“[…] o discurso que ouvira, em minha mocidade, quando de minha primeira estada na Pérsia, num dia em que assistia a uma reunião de intelectuais, na qual se discutia sobre a cultura contemporânea.
Entre os que mais falaram nesse dia, estava um velho intelectual persa – intelectual, não na acepção europeia da palavra, mas no sentido que se lhe dá no continente da Ásia, isto é, não somente pelo saber mas pelo ser. Era, aliás, muito instruído e possuía um profundo conhecimento da cultura europeia.
Disse, entre outras coisas:
‘É muito lamentável que o período atual de cultura – que denominamos e será denominado pelas futuras gerações civilização europeia – seja intermédio, por assim dizer, na evolução da humanidade; em outros tempos, que seja um abismo, um período de ausência no processo geral de aperfeiçoamento humano, uma vez que os representantes dessa civilização são incapazes de transmitir a seus descendentes, como herança, qualquer coisa de válido para o desenvolvimento da inteligência, esse motor essencial a todo aperfeiçoamento.
Assim, um dos meios principais de desenvolvimento da inteligência é a literatura.
Mas para que pode servir a literatura da civilização europeia? Absolutamente para nada, a não ser para a propagação da palavra prostituída.
A razão fundamental dessa corrupção da literatura contemporânea é, a meu ver, que toda a atenção concentrou-se pouco a pouco, por si própria, não mais sobre a quantidade do pensamento nem sobre a exatidão de sua transmissão, mas apenas sobre uma tendência à carícia exterior; em outros termos, à beleza do estilo, para produzir afinal o que chamei palavra prostituída.
E, de fato, acontece a todos passar um dia inteiro lendo um grosso livro, sem saber o que quer dizer o autor e somente perto do final, depois de haver perdido um tempo precioso, já demasiado curto para fazer face às obrigações da vida, descobrir que toda essa música repousava sobre uma ínfima ideiazinha, por assim dizer nula.
Toda a literatura contemporânea pode ser divida, segundo seu conteúdo, em três categorias: a primeira abrange o que se denomina o campo científico, a segunda consiste em relatos e a terceira em descrições.
Nos livros científicos, desenvolvem-se longas considerações sobre toda espécie de antigas hipóteses conhecidas de todo há muito tempo, mas a cada vez combinadas, expostas e comentadas de maneira um pouco diferente.
Nos relatos ou coo se diz, nos romances, que enchem volumes inteiros, conta-se, na maioria das vezes sem nos poupar nenhum detalhe, como um certo João da Silva e uma certa Maria da Cunha chegaram por fim a satisfazer seu amor – esse sentimento sagrado que degenerou pouco a pouco entre os homens, em razão de sua fraqueza e de sua falta de vontade, até tornar-se um vício definitivo para os nossos contemporâneos, ao passo que a possibilidade de uma manifestação natural desse sentimento nos havia sido dada pelo Criador, para a salvação de nossas almas e o sustentáculo moral recíproco que exige uma existência coletiva mais ou menos feliz.
Quanto aos livros da terceira categoria, oferecem-nos descrições da natureza, de animais, de viagens e de aventuras nos mais diversos países. As obras deste gênero sã escritas, geralmente, por pessoas que nunca foram a parte alguma e que,, por conseguinte, nunca viram nada de real; ou seja, pessoas que, como s diz, nunca saíram de seu escritório. Com raras exceções, dão simplesmente livre curso à sua imaginação ou transcrevem fragmentos diversos, tão fantasistas quanto os anteriores, extraídos dos livros de seus antecessores.
Reduzidos a essa miserável compreensão da responsabilidade do real alcance da obra literária, os escritores atuais, em sua procura exclusiva da beleza do estilo, entregam-se, às vezes, a incríveis elucubrações, unicamente com o fim de obter a deliciosa sonoridade da rima, como dizem, acabando deste modo por destruir o sentido, já bastante fraco, de tudo o que haviam escrito.
