de como acessei as memórias de uma vida passada durante o carnaval de rua em São Paulo

Estou entre o ceticismo e a fé.

Não possuo talento para religião alguma.

Coisas misteriosas sempre aconteceram.

Venho frequentando um terapeuta holístico há mais ou menos dois meses. Minha intenção, ao iniciar o tratamento, era romper o bloqueio natural que nos impede de visualizar com clareza aquilo que os espíritas e hindus denominam “vidas passadas”.

Nunca fui lá muito espiritualizado. Fui crismado quando era criança, e durante a adolescência fui classificado como um “católico não praticante”, seja lá o que isso quer dizer. Amigas já me levaram em terreiros de umbanda e candomblé e nada muito místico me aconteceu lá dentro. Aprendi sobre os orixás e seus poderes mais pra não ficar boiando nas conversas do que porque realmente acreditasse nisso, apesar de emendar um “saravá” vez ou outra e saber de cor o Afro Sambas.

Acontece que de uns tempos pra cá comecei a nutrir certa curiosidade por esse campo da experiência humana, e não sei muito bem porquê.

Buscando ser submetido às técnicas de regressão e hipnose, fui convencido a contratar os serviços de um terapeuta – o Dr. Natanael – a fim de interpretar com alguma clareza as estranhas visões e sonhos que venho tendo, e nos quais me vejo quase sempre perambulando por uma grande cidade destruída e tomada pela barbárie.

Frequentei o consultório do Dr. Natanael plenamente confiante de suas capacidades, uma vez que conhecidos meus me haviam dado um parecer positivo sobre os métodos que ele empregava. Uma amiga me dissera ter conseguido se recordar em sua quase totalidade de uma antiga vida em que havia sido uma camponesa do século XIV vitimada pela Peste Negra. E depois, mais tarde, uma outra vida em que foi uma feirante na cidade de Gênova, onde apaixonou-se por um rico navegante e, não sendo correspondida, transformou este amor num karma a ser resolvido nas suas vidas posteriores, razão pela qual tinha, nesta vida contemporânea, casos amorosos conturbados e quase sempre insatisfatórios com pessoas que viajavam muito.

Fiquei otimista quanto aos seus resultados, apesar da morbidez das vidas passadas de minha amiga, e curiosíssimo para saber quais seriam as minhas vidas passadas.

Da parte de minha amiga, algumas suspeitas suas teriam sido confirmadas, ao passo que não conseguira concordar ou aceitar tacitamente todas as sugestões do terapeuta.

“Mas diz muito sobre mim”, foi o que ela me alegou. “A minha relação com a terra e o meu gosto por plantar coisas, acho que vem daí!”.

“Eu acredito em você, mas acho isso muito estranho”, comentei com ela. “É como se fosse um crime que você cometeu.”

“Como assim?”

“Eu acho estranho que algumas coisas continuem de uma vida pra outra, mas a tua memória não. É como se você cometesse um crime e te apagassem a memória do crime”.

“É porque nossa cultura não compreende tão bem essas coisas. Racionalmente não é possível perceber a continuidade da memória, mas emocionalmente sim…”

“É uma interpretação bonita essa sua, mas a emoção dá muito espaço pra interpretações erradas. Não me parece justo que a gente tenha de responder por coisas que a gente nem sabe que fez. E além disso, que se exija uma sensibilidade tão grande pra percebê-las…”

“Um caminho dentre outros tantos no meio da floresta que floresceu das tuas ações e escolhas. Algumas pessoas parecem ter mais consciência de suas missões espirituais do que outras”.

Ainda um pouco claudicante, resolvi comparecer na semana seguinte. Não comi qualquer carne durante a véspera e suspendi meu uso de drogas. Eu já havia abandonado os terreiros e centros espíritas tinha muito tempo, então estava mesmo ansioso com a consulta espiritual.

Durante alguns anos da minha vida fui uma verdadeira nulidade em se tratando de assuntos espirituais. De exu a tranca-rua, passando pela pomba gira e os caboclos, ninguém nunca teve muito o que dizer pra mim. Só uma vez que um preto véio pediu pra que eu checasse minha pressão alta.

Apesar disso, achava eu que alguns sonhos, certas sombras ou impressões mais que nítidas de gente falando comigo e caminhando em minha direção houvessem me oferecido mistério o suficiente pra pelo menos desconfiar de algo que costuma ir além dos sentidos mais imediatos.

Mas os contatos nunca foram realmente plenos ou satisfatórios. Não traziam nenhum significado. Nunca me conectei com nada. Não por essas vias mais tradicionais da fé cristã.

A família de minha mãe era católica, mas a de meu pai era espírita, e vez ou outra eu era levado a frequentar também o catecismo espírita. Na fila pra receber o passe, quando menino, eu era o que menos se destacava.

