buda, heráclito e o fogo

É claro que não sou o primeiro a estabelecer comparações entre a doutrina de Sidarta Gautama, o Buda, e a de Heráclito de Éfeso. Também pelo fato de terem sido, muito provavelmente, contemporâneos, a similaridade entre suas ideias chama atenção porque ambas se apresentam, em seus contextos, com um elevado grau de originalidade – e criam condições para uma certa compreensão da realidade à qual não podemos permanecer indiferentes. Um insight que revele a impermanência das coisas, da matéria e da forma, e que sirva de plataforma para uma percepção mais profunda das mudanças e, por consequência, do vazio subjacente a tudo, é algo que atrai a atenção de qualquer um que tenha tendência para a filosofia.

            As análises comparativas da filosofia antiga não se restringem a colocar Buda ao lado de Heráclito. Também um grande representante da filosofia chinesa, Lao Tsé, tem, na sua mensagem, palavras que se assemelham àquelas proferidas pelo filósofo pré-socrático.

            Neste pequeno ensaio, contudo, dedicarei minha atenção à ideia de fogo, tentando compreender o papel que este elemento cumpre, enquanto metáfora, analogia ou imagem, na doutrina espiritual de Buda, e na doutrina filosófica de Heráclito.

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buda enquanto um fenômeno da natureza

Este pequeno ensaio, ou exercício, é uma tentativa de interpretar a realização de Buda, ou seja, sua iluminação, como um fenômeno da natureza, e não enquanto conceito derivado de um dado específico de uma cultura específica. Essa premissa, com certeza, se insere bem no meio de uma dicotomia que muitos gostariam de considerar superada, posto que a separação entre natureza e cultura remete a formas específicas de se fazer antropologia e sociologia. Uma tal dicotomia traz enormes consequências para a nossa compreensão do que vem a ser o humano, e de qual é a sua relação com os outros seres e as outras coisas que o cercam, sobretudo, qual é o momento em que a sociedade se funda e quais são as primeiras formas sociais próprias de um tempo ou de um lugar, das quais se destacam as coisas particulares em contraste com as universais – mas não quero, aqui, me atentar para uma discussão metodológica ou conceitual. De qualquer forma, tentarei completar o raciocínio sem apresentar uma definição final de natureza – e aí já temos um desafio que, na brevidade de uns poucos parágrafos, será muito difícil de superar. Deixarei então que o próprio termo “natureza” se defina ao longo do texto, conforme a exposição for adquirindo algum sentido. Até lá, tiraremos proveito de algumas ideias de dois filósofos franceses: Henri Bergson e Gilbert Simondon. O primeiro, Bergson, comumente associado àquilo que se chamaria de intuicionismo e, então, espiritualismo; e Simondon, provavelmente um dos maiores fisicalistas do século XX – não havendo nenhuma tentativa de conciliação entre estas ideias, gostaria apenas de buscar alguma inspiração em suas palavras.

O que quero dizer, então, quando estou sugerindo que a realização do Buda possa ser interpretada como um fenômeno da natureza, e não da cultura? Quero dizer que vou tentar apreender essa realização segundo conceitos que não aportem diretamente nas formas socioculturais que ligam o Buda à sua época e ao seu lugar, mas que ascendam filosoficamente na direção de um sentido que se construa por sobre a própria vida. Quero dizer, então, que as causas que levam à iluminação do Buda se originam numa etapa anterior à existência humana e, portanto, sua realização responde a certas condições existenciais que são compartilhadas também pelos outros seres da natureza sem que eles disponham, tal como os seres humanos dispõem, de uma capacidade igual de ação e consciência. Não se trata, portanto, apenas de uma limitação linguística – a própria concepção budista da existência presume que apenas os seres humanos estão qualificados para a iluminação, e não os animais. Isso acontece porque eles, os humanos, dispõem de um grau a mais de consciência sobre os seus próprios apetites e desejos. Essa ideia, entretanto, não é um consenso total por parte dos budistas. Na verdade, num texto importante como o Sutra do Lótus, podemos encontrar afirmações a respeito da possibilidade de todos os seres estarem destinados à iluminação. Mas penso que esse texto responde a uma ramificação do budismo e o seu conteúdo, demasiadamente alegórico, é, para mim, de difícil interpretação.

Se interpretássemos a ação deo Buda através das categorias sociológicas, poderíamos chamá-lo de profeta, e veríamos na sua primeira ordem de discípulos a reunião de uma comunidade religiosa, ou uma seita dissidente e desviante, portanto, original em relação às tradições hindus. Os estudiosos apontariam para a história social do movimento dos anacoretas e dos buscadores religiosos das florestas da Índia, do qual também são contemporâneos Mahavira e Gosala. Seríamos levados a pensar nos códigos culturais que fundamentam e dão significado à realização do Buda, e que são próprios de um contexto – a saber, a Índia Antiga, no interior da cultura hindu. Concluiríamos então que a cultura se constrói a partir de um referencial que é imediato: o meio. Todas as realizações da cultura também seriam , e nisso incluímos as outras religiões além do budismo, uma realização da natureza em certa medida. É sob a proteção da cultura que a realização do Buda pode se abrigar – como se uma janela se abrisse por um momento muito breve e um pássaro adentrasse a sala. Há outros indivíduos semelhantes a ele, mas, em matéria de compreensão sobre a física da mente, dificilmente encontraremos uma originalidade tão inteligente num indivíduo só, e concordaríamos em dizer que tal aparição não seria possível em nenhum outro lugar e nenhuma outra época. A natureza esperou a cultura abrir certas janelas para poder entrar. Mas se quisermos nos fiar em outra comparação que leve ainda mais em conta a passagem do tempo, o quadro temporal a que estes fenômenos se abrem, pensemos então numa semente que depende de uma certa estação específica do ano para poder germinar.

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as feições infernais do paraíso

O raciocínio parte da seguinte questão: é possível confundir céu e inferno? Sob quais condições seria possível confundir um com o outro? Para além da primeira impressão, como se dá a transição para dentro destes domínios? Ou seja, deve haver algum meio-termo existencial que nos permita elencar, ao mesmo tempo, a partir da mesma sensação e experiência, características infernais e celestes que estejam indiscerníveis à nossa intuição conquanto ainda se encontrem entremeadas? E, na ausência de um tal meio-termo existencial, seria plausível que houvesse uma sensação possível de ser desfrutada entre os dois extremos, e qual sensação seria essa?

Estas perguntas, logicamente, envolvem tanto uma definição de céu quanto uma definição de inferno.

Devemos abordar a necessidade dessas definições sob muitas formas. Céu e inferno podem tanto se referir a certos estados psicológicos ou físicos, quanto aos lugares que nossa consciência e alma passam habitar após o seu divórcio com o nosso corpo. Há menções a um submundo povoado pelos mortos em quase todas as culturas religiosas, assim como também céus em que as almas voam livremente. Contudo, a ideia de um inferno cheio de danações, ou de um céu repleto de recompensas, dependeria não apenas de algumas noções teológicas construídas pelo aparato intelectual que cuida de administrar o além-vida, mas também de uma um camada residual de afetos e experiências acumuladas pelos seres humanos ao longo do tempo. Referências a estes lugares existem em diferentes religiões, tanto no cristianismo quanto no budismo, zoroastrismo ou hinduísmo, mas sua paisagem, assim como sua metafísica, costuma variar – algumas coisas se perdendo ou sendo adicionadas conforme cada tradução. O que há, portanto, em comum entre eles?

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