Por mais estranho que lhes possa parecer, porém, nada é mais prejudicial à literatura contemporânea que as gramáticas – quero dizer as gramáticas particulares a cada um dos povos que tomam parte no que chamaria o concerto geral catastrofônico da civilização contemporânea.
Essas gramáticas, na maioria dos casos, são constituídas artificialmente e, tanto os que as inventaram como os que continuam a modificá-las, pertencem a uma categoria de homens totalmente ignaros no que tange à compreensão da vida real e da linguagem que dela decorre para as relações mútuas.
Ao contrário, entre os povos das épocas passadas, a verdadeira gramática, como no-lo mostra claramente a história, foi moldada pouco a pouco, pela própria vida, de conformidade com as diferentes fases de seu desenvolvimento, as condições climáticas de seu principal local de existências e as formas predominantes que entre eles assumia a busca do alimento.
No mundo contemporâneo a gramática de algumas línguas chegou a desvirtuar a tal ponto o verdadeiro sentido do que se deseja exprimir, que o leitor das obras literárias de hoje – principalmente se for um estrangeiro – encontra-se privado das últimas possibilidades de captar nem ao menos as minúsculas ideias que nelas ainda podem se encontrar e que, expostas de outro modo, isto é, sem a aplicação dessa gramática, teriam talvez permanecido compreensíveis.
A fim de tornar mais claro o que acabo de dizer, prosseguiu o velho letrado persa, tomarei como exemplo um episódio de minha própria vida.
Como sabem, de todos os meus próximos pelo sangue, só me restou um sobrinho que, tendo herdado há alguns anos uma exploração de petróleo nos arredores de Baku, viu-se forçado a ir viver lá.
Vou, de vez em quando, a essa cidade, pois todo entregue a seus inúmeros negócios, meu sobrinho não pode quase ausentar-se para ver seu velho tio, no país que viu nascer a ambos.
O distrito de Baku, onde se encontra essa exploração, está, atualmente, sob a dependência dos russos, que constituem uma das grandes nações da civilização contemporânea e que, como tal produz uma literatura abundante.
Ora, a maioria dos habitantes de Baku e de seus arredores pertencem a tribos que nada têm em comum com os russos; em sua vida familiar, empregam o dialeto materno, mas em suas relações exteriores são obrigados a servir-se da língua russa.
Durante as estadas que lá fiz, aconteceu-me entrar em contato com toda espécie de gente, por diversas razões pessoais, e resolvi aprender essa língua.
Já tinha tido que estudar muitas línguas em minha vida e estava, pois, treinado para fazê-lo. Assim, o estudo do russo não apresentava dificuldade alguma para mim; muito depressa fiquei em condições de falá-lo corretamente mas, é claro, como os habitantes da região, com uma pronúncia e construções de frase um pouco rústicas.
Como, de certo modo, tornei-me um linguista, acho necessário observar aqui que é impossível pensar numa língua estrangeira, mesmo se a conhecermos com perfeição, enquanto se continua a falar com a língua materna ou uma língua na qual se adquiriu o hábito de pensar.
Por conseguinte, a partir do momento em que pude falar russo, embora continuando a pensar em persa, pus-me a rebuscar em minha cabeça as palavras russas correspondentes aos meus pensamentos persas.
E, vendo-me algumas vezes na impossibilidade de reproduzir com exatidão, em russo, nossos mais simples e mais quotidianos pensamentos, fiquei tocado por certos absurdos, inexplicáveis a princípio, dessa língua civilizada contemporânea.
Essa constatação interessou-me e, como então estava livre de qualquer obrigação, resolvi estudar a gramática russa e depois a de outras línguas utilizadas por diferentes povos contemporâneos.
Compreendi, assim, a verdadeira razão dos absurdos que havia observado e, de pronto, adquiri, como acabo de dizer, a firme convicção de que as gramáticas das línguas empregadas pela literatura contemporânea foram totalmente inventadas por pessoas que, em matéria de conhecimento real, estavam muito abaixo do nível dos homens comuns.
