Eu já sabia que era viado muito antes de dar o primeiro beijo.
Desde pequeno eu ficava olhando pras mãos calejadas dos homens mais velhos, e pros ombros dos rapazes na puberdade. Ombros largos, eu gostava. Quando fiquei mais velho, passei a procurar por mãos com anéis de noivado. Dependendo das mãos, eu ficava de pau duro só de ver uma aliança ali no meio.
Trocar de roupa no meio de uma turma de meninos foi, de longe, o evento mais regozijante de toda a minha tediosa pré-adolescência cristã. Lembro-me de cada uma das vezes em que tive a oportunidade de compartilhar do vestiário com os meus colegas que jamais souberam de meu interesse pelas suas partes pudendas e demais zonas corporais visitadas pelo olhar de meu recatado interesse erótico. Eu ficava tímido, mas prestava atenção em tudo pra poder me lembrar bem depois. Olhava pros volumes nas cuecas.
Obviamente que os outros moleques sempre perceberam que eu não entrava muito na brincadeira deles, e que eu me sentia mais à vontade entre as meninas, meio que por causa dos assuntos, e pelos gostos, os gestos, o jeito de falar e de reagir aos estímulos que nos eram dados pelos mais velhos ou por tudo aquilo que nos chegava do mundo. Eu simplesmente havia nascido assim.
Achavam que eu era estranho, e não me escolhiam pra jogar futebol, mesmo porque eu nem queria. Nem vôlei, nem handebol. Eu era aquele viadinho que nenhum pai cristão e preconceituoso gostaria de ter. Quando hoje vejo as pessoas discutindo, dizendo “eu prefiro ter um filho bandido do que um filho viado”, ou então qualquer coisa do tipo, eu imagino que esse “filho viado” seja exatamente o moleque que eu era no auge de minha adolescência.
Minha família era numerosa e majoritariamente evangélica. Íamos ao culto quatro vezes por semana. Compúnhamos uma das famílias mais devotadas da congregação do bairro, uma comunidade pequena em que todos sabiam detalhadamente sobre a vida de todos os outros, nonde a religião servia como o centro de toda nossa atividade política, pedagógica, esportiva etc.
Compartilhávamos não só a missa, mas também aniversários, casamentos, natais, e demais festas religiosas celebradas pelo nosso séquito. Viajávamos juntos e jejuávamos juntos. Todo final de semestre íamos à beira do rio batizar os novos membros da igreja, renascidos em Cristo. Meus dois irmãos tocavam na banda da igreja, e participávamos com afinco dos retiros de oração. O pastor era um tio meu, um homem muito inteligente mesmo, um tanto mais inteligente que os demais, e dono de uma opinião sempre respeitada pelos irmãos e membros de outras famílias.
Eu sempre olhava pras mãos dele, apoiadas sobre a Bíblia ou então erguidas ao alto. Eu o admirava.
Foi bem por causa desses contextos mais sociais que minha família percebeu que eu era viado. Se não fossem os outros pra comentar, jamais teriam percebido, tão tapados que eram. Os meus primos perguntavam aos meus irmãos se eu era mesmo boiola, e desmunhecavam na hora de perguntar isso. Não entendiam de me ver fazer andar junto das meninas, enquanto os moleques ficavam aprontando, disputando tudo. Eu não conseguia falar como eles, nem andar ou correr como eles.
No começo as coisas eram meio separadas, mas aí na adolescência, quando todo mundo vai ficando mais atrevido, os meninos começaram a procurar pelas meninas. E nos encontros da igreja passávamos o tempo todo juntos, competindo em brincadeiras, ou então fofocando um a respeito do outro sobre casos e aventuras sociais, possibilidades afetivas que nos eram muito misteriosas e estranhas ainda, muito embora todo mundo tivesse um caso ou outro bem estranho na família pra ser colocado na roda.
Achavam engraçado o jeito que eu corria, talvez porque eu fosse afeminado. Achavam engraçado de me ver chutar a bola, porque eu não chutava que nem homem. Eu me lembro dos homens mais velhos, cada um usando uma camisa social de cor diferente, e todos de calça social preta e sapatos. Eu ficava comparando o estilo de cada um deles, mas nada daquilo satisfazia minha imaginação. Meus primeiros pensamentos verdadeiramente sexuais demoraram pra aparecer. Nem sempre fui um devasso como aquele que sou hoje.