Nem católico, nem espírita, as duas fezes se misturaram na minha cabeça. O que aprendi nos corredores da Igreja ou do Centro Espírita, foi a xavecar as garotas assanhadérrimas que compareciam ali. E acho que, em termos de aptidão para a paquera e os joguinhos sexuais adolescentes, as católicas sempre foram mais despudoradas do que as espíritas, provavelmente porque a ideia de pecado durante séculos de maturação na civilização brasileira serviu apenas para incrementar o desejo e a perversão sexual. Pois foi ali e na companhia dessas pessoinhas que despertei para a devassidão, chegando mesmo a corromper todas as meninas da turma, e também alguns meninos mais curiosos que não resistiram às minhas capacidades sedutoras.

O padre, ao saber que meus pais haviam dividido minha educação religiosa, e que eu também era levado ao catecismo espírita, chamado, na verdade, de “evangelização”, repreendia cada comentário meu sempre que tinha a oportunidade, aumentando meus erros e diminuindo meus acertos, e ainda dizendo que eu “não devia dar atenção àqueles necromantes” – assim se referia aos médiuns que se comunicavam com os espíritos dos mortos.

Talvez o Dr. Natanael fosse abrir um capítulo novo na minha relação com a fé e, por aí, comigo mesmo.

No entanto, as minhas sessões foram infrutíferas. Lá cheguei, e de lá voltei sem nada. Não consegui “atravessar o túnel” que me ligava a essas memórias anteriores, mergulhadas no mar do inconsciente. Não consegui nem mesmo ser hipnotizado pela voz calma e serena do terapeuta.

Deitado no sofá, de olhos fechados, em meio à penumbra e uma música repetitiva, o Dr. Natanael recorria a todos os recursos conhecidos:

“Eu vou contar de 10 até 0. Aos poucos sua memória vai se clarear. Aos poucos você conseguirá visualizar plenamente essa pessoa que você era, e a vida que você levava. Assim que eu chegar ao 0,  você me dirá qual era o seu nome, e quem era você.”

Tão fácil assim? – pensei comigo mesmo.

Então ele iniciava uma contagem regressiva na qual ia estalando os dedos. Supostamente o som repetitivo de seus dedos deveria me conduzir a um estado semiconsciente no qual viriam à tona todas essas memórias, facilitadas pelo desbloqueio conseguido na hipnose.

“Qual é o seu nome?”, ele me perguntava, ao final da contagem regressiva, sem obter qualquer resposta de minha parte.

Será que devo dizer um nome que me soa familiar? – pensei, sem ter dito coisa alguma.

“Eu vou contar até três e então vou tocar o seu pulso. Eu quero que essa pessoa que você era mande uma mensagem para a pessoa que você é hoje. O que você tem a dizer?”

Tentei deixar meu pensamento fluir, relaxar. Mas não vinha nada. Eu estava totalmente consciente de tudo. Comecei a pensar em umas imagens que me parecessem meio nostálgicas, mas não estava convencido de que fosse algo genuíno: me imaginei morrendo na guerra, ou então subindo uma montanha no Himalaia.

“Vamos tentar de novo, de outra forma agora. Eu quero que você tente ver a si mesmo de fora. Vá em direção à luz, e mergulhe na consciência suprema”.

Antes de achar que havia algo de errado comigo – em tese não era novidade alguma o que eu vivia ali -, desconfiei que o Dr. Natanael fosse apenas outro picareta, e que o caso de minha amiga era o exemplo mais perfeito de wishful thinking. De uma hora pra outra me tornei mais cético ainda, mas, como já havia pago pelo pacote de oito sessões, continuei frequentando o consultório, cada vez menos otimista, e, depois de um tempo, já enjoado do cheiro de incenso e do barulho da pequena fonte de água jorrante na entrada do consultório.

Sempre achei que a fé não fosse algo que dependesse de nossas escolhas. Não, ao menos, de uma escolha racional, em que sopesássemos os melhores argumentos numa contraposição entre a fé e a razão. Talvez fosse algo que dependesse de outra coisa – o quê, exatamente, eu não sabia. Quem sabe experiências mais sólidas do que aquelas que eu teria tido até então?

Relatei à minha amiga, e ela fez pouco caso.

“Provavelmente você não está preparado ainda”.

“Não seja arrogante”, eu disse.

“Acho que você se bloqueou pra esse tipo de experiência. Sua entrega não me parece verdadeira”.

“Como assim, entrega? Eu contratei os serviços de um profissional! Será que eu não tenho vida passada nenhuma?”

“É isso! Você é um espírito de primeira viagem! Hahahaha!”

Saí dessa conversa achando que esse treco de vidas passadas não era outra coisa além de autoficção, e que as pessoas podiam usar isso do mesmo modo que usavam a astrologia, apenas pra se entreterem consigo mesmas, redesenhando pra si as linhas de seus destinos, sentindo-se verdadeiramente únicas e conhecedoras de si mesmas quando faziam isso.

O assunto morreu quando entramos na semana do Carnaval. Eu queria aproveitar ao máximo minha solteirice, então andei xavecando absolutamente todas as pessoas mais bonitas que eu conhecia, inclusive algumas que nem eram solteiras, mulheres, homens, e obviamente alguns celenterados que não se encaixavam em lugar algum e apenas flutuavam pela grande orgia dos gêneros.

