buda, heráclito e o fogo

É claro que não sou o primeiro a estabelecer comparações entre a doutrina de Sidarta Gautama, o Buda, e a de Heráclito de Éfeso. Também pelo fato de terem sido, muito provavelmente, contemporâneos, a similaridade entre suas ideias chama atenção porque ambas se apresentam, em seus contextos, com um elevado grau de originalidade – e criam condições para uma certa compreensão da realidade à qual não podemos permanecer indiferentes. Um insight que revele a impermanência das coisas, da matéria e da forma, e que sirva de plataforma para uma percepção mais profunda das mudanças e, por consequência, do vazio subjacente a tudo, é algo que atrai a atenção de qualquer um que tenha tendência para a filosofia.

            As análises comparativas da filosofia antiga não se restringem a colocar Buda ao lado de Heráclito. Também um grande representante da filosofia chinesa, Lao Tsé, tem, na sua mensagem, palavras que se assemelham àquelas proferidas pelo filósofo pré-socrático.

            Neste pequeno ensaio, contudo, dedicarei minha atenção à ideia de fogo, tentando compreender o papel que este elemento cumpre, enquanto metáfora, analogia ou imagem, na doutrina espiritual de Buda, e na doutrina filosófica de Heráclito.

            Comecemos pelo filósofo:

            Sabemos que Heráclito de Éfeso viveu durante o século V e IV a.C, na Jônia, na costa da Ásia Menor. Assim como dos outros filósofos pré-socráticos, tudo o que sobrou de suas palavras e sua escrita são alguns vestígios. Os fragmentos que restaram de sua suposta obra, Da Natureza, têm um estilo oracular. O biógrafo Diógenes Laércio, que viveu entre o século I e II d.C, disse coisas interessantes a respeito de sua vida e de seu pensamento. Chama-nos a atenção o seu comportamento e o seu elevado padrão de virtude. Não se interessava por política, e não confiava nos seres humanos. Segundo Diógenes Laércio, Heráclito teria se indisposto com os cidadãos de sua cidade, e se retirou para viver num templo de Ártemis – aquele mesmo templo que Antípatro de Sídon listou entre as sete maravilhas do mundo antigo. Depois disso, Diógenes diz que:

“Finalmente Heráclito tornou-se misantropo e se afastou do convívio humano, passando a viver nas montanhas, alimentando-se de ervas e verduras. Em decorrência desse modo de viver, adoeceu de hidropisia e teve de voltar à cidade. Perguntou aos médicos de modo enigmático se sabiam transformar uma inundação numa seca”.

            Heráclito era um sábio eremita que se educou por conta própria. O seu modo enigmático de falar é sua marca, e rendeu a ele a alcunha de o Obscuro. Uma das versões de sua morte sugere que, uma vez que os médicos não conseguiram entender o seu auto-diagnóstico (a inundação), ele procurou os conselhos de um curandeiro. Seguindo as suas indicações, Heráclito teria se coberto de esterco. O problema foi que, não tendo sido reconhecido pelos seus cães por causa do cheiro de esterco, acabou sendo devorado pelos animais.

“Heráclito depositou sua obra no templo de Ártemis, e segundo a opinião de alguns autores escreveu-a propositalmente num estilo obscuro a fim de que somente os iniciados se aproximassem dela, e para que a facilidade não gerasse o desdém.

Tímon caracteriza-o dizendo:

‘No meio deles levantou-se Heráclito, que grita como um cuco, despreza o vulgo e é enigmático”.

            Quais poderiam ter sido as semelhanças entre a doutrina deste homem e a de Buda? Quais foram os pontos de comparação estabelecidos até hoje? Ora, certamente, poderemos apontar para a questão da impermanência que, a partir de Heráclito, se cristalizou numa máxima: “nunca entramos no mesmo rio duas vezes”.  A expressão, já bastante conhecida, não é de difícil interpretação: o fato de que o rio continua a correr, e de que suas águas estão sempre sendo substituída por novos caudais, numa eterna corrente em movimento, sugere que no mundo não possa haver uma coisa que continue a ser para sempre aquilo que era; diante do movimento irrecusável e da força pela qual as coisas vêm a ser, deixando ser o que eram, tudo é um perpétuo devir: aquisição e perda de forma. Nada é permanente, tudo muda.