Para ilustrar da maneira mais concreta o que acabo de explicar, citarei, entre as inúmeras incoerências que me haviam chamado a atenção, desde o início, nessa língua civilizada, aquela que me levou a estudar a fundo essa questão.
Um dia em que falava russo e traduzia, como de hábito, meus pensamentos por frases construídas à maneira persa, precisei de uma expressão que nós, persas, empregamos frequentemente na conversação, a de miam-diaram, que, em português, traduz-se por digo, em inglês por I say e, em francês, por je dis. Entretanto, apesar de todos os meus esforços para descobrir em minha memória alguma palavra que lhe correspondesse em russo, não pude encontrar uma só, embora já conhecesse e fosse capaz de pronunciar com facilidade quase todas as palavras dessa língua, utilizadas, seja na literatura, seja nas relações comuns, pelos homens de todos os níveis intelectuais.
Não encontrando uma expressão correspondente a essas tão simples palavras e tão frequentemente utilizadas entre nós, acreditei, a meu princípio, é claro, que não a conhecia ainda e pus-me a procurá-la em meus numerosos dicionários e, depois, pedi a diferentes pessoas que passavam por competentes a palavra russa que traduziria meu pensamento persa; mas verificou-se que tal palavra não existia e que, em seu lugar, empregava-se uma expressão cujo sentido é o de nosso mian-soïl-yaram, que equivale em português a falo, em francês a je parle, ou em inglês a I speak, ou seja, ia govoriú.
A vocês que são persas e que, para digerir o sentido contido nas minhas palavras têm uma forma de pensamento totalmente semelhante à minha, pergunto agora: é possível a um persa, lendo em russo uma obra de literatura contemporânea, deixa de sentir-se instintivamente indignado quando encontrando uma palavra que exprime o sentido contido em soïl-yaram, percebe que deve dar-lhe o sentido correspondente a diaram? É, evidentemente, impossível; soïl-diaram e diaram, ou, em português, falar e dizer, são dois atos sentidos de maneira inteiramente diferente.
Esse pequeno exemplo é bem característico dos milhares de absurdos que se encontram nas línguas desses povos representantes do que se denomina a flor da civilização contemporânea. E são esses absurdos que impedem a literatura atual de ser um dos principais meios de desenvolvimento de inteligência entre os povos civilizados – do mesmo modo, aliás, que entre outros povos que, por certas razões, (que qualquer pessoa de bom senso já suspeita) são privados da felicidade de serem considerados como civilizados e até, como o testemunha a história, são correntemente tratados de atrasados.
Em decorrência das numerosas incoerências da linguagem utilizada pelos literatos contemporâneos, todo homem que lê ou entende uma palavra empregada de maneira incorreta, como no exemplo que acabo de dar, se for dotado de um pensar mais ou menos normal e souber das às palavras sua verdadeira significação – e, principalmente, se pertencer a um desses povos excluídos doo número dos representantes da civilização atual – perceberá inevitavelmente o sentido geral da frase segundo essa palavra imprópria e, por fim, compreenderá alguma coisa totalmente diferente do que essa frase queria exprimir.
Embora a faculdade de captar o sentido contido nas palavras difira segundo os povos, os dados que permitem perceber as experiências repetidas, que formam a trama da existência, são constituídos em todos os homens, de maneira idêntica, pela própria vida.
A ausência, nessa língua civilizada, de uma palavra que exprima exatamente o sentido da palavra persa diaram, que tomei como exemplo, confirma bem minha convicção, aparentemente mal fundamentada, de que os arrivistas iletrados de hoje, que se intitulam letrados e, por cúmulo, são considerados como tais pelos que os rodeiam, conseguiram transformar até a língua elaborada pela vida num ersatz alemão.
É necessário dizer-lhes que, depois de haver empreendido o estudo dessa língua civilizada contemporânea, bem como o de várias outras, para aí achar a causa das numerosas incoerências que ali se encontravam, resolvi, por ter uma queda pela filologia, estudar igualmente a história da formação e do desenvolvimento da língua russa.
