o mestre da mandala secreta

Os ritos da cerimônia denominada A Infinita Destruição e Concepção dos Mundos, já praticada pelos monges budistas tibetanos há mais ou menos seis séculos, ainda se encontram envoltos num manto de mistério e alegoria para a maior parte dos ocidentais.

Tendo se originado na porção oeste do Tibete, os ritos sobreviveram à disputa entre as distintas seitas que conviviam na região, ao final do século XVI, e foram devidamente lapidados pelos seus continuadores, os membros da escola Gelug, e discípulos de Tsongkhapa. Mais tarde, sobreviveram também ao ateísmo do Partido Comunista Chinês, e foram acolhidos no Nepal, onde, desde então, a cerimônia tem acontecido.

Os procedimentos são secretos, e apenas os monges mais graduados estão admitidos na cerimônia. A data é escolhida durante a primavera, e acontece na primeira lua cheia da estação, sendo precedida por um jejum de três dias, durante os quais os participantes permanecem reclusos, sem a autorização de deixarem o monastério.

A meditação é sempre conduzida pelo monge cuja técnica e perícia excedam a dos demais na arte de sonhar. Assim, diz-se que, na verdade, o ritual tem início antes mesmo da data estabelecida. Nas proximidades da época, ele já dirige seus sonhos para o caminho desejado, passando então a idear a mandala que deverá ser projetada durante a cerimônia, e ocasionalmente, sua figura imiscui-se nos outros sonhos de seus colegas e irmãos de fé. Como consequência, nas horas em que decorrem as meditações finais o que se nota é um estranho clima de correspondências. A comunicação entre monges alcança diferentes canais. A linguagem alcança outros sentidos e, não seria arriscado dizer, um certo tipo de telepatia os guia pelo restante da cerimônia.

Também aproveitam estes momentos para fazer música, em sessões espontâneas de improviso que começam a terminam de uma hora para outra.

A graça atingida durante o período é mesmo tão sutil que o monastério encontra aí as razões para reservar a cerimônia a uns poucos membros.

Tal estado de coisas não é acidental. A intenção d’ A Infinita Destruição e Concepção dos Mundos é que os monges alcancem em conjunto uma mandala especial que deverá ser então desenhada e depois destruída. Para tanto, todos devem estar na mesma sintonia.

Os que chegaram a visualizar a mandala descrevem-na da seguinte forma: no centro do triquiliocosmo há um palácio, no alto do Monte Sumeru, a montanha de cinco picos ao redor da qual transita o universo. Duas deidades, uma ao lado da outra, estão a imaginar os infinitos universos possíveis e impossíveis pelos quais emanam os corpos búdicos. Do lado esquerdo, uma divindade furiosa, com o rosto vermelho, os caninos ferozes bem visíveis, e as narinas protuberantes. Em suas mãos, espadas. Sua natureza é imaginar, em meio aos imensos desertos de esterilidade do espaço, um milhão de mundos indesejáveis e então destruí-los. Nestes mundos indesejáveis tomam lugar as danações cósmicas, os repetitivos reinos de angústia e desejo onde vivem as almas famintas, e os ecossistemas em que as espécies desconhecem as leis cármicas e estão condenadas aos sentidos primários, à fome, frio e calor, à morte, e ao sofrimento.

Ao seu lado, há a figura de uma divindade pacífica. Ela tem os olhos fechados, e as mãos imitando os gestos do Buda: na mão direita a ponderação, e na mão esquerda a generosidade. Sua tranquilidade, na verdade, esconde um enorme esforço, porque sua natureza consiste em imaginar um único mundo desejável, e então realizá-lo. Neste único mundo desejável, o que encontramos é a compaixão, a humildade, a bem-aventurança, o amor, e a beleza imperecível da eternidade.

