sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há 2 mil anos?

A pergunta-título deste ensaio surgiu durante uma conversa com um amigo meu, pastor da Igreja Assembleia de Deus. Perguntei a ele se sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há dois mil anos. A resposta dele foi um sonoro sim.

Independentemente da existência de Deus (e dos deuses) jamais ter sido comprovada pela ciência moderna, sabemos que os seres humanos são, naturalmente, criaturas dispostas a acreditar em seres superiores, em entidades sobrenaturais, e, sobretudo, num Criador.

É possível que essa crença se converta em conhecimento? É possível ir do crer em direção ao saber? Imagino que cada religião daria uma resposta diferente a esta pergunta. No caso cristão, as palavras de Justiniano parecem ecoar: credo quia absurdum – creio porque é absurdo.

Isso quer dizer que, mesmo com toda a teologia católica, protestante, muçulmana, hindu, nem mesmo com toda a graça, jamais seria possível que atravessássemos o véu dos mistérios divinos. Pelo menos não nesta vida, sob esta forma. Parece estranho, mas não temos como saber se sabemos ou não sobre Deus.

Então por que meu amigo pastor respondeu sim à minha pergunta?

Porque ele entende que hoje há um número maior de pessoas convertidas ao cristianismo, que o paganismo já não é uma ameaça, que há livros, publicações, e conhecimento circulando a respeito da religião cristã. De certo modo, ele quis dizer que o acesso à fé cristã é um incremento no saber sobre Deus – e, segundo ele, a História poderia provar isso.

Mas a minha opinião era outra, bem distinta, porque não estava interessado em confundir o conhecimento sobre Deus com a expansão da fé cristã.

Por isso, todas as palavras desta pergunta-título merecem um esclarecimento.

Comecemos pela palavra de maior gravidade, então: Deus – o substantivo ao redor do qual a pergunta gravita. Sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há 2 mil anos? Quem ou qual é o Deus da pergunta? Falamos de Javé, Brahma, Alah, Aura-Masda, do deus cristão, de Zeus, Thor, Anansi, Quetzalcoátl, Osíris, Oxalá, ou de Silap Inue?

É claro que esta pergunta adquire um sentido e um significado diferente de acordo com quem faz, e do local em que ela é feita. A religião, enquanto fenômeno cultural, se divide numa quantidade inestimável de expressões simbólicas diferentes, de modos que não especificar qual é o deus da pergunta pressupõe uma série de operações, e a principal delas é abrandar os nossos critérios. Isso quer dizer que o conhecimento sobre qualquer deus já seria válido para responder a esta pergunta. Não estamos procurando saber a respeito de um deus especificamente. Muito embora as próprias religiões contemporâneas se ocupem de refutar os deuses anteriores e alternativos a elas, em virtude do império da ciência elas precisaram sofisticar e empreender abstrações cada vez menos falseáveis a respeito dos deuses que alegam cultuar. Foi assim que o Jardim do Éden se tornou apenas uma alegoria, e a criação do mundo em 6 dias é um ato poético análogo ao Big Bang. Assim, quando pensamos na probabilidade da existência do deus cristão, não o fazemos a partir das concepções mais antigas deste deus, muito embora os textos antigos e sagrados possam ser evocados, principalmente porque neles podemos encontrar pistas a seu respeitopistas que nos permitem, pelo menos, começar a imaginá-lo. Há diversas formas de crer e nas formas religiosas mais populares não encontraremos tanta sofisticação quanto entre os especialistas. O imaginário religioso não é o mesmo de 2 mil anos atrás. Por mais que se diga o contrário e que uma tal afirmação encontre resistência, sabemos que a Terra não é o centro do Universo.

É verdade que hoje dispomos de um campo semântico muito mais amplo do que aquele disponível há 2 mil anos. Mas será que isso faz alguma diferença quanto à chance de conhecer este deus – seja ele qual for? É certo que há 2 mil anos não falávamos de energia ou de espuma quântica. Este linguajar técnico erigido pela ciência para descrever a natureza da realidade, muitas vezes é também empregado para estabelecer analogias com o que pode vir a ser Deus. Certamente, estas aventuras discursivas são mais frequentes no campo da espiritualidade New Age – mas, mesmo assim, parece ser impossível encontrar alguma descrição contemporânea de Deus que não contenha a palavra energia ou força.

Muitas dessas palavras não existiam ou simplesmente não faziam o mesmo sentido no contexto de 2 mil anos atrás. Quando Jesus, Buda, ou Maomé ensinaram aos seus discípulos, quase sempre o fizeram a partir de parábolas e metáforas. Isto porque a alegoria sempre foi um instrumento pedagógico recorrente em qualquer situação – e, no caso, uma estratégia recursiva considerada bastante elegante no mundo antigo.