Era a festa da carne, afinal, e o Tinder estava mais movimentado e promissor que um verão em San Tropez.

Encomendei drogas caras com um colega traficante, que me certificou um tanto até enfaticamente sobre a potência daquilo que eu adquiria.

“MANO! Meu camarada usou essa porra aí num festival e até se cagou! Tipo se cagou inteiro, teve até que ir pra barraca se trocar! Toma cuidado!”

A propaganda era enganosa. Esse povo tinha a mania fazer coquetéis de droga, misturando MDMA com LSD com ecstasy, ketamina, cocaína e Viagra. Era algo simplesmente descabido pra mim. Eu já havia usado cada uma dessas drogas separadamente, menos Viagra, e nunca achei que seria boa ideia misturá-las. Algumas, como ketamina e cocaína, eu nunca mais senti vontade alguma em usar de novo. Achava que seus efeitos não valiam o investimento, e a ressaca era desproporcional demais.

Mas Viagra? Puta que me pariu! O traficante alegava que o efeito do Viagra, ao dilatar os vasos sanguíneos, era o de potencializar as outras drogas. Mas ficar com o pau duro…

Isso me lembrava a história contada por uma prima médica que, trabalhando em um plantão, teve de amputar um pau gangrenado. O casal chegou ao pronto socorro, todo feliz e sorridente, enquanto contavam sobre a potência de uma ereção de mais de dez horas.

Eu nunca consegui me esquecer dessa história.

“Não, só vou querer umas bala, ácido, e o MD”, foi o que eu pedi ao camarada.

“Tá vendo! Depois você reclama quando eu digo que sua espiritualidade tá bloqueada! Olha o tanto de droga que usa!”, era a argumentação preferida de minha amiga.

“Protesto! Muita gente usa drogas, inclusive algumas naturais, pra alcançar o divino! Teu argumento não procede.”

“Mas convenhamos que não é pra isso que você usa, né? Ou você acha que um xamã bebe ayahuasca pra sair no bloco dos sereianos e pegar um monte de crushes?”

Ela estava só mais ou menos certa quanto a esse ponto. Tomo ácido desde a barriga da minha mãe, mas eu nunca pensei que era um xamã e nunca nem quis sequer trilhar quaisquer caminhos que me levassem a me autointitular um xamã – título abreviadamente pretensioso pra alguém de minha estirpe.

“Esse é o primeiro nível da bruxaria, menino. E você nem sabe o que tá fazendo”, minha amiga, que também se autointitulava bruxa e neo-pagã, achava que eu corria riscos demais “atraindo esse tipo de energia”.

Naquela semana de novo eu sonhei que perambulava por uma cidade destruída. Havia gente bêbada e nua, vandalizando as ruas.

Qualquer interpretação me levaria a crer que eu sonhava com a proximidade do carnaval, e aquela devastação toda nada mais era do que uma figuração onírica do espírito carnavalesco, da promessa de suspensão da normalidade, do devir que se cria quando essas grandiosas massas de zumbis sem direção são cuspidas pelas bocas dos metrôs.

O sonho não era tão recente assim, contudo, e já me visitava há mais de meses.

Naquela época eu trabalhava como fotógrafo em uma casa noturna. Não ganhava tão bem, mas era um serviço aventuroso que me deixava com muito tempo livre pra fazer qualquer outra coisa. E eu gastava esse tempo com aprendizados e cursos intensivos que nada tinham a ver um com o outro. Assim, já tinha me matriculado e me certificado em diversas áreas: apicultura; massagem indiana; macramé; aromaterapia; marcenaria e carpintaria com bambus; software livre; cultivo de shittake e shimeji; autodefesa; chegando até a tirar licença de motorista na categoria C (caminhões) – e tudo isso em menos de dois anos.

(Acho que eu me preparava para uma hecatombe nuclear, sem saber exatamente o que é que a nova sociedade do futuro exigiria de mim).

Tive de trabalhar apenas uma noite durante o carnaval, quando inventaram de celebrar um minibloco, e então ganhei passe livre dos meus patrões. Eu pretendia me acabar na avenida. Não haveria páreo para mim. Sempre me senti em casa de quando em ambientes luxuriosos. Abriria minhas asas como uma grandiosa ave inca, não só sambando na avenida, mas sobrevoando e pousando apenas para trocar saliva com os outros foliões belos e tão luxuriosos quanto eu.

(Para o desespero de meus pais, que condenavam essa “bestial diversão do gado”).

Amigos e amigas de todos lugares faziam questão de minha presença, e isso não teria sido possível nem se eu tivesse o dom da ubiquidade. Mais de 400 blocos haviam sido agendados para o feriado, em toda a capital. Era impossível comparecer a todos os que me haviam convidado. Convites para fotografar, compor o cordão, ou até mesmo integrar à bateria de um deles haviam sido endereçados a mim com muita estima. Isso, desconfio, era devido ao meu exemplar currículo carnavalesco, construído na base de muita purpurina e glitter ao longo dos anos.