            Dessa forma, tanto o rio está em movimento, quanto o nosso Ser, a nossa personalidade. A identidade das coisas se funda numa contradição entre Ser e Não-Ser, uma oposição entre duas instâncias tensionadas em direções contrárias. Se sou alto, é porque não sou baixo; se sou jovem, é porque não sou velho; se sou feliz, é porque não sou triste. Se me torno adulto, é porque deixei de ser criança.

            Não teria sido possível para Heráclito elaborar a sua doutrina sobre a mudança e a multiplicidade das coisas sem assentá-la numa perspectiva cosmológica própria. Assim, seguindo a tradição dos filósofos milésios, que estavam sempre imbuídos de uma certa dedicação para refutar a tese de seus antecessores e sofisticá-las com novas proposições, também Heráclito encontrou uma nova arkhé, ou seja, um novo princípio que pudesse servir de substância para o Cosmos e explicar tanto a origem de todas as coisas, como o processo pelo qual elas adquiriam qualidades, transformando-se em coisas novas, e multiplicando os corpos e as suas características no espaço.

            Antes dele, Tales de Mileto propôs que a substância universal era a água, posto que a água era o alicerce da Terra, e todos os corpos eram constituídos a partir de composições mais densas ou menos densas de água. Essa tese era provavelmente herdeira da mitologia do Oceano enquanto deus primordial. Anaximandro, discípulo de Tales, procurou refutá-lo, colocando no lugar da água uma substância chamada de apeiron. Nessa cosmologia, a Terra não estava mais boiando num caldeirão infinito de água, mas suspensa sobre o nada, e contornada pelo nada em todas as direções. O apeiron, contudo, não é o vácuo. Não “falta” nada a essa substância; ela é ilimitada em todas as direções, e plena, posto que é subjacente a tudo.

            A inovação de Heráclito envolve uma redefinição tanto cosmológica quanto cosmogônica. Os filósofos precedentes, como Tales, explicavam a multiplicidade das coisas do universo como sendo resultantes dos diferentes estados e possibilidades de aquisição de forma da água. Anaximandro modificou essa noção sugerindo uma outra substância primordial cuja apreensão, de nossa parte, exigira uma percepção um pouco mais metafísica: o apeiron é, pois, a substância que permeia todas as coisas e está tanto na sua origem quanto no seu final, ao qual as coisas todas retornam.

            Nas suas proposições, tanto Tales quanto Anaximandro compreenderam que os diversos elementos que existem no cosmo, a terra, o ar, a água, o fogo e também os seres vivos, tudo resulta da multiplicidade já inserida na potência do princípio primordial. Assim, se o universo é a nossa casa, esse abrigo acolhe uma variedade extensa de coisas com formas variadas: ao lado da água temos o fogo, o relâmpago, os vulcões etc.

            De que forma Heráclito inovou ao sugerir uma nova visão do cosmos? A metáfora do rio sintetiza a concepção heraclitiana de que todas as coisas estão imergindo num devir perpétuo. Até mesmo o nome das coisas seria insuficiente para caracterizá-las, uma vez que elas estão sempre em vias de perder sua forma anterior e adquirir uma nova. Qual é, pois, o elemento que se encontra melhor associado com as transformações da natureza? Apesar da metáfora envolver um rio, ou seja, uma torrente de água, o elemento que melhor se associa às transformações não é a água, mas o fogo