Então, seria preciso apontar para a coisa por trás da palavra Deus. O tipo de fenômeno a que ela se refere. O significado por trás do significante. Que objeto é este que chamamos de Deus, que matéria é esta? A palavra Deus indica que tipo de objeto possível de ser conhecido pelos seres humanos? Quão polissêmica é esta palavra? Quão grande é a variedade de fenômenos que ela pode abranger – e, o que é mais curioso: quais são as consequências que a sua definição traz para as outras esferas da vida humana? Com esta última pergunta quero sugerir que a própria definição do que chamamos de Deus está relacionada à forma com que imaginamos a natureza da realidade.

A qual entidade existente no mundo podemos relacionar a palavra Deus? O que ela representa? Que tipo de experiência ela envolve, que tipo de condição ela delineia? A Teologia não serve para definir essa matéria porque há modalidades desse Deus que ela não é capaz de abarcar – e também porque a Teologia confia demasiadamente na Razão como caminho de acesso ao deus que ela persegue. Há uma quantidade inestimável de menções a este substantivo, deus, e o seu plural, deuses, na história da humanidade. O único consenso a que se pode chegar a respeito deste referente é que ele indica uma natureza sobre-humana, meta-empírica, acessível somente segundo algumas circunstâncias específicas, mas muito variáveis de acordo com cada sistema cultural. Assim sendo: o que é que se pode saber sobre este Deus enquanto fenômeno transcultural? De acordo com a experiência acumulada ao longo da história na forma de todas as religiões do mundo, qual é a somatória de conhecimento a respeito deste deus? De todo este volume produzido a respeito desta matéria (Deus), quais aspectos Seus são verificáveis naquilo que se apresenta na realidade dos fenômenos do universo? O trovão é uma evidência de Zeus? O vento é uma pista da existência de Éolo? A própria existência humana é um indicativo de um criador? Todos os deuses são igualmente reais e igualmente prováveis? Todos eles são igualmente verificáveis em termos empíricos? Todos eles estão disponíveis ao nosso conhecimento?

Neste ponto surge o problema da relação entre os fatos e as coisas. As crenças religiosas nascem da observação do mundo, e oferecem uma interpretação para a existência. Esta “hermenêutica”, contudo, é baseada numa outra instância do conhecimento, que é a revelação, e não a experimentação empírica. Poderíamos falar da magia, e de como ela estabelece uma relação concreta entre as coisas do mundo. Poderíamos pensar que a magia, tal como sugere Lévi-Strauss, é bastante prática, e seu empreendimento consiste na realização de uma vontade – a sua maior diferença em relação à ciência é que a ciência opera dentro de uma linguagem mais abstrata. Mesmo assim, qual papel a magia cumpre na construção do conhecimento? Arrisco dizer que, no meio das vaidades individuais, sua predileção pelas coisas ocultas faz com que sua contribuição seja quase nula. Sua função hoje está muito mais vinculada ao reencantamento do mundo do que à realização de tarefas concretas.

Continuemos com a segunda palavra mais importante da frase, que é um verbo: sabemos. Sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há 2 mil anos? Aqui há de se depurar duas esferas da palavra: o sujeito, nós; e o verbo, saber.

Por nós, entendemos a cultura humana disposta no espaço do mundo e no tempo da história, tomada coletivamente, em todas as suas diferenças e semelhanças.

Agora, saber, envolve deter o conhecimento prático ou teórico por meio do qual podemos interagir de forma satisfatória com este que é o objeto de nosso saber. Num exemplo mais compreensível: saber a respeito de uma cadeira, envolve saber o material do qual ela é feita, a sua fabricação, a sua função, dentre outras coisas – entre elas a possibilidade de fabricar uma cadeira igual. Saber a respeito do meio ambiente implica articular várias áreas do conhecimento, posto que se trata de um objeto mais amplo, um sistema com cadeias enormes de interação.

O que envolve saber sobre Deus? Envolve a definição dos atributos de Deus ou a Sua representação na história das religiões e dos mitos? Dito de outra forma: saber sobre Deus seria algo como saber da história dos deuses adorados pelos seres humanos ao longo do tempo? Ou então envolveria submeter-se a uma experiência específica, reter significados e noções disponíveis apenas sob condições que estão além do nosso controle?

O saber sobre Deus pode ser encontrado em que lugar? Nos livros sagrados? Entre as autoridades, tais como sacerdotes, gurus, santos, mistagogos, padres, sheiks, xamãs?

E quais as consequências de um conhecimento sobre Deus? Quais as possibilidades de interagir diretamente com Ele (a ponto de obter resultados) a partir daquilo que conhecemos a Seu respeito?