Eu me lembro do tio Roberley pregando pra família, no almoço, a mesa retangular com uma toalha estendida, e os pratos de plástico ainda esperando pra receber a comida abençoada. Eu me lembro de minha mãe cantando uma música de louvor enquanto o tio Roberley acompanhava no violão. Eu me lembro de quando mais ou menos foi que comecei a achar brega pra caralho aquilo tudo, o mau gosto, a feiura daquele povo todo do qual eu supostamente fazia parte. Acho que foi quando conheci o Maykon, um colega da escola, e a família dele.
Na escola eu era bem mais atrevido, e comecei a me envolver com um outro menino também gay, o Maykon. Foi na sétima série, tão logo percebemos que éramos mais ou menos parecidos, embora não soubéssemos bem como explicar, porque meio que não queríamos usar os mesmos termos daqueles que nos chamavam de boiolas ou bixas.
Só que o Maykon era o típico paulistano, todo descolado, ouvia músicas diferentes, se vestia bem, andava com desenvoltura, e não era nem um pouco retraído que nem eu, que tão mal conhecia o próprio corpo. Acho que foi seguindo ele, tomando contato com a cultura viada que por ele me era apresentada, que comecei a ver a cafonice da minha família crente e daquilo que até então era o meu único e estreito círculo de relações. Foi porque um dia conheci os seus pais, num dia em que me convidou pra almoçar com eles, e travei contato com aquilo que era uma família liberal de verdade, completamente diferente da minha.
Eles não tinham imagens religiosas de Jesus nem bíblias pela casa toda, e nem soltavam o tempo todo expressões que apelassem pra Deus. Conversavam muito bem sobre qualquer assunto, e nada era tabu pra eles. Votavam no PT, eram a favor do aborto, do casamento gay e da legalização da maconha, e sabiam rir e fazer piada com muitas coisas. Invejei um pouco a família de Maykon e, apesar de obrigatoriamente amar minha família, notei que eu me sentia mais à vontade longe dos meus do que perto deles. Não era apenas o caso de ser um rapaz deslocado. À medida que me apaixonei por Maykon, também me apaixonei pelo mundinho do qual ele fazia parte, e que parecia até mesmo um outro país pra mim.
E o contraste só aumentou, e minha revolta pessoal intensificou-se ainda mais quando meus pais me proibiram de almoçar fora de casa, com medo de que “eu me afastasse demais de minha criação cristã”.
Éramos de turmas diferentes, Maykon e eu. Foi na fuga dos intervalos de aula que tínhamos a oportunidade pra se encontrar no banheiro ou no fundo da quadra, onde dávamos uns beijos e pegávamos no pau um do outro. Lembro-me daquele jovem mancebo, vestindo o uniforme da escola, e é verdade que minha memória se refestela ao evocar esses pequenos detalhes, como por exemplo os seus mamilos, e a calça do uniforme colada na sua bunda e um sentado no colo do outro sem que ninguém nos visse.
Antes disso eu já tinha sofrido bullying na mesma proporção de todas as outras crianças viadas que perambulam pelos pátios das escolas públicas do Brasil. Mas depois percebi que na verdade as coisas não eram tão simples. Acho que cheguei a sofrer com o bullying mais por ser crente do que por ser gay. Então busquei na homossexualidade um caminho para ascender socialmente no meio daquela viadagem toda.
Faziam roda pra me bater, quando de repente chegavam até mim em bando e gritavam na minha cara dizendo que eu estava participando de alguma brincadeira sobre a qual não explicavam as regras, e então me davam chutes no cu e na canela. Além desses pequenos linchamentos, também já cheguei a ser agredido repetidas vezes por um moleque mais forte e bem maior que eu simplesmente porque ele não ia com a minha cara e às vezes me forçava e ficar sem o tênis ou sem a camiseta e eu então tinha de pedir ajuda para os adultos e responsáveis.
Lembro-me do olhar de condescendência que meu pai me dirigiu quando pela primeira vez percebeu que eu era incapaz de me defender, querendo dar a entender que ele também não teria muito como me ajudar nessa, porque ele não conhecia as palavras certas pra ter a conversa que precisávamos ter, então, quando minha irmã invejosa contou pra ele que a escola inteira já estava sabendo do meu caso com o Maykon, ele pediu pro meu tio pastor ter uma “conversinha” comigo.