Sem contar as orgias que só aconteceriam em minha presença, caso eu confirmasse minha participação.

A verdade é que sempre fui um luxurioso (era o pecado capital que mais me definia), e não cheguei nem mesmo a dormir direito na noite que precedeu o primeiro dia do fim de semana, de tanto tesão que eu sentia.

Acordei às 8 horas da manhã já aprontando minha fantasia de fauno. As cores daquele ano eram o azul e o rosa, bem suaves. Foi o carnaval vaporwave dos meus vinte e poucos anos. Nada que agredisse o senso comum ou o politicamente correto. Apesar de me fantasiar como um deuso da mitologia grega, não imaginei que me fossem acusar de cometer qualquer tipo de apropriação cultural.

No meio do caminho passei no supermercado pra comprar frutas. Fiquei feliz em arrancar sorrisos das atendentes, que se admiravam de minha beleza e da dedicação com que eu elaborara minha indumentária. Dei a elas algumas dicas e me desejaram um “feliz carnaval!” em coro.

Eu tinha em minha pochete um estoque de drogas calculado com generosidade e pouca parcimônia para durar até a outra semana. Nessas ocasiões eu gostava também de presentear amigos e amigos de amigos meus. Tudo que funcionasse para aumentar o nível de entropia das ruas.

Assim sendo, fui o primeiro a comparecer ao esquenta marcado no apartamento de umas amigas minhas, enquanto elas ainda ensaiavam pra sair da cama.

“Acorda, galera esfincteriana!”, assim cheguei, gritando.

Muitas interjeições e beijos na boca. Muitas fotos expositivas e selfies subidos instantaneamente na rede social, som alto rolando de manhã cedo, funk, axé e pagode anos 90, e um bom café da manhã reforçado com frutas, leite, e drogas, e iniciamos os trabalhos sem conseguir conter nossa animação.

Tínhamos um circuito mais ou menos traçado na cabeça. Opções de bons blocos no centro, saindo da República e da Sé, e mais um outro em Pinheiros, se não perdêssemos tempo nos deslocando de um lugar ao outro. O que sempre havia sido louvável no carnaval paulistano, desde sua “reinauguração”, era a incrível variedade de temáticas e de blocos disponíveis para todos os gostos dos foliões. Assim, fiquei sabendo de um bloco cuja temática eram os filmes de Bollywood, e a trilha sonora seria o pop indiano.

Era o exótico pelo exótico. É claro que havia aquele toque paulistano demais, que terminava por gentrificar ou então gourmetizar o carnaval, e que rendia comentários difamatórios de outras regiões do país, segundo quem os paulistanos eram culpados por ter estragado o carnaval, e por não saberem se divertir.

O que na minha opinião era uma bobagem tremenda. Já tinha ido à Bahia e a Salvador (ao contrário do que cantava o Johnny Hooker), à Olinda e Recife, também ao Rio de Janeiro e aos famosos carnavais de Ouro Preto e demais cidades interioranas Brasil afora.

Sempre houve em mim espaço pra tudo isso.

O percurso estudado para o feriado buscava abranger e abraçar extremos: queríamos ouvir o pop indiano, mas também o jazz, o samba enredo, o brega, o funk lacração e até o eletrônico. E cada música parecia ajustada a um tipo de droga que tínhamos em nosso arsenal químico.

Acho que era daí que provinha a certeza, comumente divulgada entre minhas amigas acadêmicas, de que era mesmo muito difícil cultivar hábitos intelectuais no Brasil.

Começamos dropando uma bala pela manhã, esperando que seu efeito não nos impedisse de dormir durante a noite. E de baseado em baseado, de dose em dose (pinga, cerveja, whisky, nosso paladar acatava de tudo), sintonizamos nossa frequência pra receber as graças dadas pela espontaneidade do dia, quando estivéssemos já à deriva, empurrados pela sorte e pelos bons ventos da algazarra, sempre à procura dos melhores forrobodós e furduncinhos.

Como foi que minha vida se tornou esse parque de diversão cheio de drogas e luxúria? Quando foi que de fato desejei tudo isso, sem que tivesse sido desde sempre levado ou então arrastado pelas mãos aliciantes de meus maiores amores e amizades, até me tornar então uma entidade habitante deste limbo de prazer e gozo – algo que minha fantasia de fauno queria representar tão bem – sempre requisitado nas rodas degeneradas dos pândegos, lunáticos, bichas e pederastas?

Talvez minha maior crença, maior do que a crença na astrologia, no tarô ou nos orixás, fosse nalgum tipo de anjo da guarda protetor que sempre me havia impedido de arcar com consequências desastrosas demais. Dadas as proporções de meu atrevimento, cujas historietas não mencionarei aqui, estou no lucro só pelo mero fato de continuar vivo, solto, sem ficha criminal, sem doenças venéreas, ou então na posse de minhas plenas faculdades mentais.

Mas minha língua jamais passaria num exame do INMETRO.