É bom recorrer de novo a um exemplo. Um cachorro. Na medida em que conhecemos o animal, sabemos de seu comportamento, seu modo de agir, podemos interagir de forma mais satisfatória com ele. Até mesmo prever algumas de suas ações.

Qual é a qualidade de nossa interação com estes deuses? Dentro de quais parâmetros somos levados a interagir com eles?

A variedade de exemplos que podem ser encontrados nas culturas de todo o mundo, do agnosticismo ao gnosticismo, passando pelas seitas místicas, pelos eremitas, bruxas, mestres e devotos de toda ordem, nos leva a pensar que a relação dos indivíduos com os deuses é um tema de grande relevância para a definição de nossa própria identidade.

Na medida em que conhecemos bem qualquer coisa, a imprevisibilidade de uma interação com esta coisa diminui ao longo do tempo. Conseguimos prever os índices de precipitação com muitas chances de acerto. Conseguimos calcular a rota dos mísseis balísticos. Experimentação e erro. No caso de Deus, quão satisfatória e surpreendente tem sido nossa relação com Ele – ou eles? Ou mesmo com Ela?

É verdade que nas últimas décadas pudemos testemunhar uma paganização da espiritualidade no ocidente. Aquilo que se convencionou chamar de Nova Era, de fato, abrange uma série de técnicas e concepções sobre o universo que, no melhor dos casos, são bastante diferentes entre si.

Algo que tem sido classificado como pertencente a este campo são, por exemplo, os cultos à Deusa, ritos de sagrado feminino, e covens de bruxas modernas. A disseminação deste estilo de vida religiosa e de relação com as coisas sagradas está, por sua vez, bastante vinculada à abertura cultural conseguida após os avanços do feminismo no último século – nonde se encontram muitas chances de se redefinir o que é ser mulher.

Com isso quero dizer que os significados derivados da ideia de deus sempre funcionaram e continuam funcionando como marcadores sociais, e, neste último século, também da personalidade individual. De forma semelhante funcionam ideias vizinhas, como reencarnação, e céu ou inferno.

Talvez, neste ponto, seja possível incorrer numa diferenciação bastante polêmica. O ato de saber, dentro dos termos da ciência moderna, envolve abstrações, tipologias ideais, conceitos formais, e todo um arcabouço metodológico cujo alicerce é o intelecto, a razão. Simbolicamente, falamos aqui do império solar do Yang, a iniciativa que domina a natureza. Se pensássemos no ato de saber como uma ação vinculada simbolicamente às forças lunares do sentimento e da sensação, instaladas materialmente na nossa existência bruta e incontrolável, é certo que teríamos outra concepção de Deus – aqui, faria mais sentido em falar da Deusa, como o arquétipo disponível para a canalização das energias compreendidas pelo Ying.

Este é o primeiro caso, imagino, em que a pergunta-título perde o seu sentido. Para as bruxas, para as mulheres sábias do passado, Deus não seria uma entidade simplesmente disponível ao nosso intelecto, à luz solar da Razão masculina. Falamos de um outro domínio? Claro está que não faria sentido algum falar em avanço do conhecimento. Aqui, a experiência religiosa não se encontra no nível da comunidade (pelo menos não enquanto marcador social), mas em âmbitos mais individuais – o êxtase místico de Santa Teresa D’Ávila, por exemplo – e que podem ser vividos coletivamente por meio de ritos e orgias. Inscrito corporalmente, enquanto intuição, Deus deixaria de ser matéria do conhecimento, e até mesmo da crença (principalmente porque, no passado, a não era um atributo decisivo para a crença). Não se trata de acreditar – acreditar seria sequer relevante para uma entidade imanente localizada no próprio corpo.

Lembro-me das palavras de Hilda Hilst, segundo quem Deus é um enorme intestino.

Voltando à pergunta: como seria possível conhecer Deus e acumular conhecimento nesta matéria? Quais são os especialistas em Deus, e a autoridade neste tipo de assunto? Os sacerdotes? Os profetas? Os brâmanes? O clero? E onde está guardado o conhecimento a seu respeito? Nos livros sagrados? Os livros sagrados – a Bíblia, o Corão, os Vedas, o Avesta – são suficientes para tratar do assunto de Deus? Por que, então, tantas versões conflitantes? Por que a falta de consenso? As semelhanças importam mais do que as diferenças? Ou, temos aí, a chance de esclarecer quais são de fato as diferenças entre as culturas?

A questão a respeito do conhecimento de Deus, por si só, é um motivo perene em quase todas as tradições religiosas, posto que opera uma divisão entre perspectivas gnósticas e agnósticas, monistas e dualistas.