Foi num almoço de domingo, meu tio me chamou sozinho pro seu quarto, enquanto nossas famílias comiam salgadinhos e bebiam refrigerante no quintal, e minha mãe cantava outra música de louvor desafinada ao som do violão desafinado do Roberley.
Meu tio pastor trancou a porta atrás de mim. Ele começou o assunto dizendo que eu precisava aprender a me defender, então ia começar a me agredir pra ver se eu gostava de envergonhar minha família e a Deus.
Ele me mandou abaixar as calças e disse que Deus estava puto comigo. Eu não sabia bem o que aquilo queria dizer, mas eu sabia que ele era um homem inteligente, versado, repetia muitas citações e era bem informado na política. Já tinha concorrido a vereador uma vez mas não chegou nem perto de ganhar. E tinha pelo menos uns três diplomas, de três faculdades diferentes que tinha feito.
Eu não tinha conhecido até então muitos homens inteligentes na minha vida. Por algum motivo, quando ele me mandou abaixar a calça diante do quadro de Jesus na frente da cama do seu quarto, e desabotoou o seu zíper e começou a descer sua cueca, tão logo ele me mandou ficar quieto e não gritar, eu senti que o meu tio pastor era mesmo um homem muito inteligente.
Enquanto me fodia por trás, com a sua mão tapando a minha boca, ele me dizia que eu precisava ser forte, precisava ser homem e aprender a me defender. Eu não conseguia acreditar que seu pau realmente estava duro e, logo ali, atrás de mim, cutucava com força o meu cu e pedia pra entrar. Eu pensei no que acontecia do lado de fora, no quintal, ainda ouvia as pessoas conversando e cantando, e imaginava o que eles pensariam se soubessem do que rolava ali dentro, e então comecei a chorar. Quando seu pau entrou no meu cu, na primeira estocada que deu, não pensei que fosse uma sensação tão diferente de cagar, e comecei a gemer involuntariamente enquanto tentava pedir pra ele parar.
Antes de gozar no meu cu, ele ainda entrou em outro assunto, e começou a falar que precisava de um novo menino pra tocar trompete na banda da igreja. Ele ficou falando tranquilamente, enquanto ia e vinha com seu pau, dizendo que tinha um trompete muito bom, de fabricação americana, e que podia me emprestar o seu trompete se eu quisesse, se eu fosse mesmo começar e estivesse disposto a levar a sério, e que a aula de música acontecia todas as sextas-feiras e sábados, lá na igreja mesmo.
Antes de eu voltar para o quintal, com a cara mais estranha que me foi possível conservar naquele momento, ele retirou da gaveta do armário de sua mulher uma calcinha bege, grande como um fraldão, e me disse:
“Se você quer ser uma menininha, vai ter de usar isso aqui enquanto achar que é uma menininha”.
E então tive de vestir a calcinha bege e feia da mulher dele ainda na sua frente. A minha cueca ele fez questão de jogar fora.
Passados aqueles anos de cooptação religiosa, quando finalmente me libertei, só pela curiosidade e também como forma de superar o trauma, continuei por muito tempo ainda procurando por algum pedaço de roupa íntima que pudesse ser ao menos um pouco mais feio e brochante do que aquela calcinha bege, opressora e cruel como a anágua da minha avó.
Eu jamais teria como explicar qualquer coisa aos meus pais. A única forma que eu tinha de esconder aquela calcinha bege era usando ela. Usei durante um tempo até certificar-me de que meu tio pastor jamais me cobraria qualquer coisa a respeito dela.
Precisei de pelo menos vinte anos e muita terapia pra conseguir revisitar aquele abuso a que fui submetido. De noite eu tinha pesadelos com os gemidos do pastor e com sua barba cerrada. Meu tesão por meninos foi bloqueado até que eu conseguisse juntar forças pra transpor o trauma. Foi difícil dar o cu de novo e sentir prazer nisso. Maykon me ajudou muito, e foi mesmo ele quem extirpou todas as dúvidas que eu tive a respeito de minha sexualidade. Meu pai jamais desconfiou do verdadeiro conteúdo da “conversinha” que meu tio pastor e eu tivemos.