A lição ensinada por estas duas deidades é simples: porque o Bem caminha em direção à unidade, e o Mal tem seu império na multiplicidade, o trabalho para se imaginar um mundo bom é o mesmo exigido para imaginar um milhão de mundos ruins. Interessados em celebrar a glória das visões que logram alcançar na meditação, alguns monges também se referem à cerimônia por outros nomes: a Abundância da Criação Constante, a Louvável Variedade dos Atributos da Natureza, o Fecundo Bosque das Sementes Planetárias.

Nas regiões laterais e angulares da mandala, constam esses tantos mundos ao mesmo tempo imaginários e reais, escondidos e distribuídos pelo corpo, no topo da testa, no centro do peito, nas pontas dos dedos de cada mão, no baixo-ventre, e até mesmo nas solas dos pés. As alterações na respiração, durante as horas meditativas, eliminam muitos mundos a cada vez.

Assim são levados a visitar os infinitos planos pensados pela Consciência Suprema, dentro dos quais uma variedade sem fim de existências decorrem paralelas a esta em que se encontram, separadas dela por frações de tempo e espaço, escondidas nas camadas da mente, encantoadas nos escusos ou então proeminentes ângulos de suas mandalas. De olhos fechados, observam dentro de si a grandiosidade desta suprema consciência que é capaz de cogitar o infinito de uma só vez – os universos sem forma, e aqueles que têm forma. A beleza disso tudo está justamente em compreender os limites da mente humana, nonde a imaginação ainda se encontra condicionada à estreiteza de sua percepção.

Cada monge se depara com um exemplar de si mesmo em todas estas existências, e nos seus duplos têm a oportunidade de contemplarem a impermanência, as leis causais de ação e efeito sobre o carma antes mesmo de agirem, e a roda da vida estendida por sequências vertiginosas de reencarnação.

A última meditação da cerimônia ocorre no horário crepuscular, porque, segundo os iniciados, é o momento em que se torna mais visível a fresta entre os mundos. No salão central queimam incenso e entoam uma sequência de mantras específica. Sentados em posição de lótus, agradecem aos astros, à infinita inteligência e generosidade do Buda, respirando com gravidade e ritmo.

O mestre, aquele que é o mais talentoso na arte dos sonhos, veste uma máscara que lhe servirá de proteção e cujo rosto imita a face assustadora das divindades furiosas. O intuito da máscara, à semelhança das poderosas divindades que imita, é golpear e banir para longe as assombrações que atormentam os seres ainda vulneráveis a elas. Enquanto medita, o monge parece levitar a dois palmos do chão. Ao entrar e sair de tantos mundos estranhos ao seu, deve tomar cuidado para não sujeitar-se aos sentimentos de desejo e aversão, e evitar, com isso, de arruinar toda a cerimônia com a intranquilidade de sua respiração.

Há quem acredite que a existência do Universo como um todo esteja assegurada por essa classe de indivíduos que têm como função imaginá-lo continuamente. Não são poucos os ecos que esta crença encontra em culturas diferentes, nonde é transferida aos seres divinos a responsabilidade pela preservação do mundo dos sentidos. Por este caminho, alguns também são levados a crer que certas entidades moradoras da Cordilheira do Himalaia têm como função garantir a paz e a harmonia do reino terrestre e que, sem elas, todas as gentes em todos os lugares sucumbiriam ao caos e à violência.

O próprio mundo em que vivemos, e no qual está incluído o monastério e os monges que o imaginam, já foi por sua vez cogitado em todos os seus detalhes e conflitos por um monge tibetano, e toda nossa vida, a vida dos animais e os belos e riquíssimos reinos presentes naquela natureza que nos cerca, tudo isso existe na brevidade de um segundo em que alguma divindade inspira ou exala – assim vamos do incriado ao criado, e vice-versa.

Ao leitor deste relato caberá localizar em seus tantos mundos imaginários, suspensos em hipóteses e expectativas, alguma existência real desejável, ou, então, nos muitos mundos reais e indesejáveis de cada dia, nos intervalos das horas fastidiosas e cheias de ansiedade, um outro universo mais real que este, onde as coisas com as quais interagimos não estejam revestidas pela ilusão.

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