“- De onde é que toda esta neve nos vem?
– A neve, meus pequenos, é o sangue dos mortos.
– E o trovão? Alguém fica sempre a indagar, de si para si, em torno do que é a causa do trovão.
– São os espíritos, que esfregam seus corpos revestidos de couro; os espíritos costumam esfregar-se uns nos outros, quando discutem. Em geral, são espíritos famintos.
– E o relâmpago?
– Ocorre quando os espíritos discutem e batem na lâmpada e a apagam. Essa é a razão pela qual o relâmpago e o trovão aparecem juntos.
– E as estrelas cadentes?
– Dejeções de estrelas é o que elas são. O que mais poderiam ser, as pobrezinhas?
– Naturalmente. Mas, por qualquer circunstância, isso nunca me ocorreu. E quem foi que fez as primeiras pessoas?
– O Corvo Preto.
– E quem foi que fez o Corvo Preto?
– A crosta de gelo partiu-se e abriu-se; e, nascendo do barulho assim produzido, o corvo começou a existir. Ficou sendo preto porque o fato aconteceu de noite. Logo se sentiu abandonado, por se ver sentado, sozinho, no mundo; por isto, ele fez pessoas pequenas, servindo-se de bolas de terra. Depois, os homens, fazendo-se poderosos, ficaram entediados, porque não tinham ninguém em quem bater; e, por isto, fizeram as mulheres, servindo-s de pequenas bolas de neve.
– E onde é que está agora o Corvo Preto?
– Está morto. Os pequenos homens cresceram e mataram-no.
– Por quê?
– Para comê-lo… antes de ter tempo de verificar que somente ele, o corvo, poderia impedir que eles, os homens, morressem.
– Isso me lembra de algo que há muito tempo venho querendo perguntar: para onde é que vão as almas, quando as pessoas morrem?
– As almas têm três paraísos para onde ir: um no ar, outro na Terra; o terceiro, por baixo da água.
– Que jeito tem uma alma?
– Tem o jeito e a forma da pessoa que é sua dona, apenas muito menor, quanto ao tamanho.
– Menor, mas em que medida?
– Do tamanho de um mergulhão pequeno.
– E que jeito têm os nomes das pessoas?
– O mesmo jeito das almas, com a diferença de serem ainda menores.
– Já viu almas e nomes?
– Ainda não. Mas minha mãe os viu.
– Terá ela visto, mesmo?
– Por qual motivo deveria ela dizer que viu, se não tivesse visto?
– E para onde é que vão os nomes, depois que as pessoas morrem?
– Os nomes flutuam tristemente no ar, até que encontram novos corpos nos quais possam entrar. Esta é a razão pela qual a gente deve dar, aos recém-nascidos, sejam eles bebês ou cachorrinhos, os nomes dos mortos.
– Mas de onde é que vêm todos esses novos bebês e todos esses novos cachorrinhos?
– Em regra, vêm do Espírito da Lua, que se parece com um homem e tem o poder de fazer todas as mulheres, estéreis ou fecundas. É ele também que vê todas as quebras de tabus, e que pune os infratores por isso.
– Será este espírito tão perverso como dizem?
– Ele é até muito pior; é extremamente caprichoso. Só há um ser pior do que ele. É Sila, o homem que está no céu, e que faz com que o Sol vá para baixo; por vezes, ele carrega também um ser humano.
– Por que é que os espíritos são tão maus?
– É porque são como as pessoas: alguns, bons; alguns, maus. Sedna, por exemplo, é a mulher com cauda de foca; ela é muito bondosa; é ela que nos manda todos os peixes bons. E há igualmente o Espírito do Ar, que não é nem bom, nem mau; é ele que efetua as mudanças do tempo. Há alguma coisa mais que vocês, meus pequenos, querem saber?
– Há alguma coisa mais para saber?”
Hans Ruesch, No País das Sombras Longas [1974; Record]