Porque caiu sobre mim o azar de tudo aquilo acontecer-me durante o desabrochar de minha adolescência? Ao passo que minha curiosidade e meu apetite sexual cresciam sem que eu pudesse controlá-los, eu precisava reprimir qualquer atitude que chamasse a atenção de meus irmãos, irmãs, e de meus pais. E depois daquela vez, ficou difícil sentir tesão sem sentir culpa, e mais difícil ainda continuar sendo quem eu sempre havia sido. Qualquer atitude que aos olhos dos outros me aproximasse mais das meninas do que dos meninos, eu já imaginava o pau do pastor perfurando meus órgãos internos, e os seus gemidos estranhos atrás de mim.
Nunca mais consegui prestar atenção no culto, nem nas suas leituras da bíblia.
Comecei a imaginar que ele não havia feito aquilo só comigo. Pensei nele submetendo todos os fiéis do púlpito a uma sessão de estupro anal, e então olhei com admiração para a glória e a salvação que era aquilo tudo.
O Brasil estava se tornando nazista. A congregação de meu tio pastor, pra ser salva da falência, foi comprada por uma franquia de igrejas com ações na bolsa, canais de rádio e da televisão. Ele foi enviado pra um seminário de formação e voltou ainda mais poderoso e tarado nas suas ideias.
Daí então fomos proibidos de assistir quaisquer outros programas de televisão. Só tínhamos autorização de assistir aos canais de louvor, e um técnico de televisão autorizado pela igreja da qual fazíamos parte foi enviado pra colocar um bloqueio no controle remoto.
Minha irmã mais velha, que estava pensando em comprar um celular com o seu primeiro salário, teve de mudar de planos, porque os celulares foram todos confiscados pelos donos da fé. Se a privacidade já era pouca, toda a nossa vida passou a ser vivida de acordo com os preceitos dessa nova fé mais forte e mais exigente, tão sujeita a diferentes ameaças.
Sentia-me sufocado. O teto baixo da casa e as paredes me oprimiam o peito. Dormir acompanhado de meus irmãos se tornou uma angústia. Eu desejava um único lugar no mundo em que pudesse estar sozinho.
Eu imaginava o Maykon no meio daquilo. Eu imaginava os seus pais esclarecidos e liberais. Nos almoços de domingo e nos serviços prestados ao culto, eu imaginava como o Maykon se comportaria junto de minha família e o que ele acharia daquilo tudo. Foi então que passei a ter vergonha, e quis negar minhas origens e repudiar todos aqueles que me puseram no mundo e que então cuidavam de mim. Eu achava feias as suas roupas, horríveis as suas músicas, e não concordava com nada do que diziam. Tudo piorou depois que passei a vislumbrar a possibilidade de um outro mundo, depois que passei a encarar como real uma vida sem preconceito, vivida em liberdade, com pessoas bem resolvidas, amigas umas das outras sem nenhum interesse escuso, cantando e satisfazendo-se a si mesmas com aquilo que podiam, sem precisar sofrer antecipadamente os castigos de Deus.
Um dia o telefone de minha casa tocou e eu atendi. Era o meu tio pastor, e queria falar exclusivamente comigo. Disse que precisávamos ter outra “conversinha”.
Pensei comigo: “será que Deus continua puto comigo?”. Lembrei-me da calcinha bege que ele havia me dado, e que eu havia guardado em algum bolso escondido em minha mochila escolar, e então eu a vesti, e fui de encontro a ele vestindo a calcinha bege de sua mulher que ele próprio me havia dado.
Imaginando que o abuso fosse se repetir, cogitei contar o caso de meu estupro para meu pai, mas sabendo que ele não acreditaria ou que, mesmo acreditando, tomaria partido de meu tio, um homem de fé e de palavra, e que, assim sendo, as consequências seriam gravíssimas a todos os envolvidos, mantive silêncio. Eu não tinha forças para oferecer resistência ao meu tio pastor. Não podia simplesmente não ir. Era ainda apenas um moleque, e nem desconfiava que o meu histórico de abusos estivesse apenas começando.
Mas eu havia imaginado coisas. Da outra vez fiquei com o cu doendo por várias noites, então eu já havia preparado meu esfíncter durante toda a tarde, mas dessa vez meu tio pastor não tentou me enrabar. Na verdade, ele disse que havia tomado conhecimento de um tratamento para “casos do meu tipo”, num acampamento que eram mantido pela igreja que havia comprado nossa congregação, tudo gente muito inteligente e preparada, pesquisadores e cientistas.