Ora, essas pesquisas históricas trouxeram-me a prova de que essa língua também havia possuído outrora, ara cada uma das experiências já fixadas no processo da vida dos homens, uma palavra exatamente correspondente, mas que depois de haver atingido, no curso dos séculos, um alto grau de desenvolvimento, se tinha por sua vez tornado um objeto apropriado apenas para afiar o bico dos corvos, isto é, um assunto de primeira para as sofisticações de diversos arrivistas iletrados. A tal ponto que numerosas palavras foram deformadas ou terminaram caindo em desuso, pois não mais respondiam às exigências da gramática civilizada. Entre essas última estava, justamente, a palavra correspondente a nosso diaram e que então se pronunciava skazivaiú.
É interessante observar que essa palavra conservou-se até nossos dias, mas que só a empregam e no seu sentido exato as pessoas que, embora pertencendo à mesma nação, ficaram por acaso isoladas da influência da civilização contemporânea, ou seja, os habitantes de certas aldeias afastadas de qualquer centro de cultura.
Essa gramática artificialmente inventada, cujo estudo é imposto em toda parte às jovens gerações, é uma das causas principais do fato de que, entre os europeus atuais, desenvolve-se apenas um único dos três dados independentes, indispensáveis à aquisição de uma inteligência sã, o pensamento, que tende a ocupar o primeiro lugar em sua individualidade. Ora, como todo homem capaz de refletir normalmente deve saber, sem o sentimento e o instinto, a verdadeira compreensão acessível ao homem não poderia constituir-se.
Resumindo tudo o que acaba de ser dito sobre a literatura da civilização contemporânea, não posso encontrar definição mais feliz que esta: ela não tem alma.
A civilização contemporânea destruiu a alma da literatura, como a de qualquer coisa sobre a qual dirigiu sua benevolente atenção.
Minha crítica impiedosa desse resultado da civilização contemporânea é tanto mais justificada que, dando crédito aos dados históricos mais seguros que chegaram até nós, provenientes da mais remota antiguidade, a literatura das antigas civilizações continha, realmente tudo o que era necessário para favorecer o desenvolvimento da inteligência humana, a tal ponto que sua influência ainda se faz sentir sobre as gerações atuais.
A meu ver, pode-se perfeitamente transmitir a quintessência de uma ideia por meio de anedotas e ditos populares elaborados pela própria vida.
Por isso, servir-me-ei, para exprimir a diferença entre a literatura das civilizações de outrora e a de hoje, de uma anedota muito difundida entre nós, na Pérsia, sob o nome de Conversa de dois pardais.
Conta-se que um dia, sobre a cornija de uma casa alta, estavam pousados dois pardais, um velho e outro novo.
Discutiam entre eles um evento que se tinha tornado a questão candente do dia para os pardais: o ecônomo do mulah tinha jogado pela janela, no local em que os pardais se reuniam para brincar, algo que se parecia com as sobras de falinha molhada mas que, na realidade, nada mais era que cortiça cortada fina, as quais alguns pardais novos, ainda inexperientes, haviam comido sofregamente e por isso quase se arrebentaram.
Enquanto falava, o velho pardal arrepiou-se de súbito e, om uma careta de dor, pôs-se a procurar sob sua asa os piolhos que o torturavam – esses piolhos que invadem os pardais quando passam fome – e depois, tendo pegado um, disse com profundo suspiro:
‘Ah! como os tempos mudaram! A vida hoje é dura para nossos irmãos.’
‘Antigamente, tu te pousavas em qualquer parte sobre um telhado, como nós neste momento, e cochilavas bem tranquilamente, quando de repente elevava-se um ruído da rua, um estrondo, estalidos e de pronto se espalhava um odor que te enchia de alegria, pois podias estar seguro de que, voando sobre os locais onde tudo se tinha produzido, encontrarias com que satisfazer tua necessidade mais essencial.