Os outros componentes desta pergunta que merecem esclarecimento são aqueles que indicam uma comparação: sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há 2 mil anos?

A verdade é que a comparação não precisa ser feita necessariamente com o ano um, com o início do calendário cristão. Ela pode ser feita tomando como unidade de comparação qualquer outro marco inicial religioso – o advento ou fundação de qualquer doutrina ou sistema religioso. A comparação é relevante porque toda cultura religiosa tem como princípio central a preservação de suas origens, de suas narrativas fundadoras, de seus líderes, profetas, sábios, sacerdotes. Até mesmo as formas de espiritualidade desprovidas de livros, ou de sistemas alfabéticos, se perpetuam pela transmissão do conhecimento – pela necessária preservação de uma tradição. Se os Vedas foram escritos há 5 mil anos, que seja feita tal comparação: sabemos hoje alguma coisa a mais do que já sabíamos sobre os deuses naquela época? Foi possível avançar no conhecimento sobre eles? Foi possível acumular algum conhecimento novo? Mais importante do que isso: a cultura foi capaz de preservá-los, aqueles conhecimentos, de um modo intacto, tal como eram compreendidos quando foram escritos?

Parece-me que uma tal comparação, se não é impossível de ser feita, indicará claramente não um acúmulo de conhecimento a respeito de Deus – ou dos deuses, já que neste exemplo dos Vedas tratamos do hinduísmo – mas uma mudança na forma com que este conhecimento é vivido e no entendimento em relação à própria tradição que se coloca na distância, na estrutura social, nos ritos e conceitos que esclarecem o mundo.

Os cristãos e os muçulmanos dirão que Deus se revela na história – que a revelação é contínua. Isto permite atualizar as leis antigas à ordem moral dos novos tempos. Ao mesmo tempo, tudo está escrito. Se o Universo e toda a Criação está contida na Torá, e a própria escrita sagrada se confunde com o cosmos – qual conhecimento novo não será um acréscimo absolutamente pueril e redundante a este corpo de conhecimentos?

Isto porque não seria difícil encontrar, por exemplo, nas mais diversas culturas religiosas do globo, das religiões da Índia à religião dos índios, uma ideia bastante melancólica: a hipótese de que o conhecimento a respeito de Deus tem, para todos os casos, se perdido. Esta é por si só uma hipótese muito religiosa, e costumamos vê-la sendo dada pelos especialistas religiosos, como sacerdotes ou xamãs. Por trás dela subsiste a ideia de uma era de Ouro, um passado em que as pessoas eram mais valorosas ou heroicas. Isto quer dizer que hoje sabemos menos sobre Deus do que sabíamos há 2 mil anos. É, de certa forma, uma resposta duplamente negativa.

Essa dupla negação, contudo, esconde um otimismo muito sagaz: se sabíamos mais do que sabemos hoje, quer dizer que é possível saber alguma coisa. Então podemos, talvez, no futuro, voltar a saber sobre Deus da forma como sabíamos há 2 mil anos.

Neste caso a concepção de um universo cíclico, tal como aquele imaginado pelos hindus, parece resolver bem a situação. Aquilo que chamamos de saber sobre Deus certamente estaria contido na doutrina do Dharma, que se estabelece e perdura por quatro longas eras – também chamadas yugas. A decadência faz parte da própria natureza de cada era, ao longo das quais o Dharma se degenera, para ser então restaurado.

Sob esta perspectiva, parece-nos natural que o saber sobre Deus, a justiça, a lei, a ordem, e a paz, seriam coisas coincidentes, mas também sujeitas à ação do tempo. Em relação à pergunta original, se sabemos mais sobre Deus hoje do que sabíamos há 2 mil anos, trata-se apenas de uma inversão de sinais. Saber menos, cada vez menos, em algum momento resultará em saber mais, porque há um limite para a ignorância.

Numa hipótese mais sociológica, donde se destacam os princípios liberais do individualismo, o sentido de degeneração ganha outras cores. A experiência religiosa, sem intermediários, sempre esteve disponível para todos os indivíduos. A partir do momento que uma casta de sacerdotes começa a controlar e a monopolizar esse acesso às coisas sagradas, a experiência se perde. Preserva-se a tradição, mas opera-se uma divisão. Deus é coisa de especialistas.

Há perspectivas diferentes em outras religiões. No caso do cristianismo, a história do cosmos se apresenta de forma mais linear, marcada por eventos singulares no tempo: a Criação, o Advento, o Segundo Advento, o Apocalipse, o reino dos mil anos. Em cada um destes, Deus se revela de uma forma, apesar de ser Eterno.