“É um acampamento de duas semanas. Você vai gostar. Tem piscina, salão de jogos. Eles fazem umas festas também. Todo mundo que vai, diz que gosta muito.”
Acreditei nele, um pouco contrariado. Tudo já devia ter sido combinado com o meu pai.
E lá fui eu, enviado prum acampamento com outros “casos do meu tipo”. Éramos ao menos outros duzentos moleques, transportados por outros cinco ônibus, e deixados por uma semana numa fazenda perto de Volta Redonda. Já no ônibus eu havia me inteirado sobre os esquemas de depravação do qual participavam os moleques que todo ano eram enviados pro acampamento.
“Eu venho todo ano”, disse um menino lindo, uma voz de anjo, com o cabelo penteado na transversal e um undercut do lado direito. “É um barato, conheci um monte de bofes aqui, e peguei vários contatos.”
Cheguei à conclusão de que as coisas nem eram tão graves assim na minha família, e que pelo mundo afora a variedade humana havia produzido gente de tudo quanto era tipo, e gente completamente desajustada ao rigor que comandava nossa fé cristã.
Na verdade, o acampamento não era apenas para “casos do meu tipo”. Daqueles duzentos moleques, só uma minoria estava ali por causa de suas tendências homossexuais. Um menino havia sido enviado para o acampamento porque tinha sido pego copulando com uma galinha; um outro foi parar ali apenas porque gostava muito de desenhos japoneses. Era mesmo esquisito que tivessem juntado todos esses “distúrbios” e “desorientações” para tratá-los. Eu nunca tinha me sentido doente por ser bixa, mas estava começando a achar que talvez, de fato, aquilo fosse uma doença, e que saudáveis, muito mais saudáveis e adorados por deuses eram os homenzarrões da minha igreja, vestidos com suas camisas sociais de cores vívidas e primárias.
Dois quilômetros mais ao sul ficava o acampamento das meninas, com as quais muitos dos jovens lá dentro chegavam a se corresponder. Havia escapadinhas noturnas, e encontros divertidíssimos no bosque que separava os dois acampamentos, onde ainda podiam ser encontrados alguns brinquedos sexuais enterrados pelos veteranos do acampamento.
A coisa era promissora. Pensei que passaríamos por bons momentos ali, apesar de tudo. De uma forma ou outra a alma humana encontra, dentro de todas as limitações possíveis, motivos para viver em paz. Mas não era o caso. Pois foi sabendo dos esquemas de depravação e da enorme frequência de reincidentes, que a direção do acampamento havia aumentado a segurança e mudado algumas normas. A coisa estava bem mais rígida do que tinha sido um dia, para o meu inesgotável azar.
Deixaram-nos trancados em um imenso galpão guardado com vigias. O acampamento era cercado com arame farpado e torres com holofotes que eram mirados em qualquer um que fosse pego perambulando sozinho durante a noite.Todos os nossos pertences foram submetidos a um confisco, guardados em um cofre, e só podíamos circular pelo recinto vestindo os uniformes que nos deram. Tínhamos hora pra dormir e pra acordar, e, durante à noite, se quiséssemos ir ao banheiro, só podíamos fazê-lo acompanhados de um segurança, e apenas na frequência de um por vez.
Contatos físicos eram proibidos e evitados. Nossa dieta era rica em proteínas, com carnes e ovos e não comíamos saladas. Ao acordar, tínhamos de correr ao redor do campo de futebol e depois cantar o Hino Nacional com a mão direita no coração e a mão esquerda no pênis. Pela manhã devíamos assistir partidas de futebol e luta livre. À tarde, depois da musculação, éramos submetidos a sessões de filmes de ação que tinham sempre os mesmos atores. De noite, nos davam comprimidos cujo efeito desconhecíamos, e então éramos forçados a ficar sob uma luz branca e quente, a navegar por sítios de pornografia heterossexual e assistir a alguns vídeos específicos de gangbanging e bukkake ou então qualquer outra modalidade em que o gênero masculino fosse dominante.
Depois, devíamos nos masturbar pra esses vídeos e despejar o nosso sêmen em pequenos béqueres que nos eram concedidos para tanto. Ao final do acampamento, o menino que tivesse ejaculado a maior quantidade de porra, ganharia uma medalha. Acho que as pílulas trabalhavam pra potencializar o ato e a nossa capacidade de concentração. Ficar com o pau duro praquele tipo de coisa, e tendo ainda de lidar com tamanha pressão, era algo que fazia desmoronar os ânimos de muitos meninos, muitos dos quais simplesmente não conseguiam executar a dita punheta. Somente aqueles com melhor pontuação estavam autorizados a usar algum tipo de objeto para favorecer seus estímulos anais.