‘Hoje em dia, barulho, estalidos, estrondo não são certamente o que falta e a cada instante espalha-se também um cheiro, mas um cheiro quase impossível de suportar; e se por acaso voarmos, por hábito antigo, nos momentos de acalmia, em busca de alguma coisa substancial, por mais que se procure e se aguce a atenção, nada se encontra além de manchas nauseabundas de óleo queimado.’
Esse relato faz alusão, como seguramente já perceberam, às antigas carruagens com seus cavalos e aos automóveis atuais que, como dizia o velho pardal, produzem rangidos, estrondo e cheiro, até mais que anteriormente, mas tudo isso sem utilidade alguma para o alisamento dos pardais.
E, sem comer, vocês admitirão que é difícil, mesmo para um pardal, engendrar uma descendência sadia.
Essa anedota ilustra, de maneira ideal, a diferença que quis salientar entre a civilização contemporânea e as civilizações das épocas passadas.
A civilização moderna, do mesmo modo que as antigas, dispõe da literatura para servir ao aperfeiçoamento da humanidade, mas hoje em dia, nesse campo como em todos os outros, nada há de utilizável para essa meta essencial. Tudo é apenas exterior. Como dizia o velho pardal, tudo é só ruído, estrondo e cheiro nauseabundo.
Para todo homem imparcial, esta visão da literatura atual pode ser confirmada, de maneira indiscutível, pelo fato de que existe uma diferença evidente entre o grau de desenvolvimento do sentimento das pessoas que nasceram no continente da Ásia e nele passaram toda sua vida e o das que, nascidas na Europa, foram educadas ali, nas condições de vida da civilização contemporânea.
De fato, como constataram numerosos contemporâneos, entre os homens que vivem hoje no continente da Ásia e que, devido a diversas condições geográficas e outras, estão isoladas da influência da civilização atual, o sentimento conhece um desenvolvimento bem superior ao dos povos da Europa; e, sendo o sentimento a própria base do bom senso, esses homens, embora tendo menos conhecimentos gerais, têm uma concepção mais justa do objeto sobre o qual se dirige sua atenção do que aqueles que representam a fina flor da civilização moderna.
Num europeu, a compreensão do objeto observado só se pode fazer, se ele possuir a tal respeito uma informação matemática completa, ao passo que a maioria dos asiáticos capta, por assim dizer, a essência do objeto observado, às vezes, apenas com seu sentimento e, às vezes, até mesmo com seu instinto.”
Nesse ponto de sua peroração, o velho persa abordou uma questão pela qual se interessa, em nossos dias, a maior parte dos europeus que se preocupam em instruir e esclarecer o povo.
Disse:
“Durante certo tempo, os povos da Ásia ficaram cativados pela literatura europeia, mas não tardaram a sentir toda a nulidade de seu conteúdo e cessaram, pouco a pouco, de se interessar por ela. Hoje em dia, não é quase mais lida.
Nada contribuiu mais, a meu ver, para essa indiferença crescente, que a espécie de literatura que tomou o nome de romance.
Esses famosos romances consistem, como já disse, em descrições intermináveis das diversas formas de evolução de uma doença que se declara em nossos contemporâneos e se prolonga por bastante tempo devido à sua fraqueza e à sua falta de vontade.
Os asiáticos, que ainda não estão muito afastados da Mãe Natureza, consideram em seu consciente que esse estado psíquico, que aparece nas pessoas dos dois sexos, é um estado vicioso, indigno do homem em geral e particularmente aviltante para o sexo masculino – e instintivamente olham-no com desprezo.
Quanto às obras pertencentes aos ramos científicos e descritivos da literatura europeia ou a qualquer outra forma de pensamento didático, o oriental, menos diminuído em sua faculdade de sentir, isto é, tendo permanecido mais próximo da Natureza, experimenta semi-conscientemente e sente instintivamente a ausência total, em seu autor, de qualquer conhecimento do real, e de qualquer compreensão verdadeira do objeto de que trata em suas obras.