A falta de consenso sobre Deus parece ser um dos maiores indicativos da impossibilidade de se conhecê-Lo. Claro, porque toda pessoa está livre para forjar uma religião, uma igreja, uma seita, um culto. Mas como conferir solidez a uma religião? Como é que ela se torna convincente para as pessoas? Em se tratando do conhecimento, como o consenso sobre uma determinada matéria é construído? Verificando-se hipóteses? Incorporando narrativas palpáveis e plausíveis? Estabelecendo uma estrutura cognitiva completa? Em se tratando de Deus, quais experiências são compartilhadas? O êxtase místico? O estado de graça? Os milagres? Um olhar sobre a existência? Códigos morais, ritos, normas? As representações artísticas e icônicas (que não são nunca as mesmas)? A variedade de ideias a respeito de Deus e dos deuses – isto é algo que provaria a sua inexistência, ou a existência misteriosa de alguma coisa? Mas, as religiões também não podem se contradizer? Uma não está aí também para negar a outra? Em termos teológicos, claro que sim. Em termos práticos, éticos, talvez não. O fenômeno possui um correlato real? Com referência a Descartes, parece correto dizer que a ideia que fazemos de Deus já é um indicativo de Ele existe, pelos menos de alguma forma?

Mas esta ordem de imaginação, este tipo de conduta, esta convicção sobre a vida, todas as normas morais e garantias éticas da justiça e da bondade, em quais lugares estas coisas podem frutificar?

Certamente, em lugares muito distantes daquele campo que é, nominalmente, o campo mais devotado a isso: a ciência. Por excelência, a ciência o sistema cultural nonde as certezas estão permanentemente obrigadas a viverem num estado de instabilidade.

Em se tratando do ato de conhecer, de saber – existe alguma coisa que esteja alheia à ciência? Poderíamos apontar para um mundaréu de fenômenos e eventos que jamais serão explicados pela ciência. Mas, na maior parte dos casos, a carência de explicações está quase sempre baseada numa ausência de dados, de evidências, de dificuldades de observação e replicação. Assim sendo, podemos falar da dificuldade de se comprovar uma teoria da História, de se verificar a fundo as interpretações sociológicas mais abstratas, ou de reproduzir tranquilamente experiências envolvendo a gravidade ou as reações cósmicas de grande porte.

Deus, contudo, parece ser a única coisa que sempre esteve e sempre estará alheio à ciência. Mesmo quando as artes místicas desfrutavam de maior prestígio social, ou quando a ciência ainda não havia se separado de certas atividades esotéricas, tais como a alquimia e a astrologia, o conhecimento sobre Deus não parecia ser tão diferente daquele que também se encontra disponível hoje. Em outras palavras, a pergunta: a qualidade do conhecimento mudou? Os sábios antigos sabiam mais ou menos do que os sábios modernos? Eles podiam prever as ações de Deus, os seus prodígios, milagres? Sabiam a linguagem de Deus? E, desde então, este conhecimento avançou? Ele está disponível da mesma forma que estava antes? A comparação da pergunta sugere que seja possível avançar no conhecimento a respeito de Deus. Isto quer dizer: fazer descobertas. Quais descobertas foram feitas a respeito de Deus nos últimos 10 anos? Sejamos mais generosos: quais descobertas relevantes sobre Deus a ciência fez nos últimos 100 anos?

Podemos, neste caso, assumir uma perspectiva mais monista, ou panteísta. Assim, podemos considerar que Deus é a Natureza,a substância primordial de todos os acontecimentos terrestres, e que, assim sendo, todo o espectro de significados contidos no substantivo Deus está decomposto no mundo físico dos mares, dos continentes, dos animais, plantas, fungos, das nuvens, dos fenômenos climáticos, e de tudo que há por existir, como os cometas, cinturões de asteroide e buracos negros.

É claro que o nosso conhecimento a respeito da Natureza e do Universo avançou ao longo das eras. A Biologia e a Física parecem hoje mais eficientes para explicar os fenômenos que se apresentam pra nós. Este conhecimento, é claro, não é vivido individualmente da mesma forma por todos. É provável que um povo nômade da pré-história detinha um conhecimento prático sobre o mundo natural muito maior do que que qualquer um de nós, ainda que tenhamos as enciclopédias disponíveis à nossa mão. Todavia, assim como se fala da morte do deus Pã, e do desencantamento do mundo, durante este processo de avanço da ciência muitos deuses foram removidos de suas moradas. Seus nomes serviam para explicar fenômenos para os quais não havia ainda outra linguagem que pudesse tratar deles – nenhuma linguagem que não fosse a religiosa. A religião, enquanto sistema cultural, surgiu antes da ciência e da política. De forma simplificada, é possível dizer que cientistas, os aventureiros do conhecimento, os hereges, portanto, ao proporem explicações alternativas para o mundo, muitas vezes viram a si mesmos em conflito com os sacerdotes.