            Sim, pois todas as coisas que passam pelo fogo se modificam. O fogo é a transformação, a mudança, no seu estado mais puro. Não se pode restituir as cinzas ao que elas eram: a flecha do tempo caminha sempre na direção do futuro, liberando entropia. Mas, na visão de Heráclito, o fogo não é apenas um elemento dentre todos os outros. Ele é o princípio e o final de todos. Todas as coisas estão sujeitas a mudança, logo, as coisas são impermanentes; todas as coisas terão suas formas alteradas no decurso do tempo, e de um modo inevitável e irreversível. Assim, todas as coisas estão, de algum modo, submetidas a um fogo invisível que trabalha permanentemente para uma transmutação contínua. O fogo, portanto, não é algo que, assim como a água ou o ar, faz parte deste enorme cosmo/casa que nos abriga e que chamamos de Universo: o fogo é a própria casa. O universo inteiro está pegando fogo, porque o fogo é a única substância e, por meio dela, todas as coisas vêm a ser, ganhando e perdendo forma.

            Mas a resposta que Heráclito deu para o problema da mudança também preservava o desejo de observar uma substância permanente que se ocultasse por baixo de todo esse processo de transformação contínua ao qual o Ser está submetido. Assim, era provável e intuitivamente correto que alguma coisa continuasse existindo para além de todas as alterações, qualificações e acidentes que competem ao Ser.

            Insistir demasiadamente nesse ponto, de nossa parte, poderia acabar por levar as ideias de Heráclito a um certo domínio dualista da existência, em que algo de absoluto e inqualificado subjaz a todas as mudanças aparentes. A realidade passaria a se dispor ontologicamente num circuito fracionado, a partir do qual compremos as alterações materiais como algo de menor significado do que a verdade subjacente a elas – e que é, por sua vez, absoluta e mais real do que as mudanças, que são apenas aparentes.

            Diz, Diógenes Laércio, a seu respeito:

“De um modo geral, os pontos fundamentais de sua doutrina são os seguintes. Tudo se forma do fogo e volta a ele. Tudo acontece por força de necessidade, e as coisas existentes são postas em harmonia por meio de correntes antagônicas. Tudo está cheio de almas e de demônios. Heráclito exprimiu sua opinião sobre todos os fenômenos ordenados do universo e afirmou que o sol não é maior do que parece. Outra expressão sua é: ‘Não poderás achar os limites da alma, nem mesmo se percorreres todos os caminhos, tão profunda é a razão que ela possui’. Ele definiu a presunção como a ‘moléstia sagrada’, e afirmava que a visão engana. Às vezes, entretanto, suas expressões são a tal ponto brilhantes e nítidas que até a pessoa mais obtusa pode entendê-las facilmente e sentir a alma elevar-se. A concisão e a ponderosidade de seu estilo são incomparáveis”.

            De que modo podemos comparar, então, a ideia de fogo enquanto substância e agente transformador, tal como exposta na doutrina de Heráclito, com a ideia de fogo apresentada por Buda? Antes de chegar a esta ideia, passemos um pouco por cima de sua figura.

            Sabemos da história de Sidarta Gautama a partir de daquilo que seus discípulos escreveram a seu respeito, muito depois de sua morte. Nada tendo deixado escrito, tudo aquilo que viveu, disse e pregou, foi compilado pela sua comunidade de fiéis alguns séculos depois de sua morte. Histórias sobre sua vida, os seus sermões, suas vidas passadas, e as regras da comunidade monástica, foram referendadas por acordos firmados nos concílios que se sucederam na história, após intervalos de séculos. As ramificações do budismo, por sua vez, e, ao contrário das ramificações cristãs, não resultaram em guerras ou perseguições, posto que muitas dessas escolas frequentavam os mesmos monastérios e não havia um dogma a respeito das práticas e dos insights que cada monge poderia alcançar em suas meditações

            Não falarei tanto assim sobre quem foi Buda nem sobre o budismo. Muito poderia ser dito sobre a história do fundador dessa religião, as lendas a seu respeito, os seus milagres, e muito também poderíamos dizer sobre a cosmologia budista que as diversas tradições construíram ao longo dos tempos, os seus paraísos e infernos, as divindades pacíficas e furiosas, os seus vários sábios e mestres, tais como Vasubandhu, Bodhidarma, Nagarjuna,ou Padmasambhava.

