maior de pessoas convertidas ao cristianismo, que o paganismo já não é uma ameaça, que há livros, publicações, e conhecimento circulando a respeito da religião cristã. De certo modo, ele quis dizer que o acesso à fé cristã é um incremento no saber sobre Deus – e, segundo ele, a História poderia provar isso.

Mas a minha opinião era outra, bem distinta, porque não estava interessado em confundir o conhecimento sobre Deus com a expansão da fé cristã.

Por isso, todas as palavras desta pergunta-título merecem um esclarecimento.

Comecemos pela palavra de maior gravidade, então: Deus – o substantivo ao redor do qual a pergunta gravita. Sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há 2 mil anos? Quem ou qual é o Deus da pergunta? Falamos de Javé, Brahma, Alah, Aura-Masda, do deus cristão, de Zeus, Thor, Anansi, Quetzalcoátl, Osíris, Oxalá, ou de Silap Inue?

É claro que esta pergunta adquire um sentido e um significado diferente de acordo com quem faz, e do local em que ela é feita. A religião, enquanto fenômeno cultural, se divide numa quantidade inestimável de expressões simbólicas diferentes, de modos que não especificar qual é o deus da pergunta pressupõe uma série de operações, e a principal delas é abrandar os nossos critérios. Isso quer dizer que o conhecimento sobre qualquer deus já seria válido para responder a esta pergunta. Não estamos procurando saber a respeito de um deus especificamente. Muito embora as próprias religiões contemporâneas se ocupem de refutar os deuses anteriores e alternativos a elas, em virtude do império da ciência elas precisaram sofisticar e empreender abstrações cada vez menos falseáveis a respeito dos deuses que alegam cultuar. Foi assim que o Jardim do Éden se tornou apenas uma alegoria, e a criação do mundo em 6 dias é um ato poético análogo ao Big Bang. Assim, quando pensamos na probabilidade da existência do deus cristão, não o fazemos a partir das concepções mais antigas deste deus, muito embora os textos antigos e sagrados possam ser evocados, principalmente porque neles podemos encontrar pistas a seu respeitopistas que nos permitem, pelo menos, começar a imaginá-lo. Há diversas formas de crer e nas formas religiosas mais populares não encontraremos tanta sofisticação quanto entre os especialistas. O imaginário religioso não é o mesmo de 2 mil anos atrás. Por mais que se diga o contrário e que uma tal afirmação encontre resistência, sabemos que a Terra não é o centro do Universo.

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o brasil dos vampiros psíquicos

Venho do futuro para dizer aos habitantes deste século que as coisas mudaram e que as coisas continuarão mudando.

Não gastei a viagem à toa. Pelos caminhos que levam para dentro do Brasil os nativos deixaram um pouco de tudo sob a poeira.

Sei por exemplo que ainda vigora o feitiço de um selvagem que do meio da selva para sempre amaldiçoou os invasores desta terra, e que a catiça foi braba o bastante pra ninguém percebê-la.

Ninguém sabe bem o que tem lá pra dentro do país. Nem índio, nem preto, nem europeu. A tinta vermelha que dá nome à pátria não aparece na bandeira.

Dizem que não aparecerá jamais.

Sei que até o ano de 2100 os grupos de compartilhamento de mensagem terão formado profundas galerias de arquivos a serem escavados e reescavados por inteligências artificiais eternamente dedicadas à fabricação de feiquinius, emaranhadas em grandes nodos de informação que se coligiram por vontade própria.

Os comitês de engenharia ideológica, espalhados no multiverso digital, semeiam logaritmos que disparam trilhões de mensagens para infinitos planos de dimensão possíveis, programando-os para fixarem-se apenas naqueles onde sucedem-se segundos turnos tão terríveis quanto este do atual presente que visito.

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o mestre da mandala secreta

Os ritos da cerimônia denominada A Infinita Destruição e Concepção dos Mundos, já praticada pelos monges budistas tibetanos há mais ou menos seis séculos, ainda se encontram envoltos num manto de mistério e alegoria para a maior parte dos ocidentais.

Tendo se originado na porção oeste do Tibete, os ritos sobreviveram à disputa entre as distintas seitas que conviviam na região, ao final do século XVI, e foram devidamente lapidados pelos seus continuadores, os membros da escola Gelug, e discípulos de Tsongkhapa. Mais tarde, sobreviveram também ao ateísmo do Partido Comunista Chinês, e foram acolhidos no Nepal, onde, desde então, a cerimônia tem acontecido.

Os procedimentos são secretos, e apenas os monges mais graduados estão admitidos na cerimônia. A data é escolhida durante a primavera, e acontece na primeira lua cheia da estação, sendo precedida por um jejum de três dias, durante os quais os participantes permanecem reclusos, sem a autorização de deixarem o monastério.

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de como acessei as memórias de uma vida passada durante o carnaval de rua em São Paulo

Estou entre o ceticismo e a fé.

Não possuo talento para religião alguma.

Coisas misteriosas sempre aconteceram.

Venho frequentando um terapeuta holístico há mais ou menos dois meses. Minha intenção, ao iniciar o tratamento, era romper o bloqueio natural que nos impede de visualizar com clareza aquilo que os espíritas e hindus denominam “vidas passadas”.

Nunca fui lá muito espiritualizado. Fui crismado quando era criança, e durante a adolescência fui classificado como um “católico não praticante”, seja lá o que isso quer dizer. Amigas já me levaram em terreiros de umbanda e candomblé e nada muito místico me aconteceu lá dentro. Aprendi sobre os orixás e seus poderes mais pra não ficar boiando nas conversas do que porque realmente acreditasse nisso, apesar de emendar um “saravá” vez ou outra e saber de cor o Afro Sambas.

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os esquimós, seus nomes & espíritos

“- De onde é que toda esta neve nos vem?

– A neve, meus pequenos, é o sangue dos mortos.

– E o trovão? Alguém fica sempre a indagar, de si para si, em torno do que é a causa do trovão.

– São os espíritos, que esfregam seus corpos revestidos de couro; os espíritos costumam esfregar-se uns nos outros, quando discutem. Em geral, são espíritos famintos.

– E o relâmpago?

– Ocorre quando os espíritos discutem e batem na lâmpada e a apagam. Essa é a razão pela qual o relâmpago e o trovão aparecem juntos.

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ocultas técnicas de reorientação sexual adaptada

 

Eu já sabia que era viado muito antes de dar o primeiro beijo.

Desde pequeno eu ficava olhando pras mãos calejadas dos homens mais velhos, e pros ombros dos rapazes na puberdade. Ombros largos, eu gostava. Quando fiquei mais velho, passei a procurar por mãos com anéis de noivado. Dependendo das mãos, eu ficava de pau duro só de ver uma aliança ali no meio.

Trocar de roupa no meio de uma turma de meninos foi, de longe, o evento mais regozijante de toda a minha tediosa pré-adolescência cristã. Lembro-me de cada uma das vezes em que tive a oportunidade de compartilhar do vestiário com os meus colegas que jamais souberam de meu interesse pelas suas partes pudendas e demais zonas corporais visitadas pelo olhar de meu recatado interesse erótico. Eu ficava tímido, mas prestava atenção em tudo pra poder me lembrar bem depois. Olhava pros volumes nas cuecas.

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