“Isso é errado”, comentei com um outro menino. “Na Bíblia diz que é pecado ejacular fora da mulher. Estamos desperdiçando o sêmen dessa forma”.
No dia seguinte fui chamado em uma salinha especial, e um homem muito sério me perguntou sobre o comentário que eu havia feito.
“Ouvi dizer que o senhor considera aquilo que fazemos aqui como sendo pecado, ou obra do demônio. Gostaria de me explicar direitinho? O senhor disse que estamos forçando vocês a desperdiçarem o sêmen, e que isso contraria a vontade de Deus. O senhor está certo quanto ao desperdício do líquido seminal ser um pecado, mas nós aqui não estamos desperdiçando nada. Isso é pelo seu próprio bem, e pelo bem de Deus!”
Todas as nossas ações aconteciam diante das câmeras, então era mesmo muito difícil conservar a naturalidade ou agir com indiferença. Tudo o que fazíamos ou dizíamos chegava aos ouvidos de alguém. Era impossível sentir-se à vontade naquele clima estranho de campo de concentração misturado a clínica de reabilitação com retiro de fé.
Antes de dormirmos, todas as noites um motoqueiro barbudo nos lia trechos da Bíblia ressaltando a virilidade e a macheza dos profetas e apóstolos, eles mesmos muito másculos, fortes, bravos, bastante famosos entre as mulheres da Idade do Bronze e da Antiguidade.
A trilha sonora era o pior do hard rock das décadas de 70-80, até mesmo aqueles que teriam sido considerados profanos ou blasfemos perante a fé cristã: Guns n’ Roses, Bon Jovi, AC/DC, Def Leppard, Judas Priest, Skid Row, Scorpions, Nazareth. Enquanto éramos obrigados a suportar aquilo, os jovens eram provocados até o limite do bom gosto, e entravam em dolorosas crises de abstinência durante as quais imploravam por nem que fosse um pouquinho só de Beyoncé, Rihanna e Lady Gaga.
Cortando o silêncio da noite ouvíamos os gritos dos internos que os guardas escolhiam para molestar. Era aqueles que eles achavam mais bonitinhos, mais parecidos com meninas. Felizmente não foram com minha cara.
Foi uma experiência limite para todos os envolvidos. Tínhamos de observar o comportamento do macho heterossexual comum e imitá-lo: vê-lo coçar o saco, arrotar depois de beber cerveja, mijar em pé e errar o alvo na privada, frear a cueca, deixar crescer a pança na base do desleixo, abrir o capô do carro pra conferir alguma coisa, coisas que eu pensava que qualquer um podia fazer, não precisava nem ser macho.
Ainda tivemos de frequentar as ditas “oficinas de masculinidade”. O oficineiro, um bem-sucedido empresário na faixa dos trinta anos, musculoso, relógio grande no pulso, o típico homem da capital vestido com roupa social, óculos escuros e com o celular preso à calça, falava sobre a importância de ser um homem bem resolvido e trabalhador na sociedade, devotado a Cristo mas consciente do seu papel fundamental para a reprodução da espécie, fenômeno que só é possível de ser continuado mediante a introdução do pênis na vagina, posto que qualquer outro tipo de relação não-binária, ou seja, qualquer relação bissexual ou homossexual parece contrariar essa disposição perfeita da natureza para gerar descendentes. Ele ainda dizia que o homem só era feliz na companhia de uma mulher temente a Deus, e mais feliz seria ainda quando encontrasse uma mulher capaz de satisfazê-lo sexualmente e presenteá-lo com uma boa prole.
Ele só tinha se esquecido que ninguém ali na plateia, nenhum indivíduo só no meio daquela molecada toda, estava interessada em “gerar descendentes”. Tudo o que queríamos era um pouco de diversão. Não importava se fosse “natural” ou não.
O nosso oficineiro ainda tinha seus momentos de arroubo literário, e escrevia discursos e poemas que nos inspirassem.