Aqui, chega-se a um impasse, que é o seguinte: se Deus é a própria Natureza, e se conhecendo a Natureza somos então levados a conhecer Deus, quer dizer que a ciência é mais eficiente em matéria de Deus do que a própria religião ou as teologias.

Isto leva a outros dois problemas: Deus é a Natureza, ou ele apenas criou a Natureza? Mais uma vez, nos deparamos com uma pergunta bastante frequento nos debates teológicos, e nas especulações místicas. Deus, após criar o Mundo, mergulhou na Criação? Ocultou-se nas coisas?

Mesmo que o pensamento acima esteja correto, ainda, no melhor dos casos, saberíamos mais sobre a Criação do que sobre o Criador. É possível saber quem foi Picasso apenas olhando para a Guernica? Não há dúvidas de que o conhecimento científico nos entregou uma coleção de conhecimentos inestimáveis a respeito do mundo da natureza – de modos que nos é perfeitamente seguro estabelecer uma relação mais ou menos previsível com aquilo que há de mais conhecido. Se as coisas assim não acontecem na realidade, é algo que se deve muito mais às inconsequências da ação humana do que aos problemas do conhecimento.

Mas, sob estes termos, caso Deus seja tomado como um sinônimo direto da Natureza, grande parte do conteúdo religioso produzido pelas religiões ao longo do tempo pareceria completamente irrelevante, especialmente as práticas rituais e litúrgicas, e mais ainda a autoridade das lideranças e dos especialistas. Sim, porque neste caso recomendações quanto aos cuidados dietéticos, às relações familiares, e às leis civis, sempre surgiram de contextos profundamente religiosos.

Além disso, há um problema que aparece no contraste entre monoteísmo e politeísmo. O problema desta perspectiva que toma Deus e Natureza como sinônimos é que ela referenda apenas uma determinada visão sobre Deus, e da qual são excluídas muitas outras – entre elas aquelas perspectivas em que Deus não é a Natureza, ou que cada parte da Natureza é o reino de um deus diferente.

Durante muito tempo as experiências religiosas nos forneceram a linguagem necessária para tratar das coisas inefáveis, dos fenômenos que turvam a razão. Quando se estabelece um elemento da vida (Deus) sobre o qual a inefabilidade passa a ser um consenso, já é possível formular uma ideia habitual deste elemento sem ter necessariamente de experienciá-lo de forma direta.

Em outras palavras: ao dizer que é impossível falar sobre uma determinada coisa, já começamos a fazer uma ideia do que essa coisa pode ser. Que ela se situe em algum lugar mais além da linguagem, já é um indicativo das suas características. A imprecisão conceitual também pode servir como dado.

É comum na Bíblia ou no Corão encontrarmos definições de Deus que sempre levam em consideração, justamente, a impossibilidade de defini-Lo. Ver de relance, como num espelho, uma sombra, um anjo, o próprio céu, um tremor de terras, uma voz. A religião sempre cumpriu o seu papel de oferecer palavras para definir as experiências extraordinárias da vida – e, no caso dos tântricos, até mesmo para as experiências mais carnais e mais típicas de nossa própria natureza humana.

Na verdade, a própria variedade de nomes de Deus já é uma demonstração de um certo avanço linguístico. Este avanço, contudo, não pode ser medido a partir de uma relação de proximidade ou distância, mas de quantidade. Quer dizer, a linguagem humana se enriqueceu. Na Grécia Antiga era possível associar o ato de beber vinho, empanturrar-se de comida, gargalhar e dizer palavras ao léu, a um Deus cuja função consistia justamente nesta expansão do espírito. Quando nos deparamos, no Corão, com os 99 nomes de Alah, necessariamente temos de pensar em quão avançado se encontrava o idioma árabe para empreender tamanha conquista poética.

Aqui, é inevitável recordar uma frase do pintor italiano Giorgio de Chirico: eu penso que a ideia de imaginar um deus com traços humanos tais como os gregos conceberam na arte não é um eterno pretexto para a descoberta de outras novas fontes de sensações.

Enquanto aventura espiritual, parece bastante razoável aceitar que a arte moderna muitas vezes se misturou com o misticismo.