(Meus pais sabiam bem dessas encrencas todas, e se esforçavam pra esquecer algumas).

Pelo que aprontei na infância e adolescência, eu até que me comportei relativamente bem naquele carnaval, com exceção ou mesmo graças a tudo que me aconteceu no primeiro dia, o fenômeno/evento que é o verdadeiro objeto de meu texto.

Pois bem, já era meio-dia e eu havia perdido a conta de quantas bocas tinha beijado. Troquei afagos com uns bofes lindos e recebi olhares de garotas desconhecidas que pareciam provenientes de algum reino de fadas, de onde tinham saído pra me resgatar e me levarem de volta pra lá.

Eu não teria resistido. Estava mais feliz que pinto no lixo.

Sentindo os efeitos do ecstasy aumentando em intensidade conforme dançávamos sob o sol à pino, pedi às minhas amigas:

“Vocês cuidam de mim, né não?”.

“Quando foi que não cuidamos?”

Abençoados sejam estes anjos da guarda feitos de carne e osso, gostosura e beleza. Elas estavam ridiculamente sensuais, com as tetas à mostra, vestidas de unicórnio, sereia e dríade, toda a amigável fauna da antiguidade pagã reproduzida nesta Saturnália pós-moderna.

E o som era sensacional. Acompanhávamos a procissão de uma banda de jazz que havia feito arranjos de marchinha para uns clássicos americanos. Conforme avançávamos pelo calçadão, o som dos metais reverberava entre os prédios, e as pessoas saíam pra dançar na janela.

Precavido contra os furtos, mantive meu celular, o dinheiro e as drogas dentro da pochete. Minhas posses não corriam quaisquer riscos. Com a ajuda da balinha, assim que a minha temperatura corporal alcançou um ápice, alavancada ainda mais pelo efeito da maconha e do calor escaldante, pensei que ia ter um treco enquanto dançava, mas consegui me controlar. Concentrei-me na dança, e não deixei de recorrer à boa e velha água mineral.

Desde que bem hidratado, o corpo pode muita coisa.

Mas o maior ataque, contudo, não seria desferido contra o meu corpo, mas contra a minha mente.

Tudo começou depois que resolvi dropar aquele ácido. Era um papelzinho azul, com um desenho indiscernível. O efeito do ecstasy já se tinha esvaecido, e só a dor de dente ficara. Ninguém me acompanhou na euforia, e decidi fazê-lo sozinho. Eu tinha sido avisado pelo traficante sobre sua potência e efeitos, mas, mais do que químico, o negócio ali foi espiritual.

Digo isso porque consumir drogas e estimulantes de forma recreativa sempre é apostar na chance de sair de si e, na dissolução do ego, alcançar aquele sentimento gostoso e divertido que chamam de go with the flow, durante o qual coisas maluquíssimas acontecem.

Um exemplo disso é o caso de uma festa em que fui há alguns anos, ao final da qual iniciamos uma batucada entre os remanescentes. Pois que a batucada evoluiu para um mantra de duas horas  intensivíssimas, decorridas dentro de uma cozinha onde dançavam quarenta pessoas cobertas de suor. Até então eu achava que essa tinha sido a maior experiência religiosa de minha vida, simplesmente porque aconteceu sem que ninguém  tivesse combinado nada, a coisa nasceu espontaneamente e se desenvolveu de forma escandalosa, com os envolvidos ali batucando não só os tambores, chocalhos, triângulos e pandeiros disponíveis na casa, mas também a geladeira, os talheres, o filtro d’água e até as janelas.

Era uma lembrança forte na vida de todos nós, e uma boa história pra contar. Não sei nem se todo mundo tinha usado drogas naquele dia, qualquer coisa além do mais comum, do álcool e da maconha – o barato foi doido demais pra todo mundo, e os comentários a respeito eram sempre surpreendentes.

Mas o que me aconteceu naquele carnaval foi ainda mais intenso, pois que me arrebatou completamente da realidade próxima.

Assim teve início a torrente de memórias de minhas vidas passadas…

Logo que o ácido começou a fazer efeito, um verniz de estranhamento cobriu a minha percepção das coisas. Nada mais parecia crível, e a paleta de cores havia mudado. As conversas então eram travadas em outro idioma, e todas as informações que me chegavam, chegavam embaralhadas.

Assim, me perdi de meus conhecidos, ou foi então o caso de que deixei de reconhecê-los, e todos os rostos se tornaram estranhos. As fantasias não eram mais fantasias; eram vestimentas reais. Resolvi me separar do bloco pra tomar um ar e, sentado na calçada, notei que a arquitetura da cidade havia se modificado. A música foi se calando. Um vento forte rugiu e fiquei com os olhos fechados durante um tempo, tentando me refrescar com a brisa. Lembro-me que do outro lado da rua havia uma fileira de banheiros químicos, mas quando abri os olhos apenas a merda e a urina estavam ali, sem as cabines.

Isso mesmo: as cabines dos banheiros químicos tinham desaparecido e deixado somente os dejetos no lugar.