“O que é ser homem?”, ele recitava um poema seu. “Ser homem é 4 por 4, é 8 cilindros, é cachoeira, é mancha de óleo, é a ponta da lança, é a cavalaria, é cheiro de queimado, é barba por fazer, é acordar com o pau duro. Ser homem é 5 vira 10 acaba, é queda de braço, é carne na grelha. Ser homem é cachorro grande, é carroceria, é coturno, é dormir no sofá…”
Eu me lembro que esse poema era interminável, então, na memória, com o tempo, fui acrescentando e subtraindo definições do que era “ser homem”, de modos que me é impossível reproduzi-lo tal e qual me foi recitado pela primeira vez.
Mas o pior ainda estava por vir. No último dia de oficina fomos visitados, pela primeira vez em duas semanas, por uma mulher. Era uma mulher de uns quarenta anos, e parecia fazer o tipo da garota de programa experiente (não que eu pudesse ter pensado isso naquela época). Devíamos observar e anotar as técnicas de aproximação que o nosso homem exemplar levaria adiante. A cada investida deveríamos prestar atenção nas reações da mulher, e imaginar quais seriam as melhores formas de conquistar a sua atenção. Apesar do objetivo ali ser a conquista da mulher pretendida, o nosso homem exemplar deixava clara a importância de adiarmos o sexo apenas para depois do casamento.
Ele nos ensinou a provocar na mulher a vontade do desejo carnal, como estimulá-la e atraí-la para um relacionamento. Tudo isso não teria sido possível se a mulher ali em questão não tivesse agido com muito boas intenções. Ele fez questão de frizar que na vida real seria muito diferente, as mulheres eram mais cruéis, mais difíceis de se “pegar”. Como se a mulher fosse um animal exótico vivendo na savana africana, o caçador homem deveria empreender uma série de estratagemas sofisticados para capturá-la e impedi-la de fugir ou de se distrair na presença de outro macho.
Depois passamos à aula prática, e cada menino do acampamento recebeu uma menina com quem deveria botar em prática o conhecimento adquirido na aula.
Quando me deparei com aquilo, pensei que estava sendo submetido a um abuso ainda pior do que o estupro que me coube no quarto de meu tio pastor. Eu olhava para a expressão no rosto de meus colegas de acampamento, e os via mordendo os lábios, olhando para o alto, para o chão, extremamente desconfortáveis diante da obrigação de terem de se relacionar com uma garota de verdade. Ninguém estava minimamente seguro ou confiante para o desafio, e menos ainda para a possibilidade de burlá-lo.
Enquanto isso, precisávamos ainda aturar as mensagens motivacionais do nosso instrutor.
O nosso treinamento não serviu apenas para que os pastores e demais membros-em-chefe da comunidade religiosa nos reorientassem e nos induzissem a uma heterossexualidade forçada. Também fomos catalogados numa ficha confidencial que continha todos os nomes dos elementos daquela seita que representassem ameaças em potencial à doutrina da fé que alegavam professar. Então, de certa forma, também fomos fichados porque tínhamos tendências que escapavam daquilo que achavam necessário à preservação da família tradicional cristã.
Essas fichas criminais foram indexadas ao serviço de inteligência machista do país. Passaram a nos monitorar de perto. Apesar dos resultados terem sido considerados “insatisfatórios” ou “abaixo das expectativas”, novas clínicas de reorientação sexual começaram a aparecer país afora, com métodos semelhantes àqueles dos quais havíamos sido cobaias, e aquilo que era oculto por fim tornou-se público e propagandeado por um pesado esquema de publicidade.
Foi ao final do treinamento que, movidos pela indignação e revolta, uma sensação de empalamento e estrangulamento misturados, resolvemos fundar a nossa sociedade secreta. Foi dali que fugi de casa e fui morar em um cortiço homossexual, junto com outros meninos, onde me converti ao satanismo e me tornei um canibal cujo sentido da vida é devorar heterossexuais que andam desprevenidos pelas ruas da grande metrópole.
Nunca mais quis ter notícias de minha família, nem de quaisquer membros daquela igreja de merda. O único de quem senti saudades foi Maykon, mas nunca mais o encontrei.
Porque meu nome consta na lista dos homossexuais mais perigosos da nação, até hoje recebo no meu e-mail e no celular propagandas de tratamentos milagrosos de gente que acredita ser capaz de me curar a sanha.
Mas a fome não tem fim, e acho que hoje à noite vou comer um crente. Daqueles bem machões.
Imagem: Chas Laborde