Por outro lado, é teoricamente aceitável pensar que a existência de Deus é muito mais provável de ser verificada durante o seu funcionamento enquanto mecanismo social. Aqui se entende que, enquanto matéria do conhecimento científico, Deus não pode ser falseável. Não há afirmações sobre Deus que possam ser verificadas. Se ele é infinito, onipotente e onipresente, quer dizer que sujeito e objeto são indissociáveis – não podemos empreender uma análise, decompor a experiência. Estamos condenados a ser terrivelmente objetivos e formais neste caso – isto porque num mundo totalmente subjetivo ou imanente, a pergunta inicial sequer faria sentido. Quando usualmente dizemos que a existência de Deus nunca foi comprovada pela ciência – frequentemente temos de ouvir que a sua não existência também nunca foi comprovada. Enquanto objeto, seu estatuto ontológico não está definido – não sabemos por quais meios é possível conhecer Deus. Pior ainda, apesar de toda a nossa tagarelice e nosso extenso repertório, não teríamos uma linguagem apropriada para comunicar a experiência, caso ela viesse acontecer. Qualquer coisa que se diga é igualmente válida e igualmente inválida.

Deus é uma ideia com vida própria. Esta ideia, tomada desta forma, talvez não faça sentido em outras culturas nonde o pensamento científico europeu não se tornou hegemônico. As crenças dos povos das terras baixas amazônicas, designadas sob o conceito de perspectivismo ameríndio, por exemplo, parecem alcançar formulações cósmicas frente às quais estas dúvidas a respeito de Deus não se sustentariam por muito tempo. A oposição entre natureza e cultura, forma e matéria, estabelecem o ponto de partida e o ponto de chegada do nosso raciocínio. Mesmo não querendo, estamos confinados numa perspectiva dualista sobre a existência – a maneira com que definimos o ato de conhecer é talvez a principal razão e consequência disso.

E se levássemos o gnosticismo em consideração? Um deus que pode ser tocado por meio de uma dança ou durante um êxtase místico, infelizmente sua realidade não é discernível daquela verificada em rituais semelhantes mas desprovidos do aspecto religioso. Em outras palavras: uma dança sagrada pode realmente ser diferenciada de uma outra dança qualquer?

E se levássemos o monismo em consideração? Tudo é Deus? Assim sendo, toparíamos com um outro problema muito interessante: não é logo o próprio Deus quem sabe mais sobre si a cada tempo que passa? Afinal, não somos nós quem sabemos, é Deus. Pela onipresença e onisciência, o sujeito do ato de conhecer é Deus em si. A existência do universo, toda a Criação, é um processo por meio do qual Deus conhece e compreende a Si mesmo. Nossa breve existência é uma resultante do processo pelo qual a diversidade brota da unidade. O Um dá origem ao Múltiplo. O Múltiplo volta-se para o Um na forma de um espelho refratário.

Chegamos, portanto, a outra pergunta que parece suscitar interesse: Deus é matéria do conhecer ou do ser? William James tratou deste tema no seu livro As Variedades da Experiência Religiosa. Ele falou sobre alguns indivíduos que levavam vidas religiosas muito embora não praticassem religião nenhuma Trata-se de uma perspectiva pragmática sobre a vida religiosa. Uma pessoa bondosa, e pura, estaria, portanto, sempre próxima das virtudes religiosas. Ao mesmo tempo, uma criatura temente a Deus, estaria previamente sentindo em sua alma, o tempo todo, as dores da punição eterna, e o medo antecipado de infringir as leis eternas e divinas.

Esta configuração da pergunta, que desloca o foco do conhecer Deus para viver religiosamente, sem dúvida faz muito sentido se tomarmos como exemplo da existência de Deus a própria vida das comunidades religiosas. O afeto, a caridade, a justiça, a temperança, a auto-observação, a disciplina – todas estas virtudes são facilmente evocadas pelas religiões do mundo. Seus devotos são mais virtuosos do que os que não praticam ou que não seguem religião alguma? A discussão é velha: religião implica em ética? Religião implica em bem-estar? Mas, para além disso – para além dos códigos morais –, seria possível criar situações que nos aproximem de Deus? Não estou falando dos nossos sonhos envolvendo imortalidade, inteligências artificiais ou coisas do tipo – quero saber se é possível se aproximar deste Deus, seja em pensamento, seja enquanto ação. Na direção oposta, seria possível criar situações que nos afastem de Deus? Talvez isto reincida sobre uma questão já tocada: o conhecimento sobre Deus é exclusivamente individual, por isso somos incapazes de acumular este conhecimento ao longo da História – e, também por isso, ele está acessível a qualquer pessoa de qualquer lugar. Esta hipótese, que não pretendo defender, parece corroborar com as perspectivas mais ocultistas e esotéricas da Teosofia e de Helena Blavatsky.

Mas existem muitas outras formas de vivência. O pentecostalismo e os movimentos carismáticos podem ser vistos como responsáveis por grandes transformações nos modos de se viver o Espírito Santo – esta entidade que seria um agente de Deus na história. Os seus dons, a glossolalia, o transe místico, os milagres, e a cura – como podemos refutar algo que se mostra com tanta abundância, e que não para de crescer pelo mundo?