            Para quem não conhece Buda, ou o budismo, interessa saber que Sidarta Gautama foi um príncipe do reino de Shakhya, que provavelmente viveu no século VI a.C, numa região da Índia que fica próxima ao Nepal. Sua doutrina se coloca dentro de um momento importante da história das religiões, naquilo que Karl Jaspers chamou de Era Axial. Esse período compreende uma porção de séculos dentro dos quais se inserem alguns eventos fundamentais da história do pensamento humano – como que uma proto-modernidade de onde procedem inúmeras ideias, filosofias e práticas centrais da cultura civilizada: o taoísmo e o confucionismo na China; o budismo e o bramanismo na Índia; o zoroastrismo na Pérsia; e a filosofia Jônica na Grécia. Essa nova cultura espiritual que se alastrou pelo mundo inaugurou um novo momento de introspecção e interioridade. As religiões antigas, mais ligadas ao sacrifício, foram renovadas por perspectivas mais pessoais, reflexivas e abstratas. Conectando estes eventos no espaço havia as estradas do estado persa, pelas quais circulavam pessoas, mercadorias e, no caso, ideias e religiões. O budismo, mais do que qualquer outra religião de seu lugar e de seu tempo, se vinculou às caravanas de comerciantes que transitavam pelas estradas que conectavam a China, a Índia e a Pérsia.

            O que nos interessa do budismo, e o que nos interessa da Era Axial? Do budismo, precisamos ter em mente que muitos de seus conceitos, como karma, átman, ou dharma, são provenientes de um fundo cultural hindu, já estabelecido na cultura indiana há pelo menos um milênio antes que Buda aparecesse. Temas como reencarnação e renascimento, ordem cósmica, eliminação dos desejos, dedicação a um bom karma, são assuntos compartilhados pelos budistas, hindus, jainas, e tântricos – tradições espirituais misturadas no caldeirão das religiões indianas. A inovação de Buda consistia numa refutação da especulação bramânica sobre o cosmos, uma não identificação com o princípio de átman, a rejeição da estrutura de castas, a indiferença às divindades, e uma simplificação das práticas rituais, sacrificiais, e dos exercícios bramânicos. Além disso, o budismo também se assemelha a essas outras tradições de buscadores espirituais, como os jainas, seus contemporâneos, na busca por lugares afastados da vida urbana, onde pululam os estímulos sensoriais.

            Sidarta, o Buda, tanto dentro de sua comunidade de seguidores, como também para a algumas tradições hindus, foi um sujeito que alcançou a iluminação – uma busca espiritual típica daquele contexto, lugar final da dedicação da vida de muitos santos e renunciantes. Sua iluminação, contudo, parece ter sido mais radical do que a de outros santos e profetas da Índia, posto que ela exclui a sua figura do mundo, e extingue a possibilidade de futuros renascimentos. Por isso, seu título, Tathagata, significa “aquele que já não se encontra mais aqui”. A proposta de Buda, inédita na comparação com a de seus contemporâneos, como Mahavira e Gosala, envolve uma receita muito simples cujo objetivo final é a cessação do sofrimento – e o fim do sofrimento está ligado ao fim do ciclo de renascimentos. Seu primeiro sermão, no qual são anunciadas as Quatro Nobres Verdades, é dedicado à exposição da tese que define o budismo: existe o sofrimento (dukkha); existe a causa do sofrimento; existe a cessação do sofrimento (nirvana); e existe o caminho para a cessação do sofrimento. A iluminação é, portanto, a transposição para fora da zona obscura da ignorância. Seu efeito envolve aniquilar qualquer elo que reintroduza o nexo de seu sujeito na causalidade desejosa que mantém girando a roda da vida.

            O que Buda teria a falar sobre o fogo, que tanto nos interessa, e que renderia uma comparação com as ideias do filósofo Heráclito? O texto do qual extraímos a noção que será aqui apresentada é o bastante conhecido Sermão do Fogo (Ādittapariyāya Sutta), o terceiro sermão proferido por Buda em sua vida, e que consta nos volumes do Sutta Pitaka, compilação do Canône Pali em que encontramos mais de 10.000 ensinamentos atribuídos a ele.