Como isso era possível? – logo percebi que eu já não estava mais em São Paulo.

Como isso era possível? – e, ao me fazer de novo essa pergunta, não procurei por mais respostas. Um enorme fluxo de memórias foi ativado pela lisergia. Eu me lembrava de tudo aquilo: de quem eu era, de onde estava, e de quando estava.

Meu nome é Júlio Décimo Agripa, descendente direto de Marco Vipsânio Agripa, nobre e conhecido cônsul, leal general de Otaviano Augusto e importante arquiteto, de cujas obras herdamos os aquedutos, inúmeros pórticos e jardins, e também o mármore, com o qual pavimentou Roma, a cidade eterna.

Ando por entre uma multidão que se afugenta por entre as colunas dos templos. Vejo os pobres recolhendo o mármore das estátuas arrebentadas.

Sou um tribuno e membro de uma importante famílias de patrícios, com um nome e uma tradição a ser preservada: o orgulho de pertencer a uma das famílias originais da cidade.

O ano é o ano de 410 d.C. A cidade de Roma é somente a sombra da glória que foi um dia. Desde 286 d.C, quando deixou de ser a capital do Império Romano, o seu prestígio declinou. No entanto, o seu poder simbólico ainda atraía a cobiça dos bárbaros, interessados em ingressar a sociedade latina. Há dois anos estamos cercados pelo exército dos visigodos, comandados por Alarico. Quando as tropas bárbaras cruzaram o rio Danúbio, os cidadãos romanos sentiram a corda apertar no pescoço. Sem água, e sem abastecimento de víveres, a população está arruinada e espera por um milagre.

Durante os dias que se sucedem, o cerco se fecha sobre a cidade das sete colinas. O palavrório dos cristãos se intensifica. Clamam nas ruas, em suas audiências, para que entreguemos nossas almas ao seu deus único.

Mas ainda me sinto um pagão. O Império aceitou a fé católica muito antes de mim, e sinto o sopro de meus ancestrais. Nutro certo desprezo pelos estrangeiros, pela incivilidade que os destaca entre os romanos, desde quando notei a diferença entre os seus costumes e os nossos, mas todos esses sentimentos são, na verdade, motivados pela minha família. Quero me emancipar disso. Os bárbaros são asquerosos, mas o cristianismo tampouco me satisfaz. Quero me libertar e abraçar os bárbaros. Tenho saudades de um tempo que não vivi, celebrado nas canções que versam sobre os tempos dos antepassados, feito de bacanais e banquetes.

Mas sou apenas um jovem, ou devo estar no auge de minha idade, à semelhança de um mancebo já preparado para um casamento. Tenho um cargo importante.

(Pelo menos algo muito mais sério e que me exige muito mais responsabilidade do que aquilo que faço em minha vida presente, que é basicamente tirar fotos nos rolês).

Visito as muralhas. O que há além delas? Nossa família, como a de outros nobres ricos, se deu ao luxo de gastar as últimas economias para contratar um exército particular de mercenários, que reforçam a segurança sobre nossas terras. Um pequeno tributo aos bárbaros, e também nos enviam pequenos lotes de grãos, por baixo das muralhas.

Estou desfrutando de uma viagem astral para outro período da existência de minha alma. Minha memória, de repente, aumentou de tamanho, e não chegou a doer nem um pouco. Lapsos de realidades distintas se entrecruzam, e feixes de luz cheios de significado atravessam minha visão enquanto pisco ou mexo os olhos ao menor movimento.

Os bárbaros chegaram. Durante a noite, alguém abriu um dos portões da cidade, e eles entraram. O rei dos visigodos, Alarico, autorizou seus homens a procederem com um saque. Ouvi dizer que o que ele quer é mostrar quem manda, mostrar que tem poder sobre a cidade, e deixar o exército de joelhos. Por isso deu aos seus homens o aval pra fazerem o que quiserem.

Pilhagem e estupros são esperados para a noite.

Mas os bárbaros não querem mais ser bárbaros. Querem ser romanos. Querem ser os donos dos romanos. Querem se sentar no anfiteatro pra decidir sobre quem vive ou quem morre.

E eu quero voltar a ser romano. Praguejei contra Teodósio pela proibição do culto das virgens vestais. Como se já me anunciassem ali o fim de meu glorioso passado, o fogo eterno de Vesta se apagou quando completei meu décimo ano de vida.

Praguejo contra os próprios romanos, e exulto os bárbaros que chegam hoje. Ouso dizer a meus pais que me misturarei a eles. Quero deixá-los estarrecidos com a minha própria barbárie.

De alguma forma isso me remete a São Paulo, e penso em minha família. Quero comparar a família de uma vida com a de outra, e vejo que não há muita diferença. Acho que nesta vida contemporânea pertenço àquilo que considero de mais execrável no creme do sangue paulista: essas famílias tradicionais e decadentes que enchem a boca pra recitar a procedência de seus sobrenomes originais e autóctones, sem que tenham a virtude para representar integralmente o verdadeiro valor de sua linhagem. Um bando de eleitores do João Dória. Penso nas tantas vezes em que vi demonstrações de racismo e preconceito da parte deles, ofensas dirigidas contra negros, índios, crentes, nordestinos e até pardos, isso tudo proveniente de uma casta familiar que sempre se julgou a fina nata da cultura de seu país.