A um crente é dada a chance de recorrer à História como um campo nonde a existência da vontade divina se revela. Aí, a definição implícita de Deus também pressupõe uma definição do que vem a ser a História, e de como é possível conhecer as coisas pela História. A Graça, o Espírito Santo. Mas, em termos menos metafísicos, quanto de sua definição não depende justamente de uma construção ao longo do tempo? Não apenas enquanto uma intervenção localizada pelo qual a ação cósmica se revela – mas enquanto conceito?

Recorrer à História para nela procurar evidências sobre Deus e sobre o Espírito pareceria incorreto não só para a historiografia contemporânea, que desconfia dessa hipótese, como também seria contraditória para as filosofias hindus mais antigas. Sim, porque nos dársans hindus temos o conceito de maya, a ilusão, o véu que cobre a realidade e que é mantido pela ignorância (avidya).

O Espírito (aquilo mais próximo que temos de um deus neste contexto) jamais participaria de forma qualificada do mundo da natureza, do mundo dos fenômenos, da substância sólida e composta da realidade, feita de devir e de relatividade.

Parece complicado aceitar que a História sirva de instrumento para o conhecimento de Deus. Não há qualquer teoria historiográfica que subscreva à hipótese dessa ordem de conhecimento. Podemos falar de transcendentes, mas somente na medida em que qualquer tradição social é um transcendente – porque é algo que existe antes e depois de nós, meros indivíduos mortais. Assim, culturalmente erigimos inúmeros símbolos e conceitos que querem se furtar à História, mas cujas configurações dependem muito de uma maturação cultural ao longo dos tempos.

Por exemplo, o ateísmo. A postura ateia está diretamente apoiada na percepção do fenômeno religioso ao longo da história. É claro que não se trata apenas disso, mas é a partir daí que podemos alimentar a mais bem fundamentada desconfiança quanto àquilo que dizem os líderes religiosos.

Chegamos, agora, a uma questão inadiável, e que diz respeito ao ceticismo e ao ateísmo. É o seguinte: uma vez que há uma existência crescente de ateus, de que forma o conhecimento sobre Deus se encontra disponível na sociedade? Seria o ateu um ignorante a Seu respeito? O ateísmo é uma escolha? É uma questão de conhecimento ou de ignorância? Se o conhecimento sobre Deus de fato avançou, o ateísmo seria então um tipo de obscurantismo teimoso e resistente? Seria o ateu alguém com falhas cognitivas?

Isso nos traz de volta à questão da ciência. O ateu que leva a sério os procedimentos científicos não faz isso a partir de uma escolha. Provavelmente, alguns conhecimentos científicos são mais passíveis de incertezas do que outros, e, nestes casos, há muita negociação envolvendo aceitá-los ou não. O fato de tantas pessoas questionarem a esfericidade da Terra hoje em dia é um forte indício de que o conhecimento científico, apesar de estar mais ou menos bem estabelecido dentro de determinados contextos sociais, pode ser contestado segundo regras não definidas pela própria ciência.

Assim sendo, pode haver um objeto de conhecimento que simplesmente não exista para quem não acreditar nele? Seria possível que a Lua não existisse para quem não acreditasse nela? Seria possível que a Terra simplesmente fosse plana para quem achasse que ela é plana?

Faz algum sentido dizer que Deus só existe pra quem acredita nele?

De que tipo de experiência o ateu estaria privado? De que tipo de conhecimento, afinal? Certamente que o ateu, para viver a sua vida, prescinde do conhecimento disponibilizado pelas religiões do mundo. Um ateu completo pode viver muito bem sem ter de recorrer a qualquer justificativa religiosa para as suas ações e para as suas ideias. Na verdade, seria muito saudável conseguir imaginar um universo em que Deus simplesmente não tem lugar – trata-se de um importante exercício de imaginação.

Aí está que talvez Deus não seja matéria do saber e nem do ser. Pelo menos não segundo aquilo que sabemos, e nem segundo aquilo que somos.

Entre estas duas ações, saber e ser, está aquilo que sentimos. Nem um nem outro, entre um e outro. Os deuses são modalidades da ação, estão refletidos na linguagem. Se sabemos mais sobre Deus hoje, sabemos apenas o que Ele pode ser para nós. Como manda o figurino, temos de desconfiar dos nossos sentidos, e, por este motivo, não estamos autorizados a transacionar o conhecimento de uma instância para a outra.

Mas não deveríamos tentar?

Em qualquer caso, servimos de referência pra nós mesmos.


Vishvarupa, Jaipur, 1880.

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