            O uso de metáforas e parábolas é recorrente nos ensinamentos de Sidarta Gautama. Seu método, na verdade, se insere na tradição pedagógica também encontrada nas Upanixades. Tenhamos em mente o cenário destes ensinamentos: grupos de monges que viviam sob a luz de um determinado mestre, sempre reunidos nos ashrams nas florestas, longe das grandes cidades.

            Tomemos dois exemplos de metáforas espirituais daquele período que se tornaram famosas: o ensinamento sobre o átman, encontrado na Chandogya Upanixade, e a metáfora da flecha utilizada por Buda.

            A conversa entre Uddalaka e seu filho Śvetaketu é um dos diálogos mais conhecidos e citados das Upanixades. Ali encontramos algumas lições, transmitidas por meio de comparações práticas, a respeito da substância do átman. Essa substância, muitas vezes traduzida para o inglês como Self, e para o português como algum tipo de “alma cósmica”, sugere uma unidade relacional entre o indivíduo e o todo (eu e Eu). A contemplação possível do átman se abre a partir de uma revelação gnóstica, as verdades ensinadas pelo guru, e pela prática da quietude, da meditação, e da suspensão dos fluxos mentais – tal como prescreve o yoga.

            Neste sentido, átman, , é um princípio que opera dentro da consciência individual dos sujeitos, mas, sendo eterno e pleno em sua natureza mais profunda, ele é uma qualificação particular de um princípio universal que percorre todas as coisas. A alma individual, concentrada no jivatman, está sempre à espera de uma união com a alma suprema, paramatmanam.

            Dada a explicação, qual é, pois, a metáfora que gostaríamos de trazer aqui como exemplo? É apenas um trecho do diálogo de Uddalaka com seu filho, e cuja conclusão resulta na máxima mais conhecida das Upanixades: Tat Tvam Asi – comumemente traduzido, do sânscrito, para isto és tu.

Uddalaka disse para Svetaketu trazer para ele o pedaço da fruta de uma figueira que estava ali perto. Depois pediu para quebrar o fruto e abri-lo. Svetaketu fez isso e disse: “há sementes dentro, mas são todas muito pequenas”.

Uddalaka disse: “agora quebre uma das sementes e me diga o que você vê dentro”. “Nada, pai”.

Uddalaka disse: “Meu filho, essa grande figueira cresceu de uma semente tão pequena que você não pode vê-la. Acredite em mim, uma essência sutil e invisível é o espírito de todo o universo. Agora, pegue este sal e coloque dentro de um copo com água, e me traga amanhã de manhã’

Na manhã seguinte, Svetaketu olhou para o sal mas não conseguia encontra-lo na água porque tinha se dissolvido. Uddalaka pediu ao seu filho para provar a água. “Salgada”, ele disse, acrescentando que “o sal vai continuar para sempre misturado à água”.

“Está certo”, disse Uddalaka. “O sal permeia a água assim como o Átman permeia a tudo. Mesmo que não consigamos ver, o Átman está dentro de todas as coisas e não há nada que não venha dele. Essa essência sutil e invisível é o espírito de todo o universo. Isso é a realidade, essa é a verdade. Svetaketu, tu és isto! Tat tvam asi”.

                A metáfora do sal, nesta passagem da Upanixade, é apenas a culminação de uma série de metáforas anteriores colocadas em jogo por Uddalaka para despertar em seu filho, Svetaketu, um insight revelador sobre o cosmo.

            Pois bem, o budismo é também uma negação dessas conclusões. A metáfora da flecha, formulada por Buda, é uma resposta ao desejo por explicações. É, em seu sentido mais explícito, uma negação das tendências especulativas do hinduísmo das Upanixades. Como ela funciona? Ora: imaginemos que você tenha levado uma flechada no braço, e que a ferida esteja doendo de maneira insuportável. Sua ação mais inteligente seria remover a flecha ou procurar pelo arqueiro que a disparou? Pois então, para Buda, mais importante do que explicar a criação do Universo, os seus limites, sua extensão, é remover a flecha e estancar a ferida, ou seja: interromper o sofrimento.