E quanto a mim? O meu riso é mais livre quando estou em meio ao lixo. Tenho paixão pela desforra, pelo feio, pela ideia de profanar os deuses de meus pais.

Estou entre um bloco de carnaval e um grupo de guerreiros bárbaros. A diferença é que naquela época não tínhamos os banheiros químicos, e também hoje dispomos de maiores opções de drogas e estimulantes.

Consulto a minha pochete, e apesar de não vê-la, sinto que ainda está comigo.

Os bárbaros estão embriagados, e vandalizam as ruas. Esparramam merda e urina nas antigas estátuas de nossos heróis e antepassados.

Não temos nenhum fiscal do João Dória pra aplicar uma multa de R$500,00 em quem mijar num lugar público. Não temos a Ivete Sangalo gritando ordens de comando do alto de um trio elétrico. A trilha sonora do mundo moderno é melhor e na queda de Roma não temos as garotas liberais do século XXI loucas pra beijarem na boca dos estrangeiros.

A selvageria visigoda é impressionante. Grupos de homens brutos e barbados arrastam as mulheres pelas ruas, e não é preciso procurar muito para encontrar cenas de sexo não consentido (lembro-me que um dos lemas do Carnaval de 2018 era: o abuso começa depois do primeiro não). Há um cheiro estranho que paira sobre a cidade, um odor que nunca nenhum romano sentiu antes daqueles dias.

Nunca vimos tamanha demonstração de desrespeito e irreverência, nem durante o festival da Saturnália, que com tanta alegria nossos antigos comemoravam. Naquela época os senhores serviam seus servos, e nenhum comentário que não provocasse riso estava autorizado a ser feito.

Hoje homens com tochas ardentes se reúnem pra incendiar um monumento. Outros, distribuem entre si o butim. Pouco a pouco o tesouro das velhas famílias vai sendo subtraído e dividido entre os invasores.

Como querem continuar vivendo aqui depois disso que fizeram?

Somente algumas igrejas cristãs foram poupadas. Os prédios públicos me confundem. Julgo ver o Impostômetro pendurado em uma coluna dórica. Adentro um peristilo e, por entre os corpos, vejo mendigos catando latinhas. Do fundo das catacumbas ouço o ritmo do maracatu.

Riem com violência, os bárbaros, e suas risadas são diferentes das nossas. Babam e cospem a toda hora. Conversam numa língua estranha e selvagem. Quero confraternizar com suas famílias. Vou em direção ao hipódromo. Eles andam nus, correm atrás dos pobres romanos, e se esfregam nas mulheres. Roubam dos patrícios os seus cavalos, suas joias. Incendeiam as villas daqueles que se recusam a entregar o que têm. Uma família reunida e ajoelhada perante um grupo de invasores pressente seu futuro: serão escravizados, e depois mortos quando seus captores já não tiverem mais o que fazer com eles.

A guarda foi rendida, e não há nada que se possa fazer. As ruas estão apinhadas de gente, e reina uma balbúrdia sem fim em meio aos destroços e ao lodaçal de merda e urina.

Vim para testemunhar o fim de uma civilização. Vim pra ver, com estas mesmas retinas de outra vida, a mudança de um paradigma.

Nunca soube muito de História. Durante o Ensino Médio era uma matéria que não me despertava atenção alguma. Lembro do meu professor comparando as invasões bárbaras com a migração de nordestinos pra São Paulo, mas isso nunca havia sido algo tão significativo assim em minha infância. Como é que eu poderia saber de tudo aquilo que via agora? O estranhamento cedeu lugar ao entusiasmo, e fiquei excitado. Queria celebrar o caudal de memórias de minha vida passada – queria celebrar aquele momento em que me via, por mais torpe, sujo e sanguinário fosse.

Entre os foliões fantasiados para a festa, amolecidos pelo calor e pela música, vejo os corpos duros dos bárbaros que foram moldados pela batalha, vejo a fúria dos que buscam a recompensa pela guerra.

Do vômito espraiado na calçada, sinto exalar o cheiro da carniça e da rapina. Mulheres correm em desespero, ensanguentadas, descabeladas, com os seus abadás rasgados pelas garras de um visigodo.

Não há mercadores ambulantes vendendo para os bárbaros. O que é que eles comprariam de nós?

“Ó o pesado! Ó o pesado! Abre espaço pro pesado!” – ouço alguém gritar em português, atrás de mim. Sinto que é um daqueles ambulantes passando com o seu carrinho de bebidas e gelo.

Mas ao olhar pra trás, não é nada disso que vejo. Os bárbaros empurram um aríete, e abrem caminho por entre a multidão. Vão arrombar as portas do Senado.