            Mas o que Buda tem a dizer em relação ao fogo? No Sermão do Fogo temos a chance de compreender o fogo como uma imagem representativa do desejo e dos sentidos. Transcrevemos aqui o sermão em seus trechos que mais nos interessam:

O Abençoado estava vivendo próximo a Gayā, na companhia de mil outros renunciantes. Então, um dia, o Abençoado disse a eles:

“Tudo, ó, monges, está pegando fogo. O que, pois, está pegando fogo? Os olhos estão queimando, a forma está queimando, a consciência está queimando, e o contato dos olhos com as coisas também está queimando. O sentimento que emerge do contato visual com alguma coisa, seja agradável, desagradável, ou neutro, também está queimando.

E com o que está queimando? Está queimando com o fogo da paixão, o fogo do ódio, o fogo da ilusão. Eu digo que está queimando com o fogo do nascimento, da degeneração, da morte, do pesar, da lamentação, da dor, do sofrimento e do desespero.

Os ouvidos, ó monges, estão queimando, o som está queimando…

O nariz, ó monges, está queimando, os odores estão queimando…

A língua, ó monges, está queimando, o sabor está queimando…

O corpo, ó monges, está queimando, o toque está queimando…

A mente, ó monges, está queimando, o pensamento está queimando…

Sabendo disso, ó monges, o nobre e bem-informado discípulo se desencanta com os olhos, se desencanta com as formas, se desencanta com consciência, e se desencanta com contato visual com as coisas.

Ele tem enfado ao sentimento que emerge do contato visual com as coisas, seja agradável, desagradável ou neutro.

Ele tem enfado aos ouvidos, ao nariz, à língua, ao corpo, à mente, aos pensamentos, às sensações mentais, aos sentimentos que emergem e dependem das sensações mentais, sejam eles agradáveis, desagradáveis ou neutros.

Desencantando-se, ele se desapaixona, e se desapaixonando, ele se liberta. Libertando-se, ele sabe que está livre, tendo em mente que o nascimento foi destruído, e uma vida iluminada foi alcançada, o que devia ser feito foi feito, e não há mais nada a se alcançar”.

Assim falou o Abençoado. Os monges se alegraram com o que ele disse. E enquanto seu discurso ressoava, as mentes daqueles mil monges se libertaram de tudo aquilo que as contaminava, sem que qualquer resquício permanecesse.

Traduzido de: “Adittapariyaya Sutta: The Fire Sermon” (SN 35.28), translated from the Pali by Ñanamoli Thera. Access to Insight (BCBS Edition), 13 June 2010, http://www.accesstoinsight.org/tipitaka/sn/sn35/sn35.028.nymo.html .

                Esta não foi a única vez em que Buda recorreu ao fogo para ilustrar uma ideia do tipo. Outros sermões, do qual o fogo também participa como analogia central, têm um significado semelhante, mas não precisamos mencioná-los aqui. Passemos às nossas conclusões:

                A doutrina de um filósofo é, necessariamente, um edifício de especulação. Ainda que a doutrina de Heráclito nos tenha chegado em pedaços, a partir de fragmentos, estes pedaços são restos de uma enorme especulação – já obscura desde a primeira escrita. Isso posto, a comparação aqui feita fica mais interessante, porque a doutrina de Buda, disso não há dúvidas, é bastante anti-especulativa. A metáfora da flecha sugere exatamente isto: não faça perguntas, aja! A participação do fogo, elemento que exige uma atenção constante, portanto, é algo que responde aos propósitos de cada doutrina: a doutrina do filósofo envolve uma tentativa de explicação do cosmos; a doutrina de Buda procura um caminho para o fim do sofrimento, que é uma das marcas do cosmos. Quer dizer então que o fogo de Heráclito, provido de substância, e observável nos fenômenos do universo, não é apenas a metáfora para uma lição ética, mas um caminho para a compreensão da máquina do mundo, de toda a nossa casa e o seu abrigo, e, também, do seu funcionamento. Podemos tirar conclusões éticas a seu respeito, e moldar nosso comportamento em torno do conhecimento compartilhado por ele: se o mundo é tão impermanente, não devemos depositar tanta confiança nas aparências.

            O fogo mencionado por Buda, relacionado ao desejo, é uma imagem poderosa, mas sua existência está limitada ao seu uso dentro de uma metáfora pedagógica com implicações éticas mais explícitas do que a doutrina do filósofo. Não se coloca em questão que o fogo exista ou não fisicamente. O foco, aqui, é a ardência, a dor, o sofrimento, e não as propriedades cosmogônicas do fogo. De qualquer modo, sua existência está implicada na existência de um elã vital mais amplo, que se estende pelo universo enquanto desejo – e o desejo, por sua vez, colocado numa economia de ação e de nexos causais, provoca novas existências, novos universos. Em última instância, então, o desejo se coloca dentro do funcionamento da máquina do mundo – ele é, ao mesmo tempo, o combustível e a ardência do fogo.

            Buda e Heráclito concordam que tudo está pegando fogo. Há uma diferença na concepção de fogo, mas também há uma diferença na concepção de tudo. O tudo de Heráclito compreende a variedade das coisas que existem neste nosso abrigo chamado de Universo: os animais, as plantas, as rochas, os rios, e, finalmente, os seres humanos, que estão lado a lado com as outras coisas. O tudo de Buda se sustenta em outra instância, que é a relação entre o sujeito e o mundo. O fogo ardente, que queima todas as coisas, atua por sobre os estímulos que direcionados à consciência e apreendidos pelos sentidos. Sua mensagem envolve a liberdade para além destes estímulos, um rompimento com uma lógica natural de germinação do desejo.

            Um fogo, associado ao desejo, é, então, uma metáfora física, pois apela para os sentidos. Se o fogo está ligado ao sofrimento, então ele responde a uma compreensão sensorialmente próxima dos seus atributos. Mas por que o desejo está ligado ao sofrimento?  Porque é impossível satisfazê-lo num mundo em que as coisas são impermanentes. Cada novo estímulo atualizaria a ordem de desejo estabelecendo novas demandas, mesmo depois que eles encontrassem satisfações momentâneas. No caso de Heráclito, conquanto o fogo seja a substância universal, ele está em tudo e é também responsável pelo movimento transformador das formas percebíveis. Isso, de modo algum, se liga ao nosso sofrimento. O emprego da imagem do fogo na doutrina filosófica de Heráclito depende mais da observação das propriedades do fogo em ação, do que numa resposta sensorial de nossa parte aos seus efeitos. A metáfora de Heráclito é visual; a metáfora de Buda é tátil. Por isso Heráclito não nos obriga a um posicionamento ético tão severo quanto aquele adotado pelos budistas.

            Estas são algumas das diferenças. Mas também existem semelhanças possíveis entre as ideias que cada um, Heráclito e Buda, formulou em torno do elemento fogo. Essa semelhança, curiosamente, diz respeito à compreensão que ambos têm da impermanência das coisas. Provavelmente Heráclito concordaria com Buda que, imaginando serem eternas as coisas perecíveis, estaríamos inevitavelmente nos enredando em sofrimento, posto que seguiríamos uma imagem que é falsa.

            Tudo arde, tudo queima. O fogo é permanente? Conquanto estejamos iludidos na ignorância das aparências, o fogo será permanente. E, num universo governado por ilusões o prazer queima tanto quanto o desprazer. A queimadura é uma impressão, uma modificação corpórea. Mesmo que se suceda à mente, também a mente possui um nível corpóreo. Se fosse possível (não é) sintetizar as duas filosofias numa só mensagem, talvez o que obteríamos seria algo próximo a isso: nunca entramos na mesma fogueira duas vezes. Se não fomos consumidos pelo fogo na primeira vez, então sobrevivemos à incineração das nossas ilusões e não cometeremos o erro de entrar no fogo pela segunda vez.

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