Sou levado a fazer outra comparação. Quando falam entre si, tamanha empolgação e estultice faz parecer que os bárbaros estão sempre a brigar, ou então estão sempre se desentendendo – percepção semelhante eu tive em minhas visitas a outras regiões do país, quando via uma conversa entre taxistas baianos, ou entre donas de casa potiguares, e ria silenciosamente, sendo preconceituoso pra mim mesmo e na surdina, ao passo em que também tentava imitar o sotaque daqueles que tinham dificuldade em me entender.

Mas ali, ciente de que eu passaria incólume, despercebido, ou mesmo camuflado como um bárbaro, resolvi me divertir. Por algum motivo a consciência divina me dava a chance de revisitar esse momento de minha outra vida com a mesma inteligência e percepção que tenho hoje, ou, então, misturada e somada àquela que eu tinha em outra vida, como se não fossem incompatíveis – como se fossem, na verdade, a continuação de uma centelha que começou a queimar ali, o fruto de uma alma que foi primeiro semeada ali.

Então, na companhia dos bárbaros que saqueavam e destruíam minha cidade, roubavam e agrediam meus semelhantes, celebrando de uma vez por todas o fim e a decadência do império, saí para me divertir. Esqueci-me de minha família e de meus amigos.

Sou amigo de todos, e filho de todos.

Go with the flow.

Todos os meus ritos levam ao riso e ao orgasmo. Também eu depredei as ruas, incendiei as casas, torturei os animais, e copulei com as romanas mais belas de meu tempo. Abri as portas da propriedade de minha família para que os bárbaros entrassem e levassem tudo que tínhamos: nossas joias, nossos estandartes, nossas armas, nosso gado.

Lacrei e sambei na cara da sociedade romana como se mostrasse a bunda e soltasse um enorme jato de bosta em uma família da classe média que assiste ao desfile das escolas de samba do Rio pela televisão.

Foi ali, naquelas ruas depravadas que tomei gosto pela ruína e me devotei a encarnar, ao longo de toda a existência, em corpos preparados para expressar a decadência dos sexos. Foi ali, no grande saque de 410 d.C pelos visigodos, que minha alma aprendeu a se divertir. Não aprendi a rir no conforto da civilização, mas durante o caos do incêndio e da barbárie, onde temos a chance de desempenhar nossos maiores atos de sem-vergonhice.

A derrubada dos ídolos, a substituição dos velhos deuses por outros novos, ainda não nomeados, a subversão das tradições e dos grandes nomes do passado. Tudo isso eu ganhei com os bárbaros que entraram em Roma naquele dia. Ao final, a inexorável marcha da história sempre instaura novos ânimos nas almas dos que a testemunharem.

O que eu relataria à minha amiga? O que eu diria ao Dr. Natanael? O ácido lisérgico teve em mim um efeito maior que o de qualquer religião, e me revelou coisas que nenhum médium teria sido capaz de revelar. Durante horas eu frequentei um espaço entre dois mundos, ou entre duas memórias. Misturei o carnaval à guerra, e encontrei razões para sorrir e gritar em ambos os eventos.

Foram os anos que passei me dedicando ao uso desmesurado de substâncias alucinógenas? Foi o caso de me acostumar primeiro aos estados alterados de consciência? Sempre usei drogas pra me divertir, nunca quis outra coisa. Essa viagem poderia ser aprimorada, ou então os arquivos de memória espiritual estavam desbloqueados para sempre?

As sessões levadas a cabo pelo Dr. Natanael já teriam trabalhado para massagear minha alma e abrir os canais de meu Ser?

As revelações são anunciadas quando precisam ser, sem que tenhamos de nos esforçar para tanto. Todas as estradas levam a Roma, e aquele carnaval foi minha Via Ápia.

Mas onde estavam os unicórnios, as dríades, as sereias e as fadas? Aonde haviam ido os bloquinhos? Por onde a banda passou? O saque dos visigodos se prolongou por três dias, a mesma duração de meu carnaval. Ao final de tudo, já tendo sido dado como perdido nos grupos de Whatsapp, acordei empurrado pela vassoura de um limpador de rua terceirizado, e com uma dor de cabeça do tamanho das invasões bárbaras.

Cheguei em casa, tomei um banho, e mandei uma mensagem para o meu traficante, dizendo que queria adquirir outras porções daquele ácido maravilhoso.

Onde é que o carnaval do ano seguinte me levaria? Às Cruzadas? Às invasões mongóis? Ao extermínio armênio? À guerra sino-japonesa?

Comportei-me direitinho nos outros dias. Difícil seria conviver, daí então, com um tamanho volume de memórias, e retomar os afazeres dos dias como se nada houvesse acontecido, e ter um êxtase místico que durasse só um feriado de quatro dias por ano.

Mas havia sido mais proveitoso (e mais barato) do que uma consulta a um terapeuta holístico. Pelo custo benefício, caralho, foi melhor até do que uma sessão de psicanálise.

Eu não tinha mais dúvidas de quem eu era.

 


Imagem: Joseph-Nöel Sylvestre, 1890.

 

 

 

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