Tais são as razões pelas quais os povos da Ásia, depois de terem manifestado grande interesse pela literatura europeia, pouco a pouco cessaram de dispensar-lhe a mínima atenção, a ponto de hoje não lhe reservarem mais lugar algum; ao passo que na Europa, nas bibliotecas privadas e públicas e nas livrarias, as prateleiras desmoronam sob o número crescente dos livros diariamente editados.
Mas vocês devem, sem dúvida, perguntar como é possível conciliar o que acabo de dizer com o fato de que atualmente os asiáticos, em sua imensa maioria, são, propriamente falando, simples iletrados.
A isso responder-lhes-ei que a razão essencial dessa falta de interesse, suscitada pela literatura contemporânea, reside em suas próprias falhas.
Eu mesmo vi como centenas de iletrados se reúnem, em torno de um único letrado, para escutar a leitura das Sagradas Escrituras ou a dos Contos da Mil e Uma Noites.
Objetar-me-ão, naturalmente, que as histórias que ouvem são tiradas de sua própria vida, o que as torna compreensíveis e interessantes para eles. Mas a questão não está aí; esses textos e, em particular, os Contos, são verdadeiras obras literárias, em toda a acepção da palavra.
Quem quer que os leia e os ouça sente bem que tudo ali é pura fantasia, mas uma fantasia conforme à verdade, por mais inverossímeis que sejam os diferentes episódios com relação às condições ordinárias da vida dos homens. O interesse desperta no leitor ou no ouvinte: maravilhado com a sutileza com a qual o autor compreende o psiquismo dos homens de todas as castas em torno dele, segue com intensa curiosidade a maneira pela qual toda uma história se constrói pouco a pouco, a partir de pequenos eventos da vida real.
As exigências da civilização contemporânea geraram ainda uma forma muito específica de literatura, que se denomina jornalismo.
Não posso deixar em silêncio essa nova forma literária, pois, além do fato de não trazer absolutamente nada de bom para o desenvolvimento da inteligência, tornou-se, a meu ver, o mal desta época, no sentido de que ela exerce a mais funesta influência sobre as relações mútuas dos homens.
Essa espécie de literatura propagou-se muito nestes últimos tempos e isto se deve, estou firmemente convencido disto, a que responde, da melhor maneira possível, às fraquezas e às exigências que determinam nos homens sua falta crescente de vontade. Acaba ela, assim, por atrofiar sua última possibilidade de adquirir os dados que lhe permitiam, até então, tomar mais ou menos consciência de sua individualidade real – único meio de chegar à lembrança de si, esse fator absolutamente indispensável ao processo de aperfeiçoamento de si.
Por fim, essa literatura quotidiana, sem princípios, isola completamente o pensamento dos homens de sua individualidade, de maneira que a consciência moral, que ainda aparecia neles de vez em quando cessou agora de tomar parte em seu pensamento. Estão doravante privado dos dados que lhes tinham até agora assegurado uma existência mais ou menos suportável, pelo menos no campo das relações recíprocas.
Para infelicidade de todos nós, essa espécie de literatura, que invade mais e mais a cada ano a vida corrente dos homens, faz com que sua inteligência, já bastante enfraquecida, sofra um enfraquecimento pior ainda, entregando-a sem resistência a toda espécie de enganos e erros, desviando-a a cada passo, afastando-a de todo modo de pensar mais ou menos fundamentado e, em vez de um julgamento são, estimula e fixa nas pessoas certas tendências indignas, tais como: incredulidade, revolta, medo, falsa vergonha, dissimulação, orgulho, e assim por diante.
A fim de pintar-lhes sumariamente todo o mal que faz ao homem essa nova forma de literatura, contar-lhes-ei vários eventos provocados pela leitura dos jornais e de cuja veracidade não tenho dúvida alguma, uma vez que o acaso quis que deles participasse.
Em Teerã, um de meus amigos íntimos, um armênio, havia-me designado , ao morrer, seu testamenteiro.
Tinha ele um filho, já de certa idade, cujos negócios obrigavam-no a viver com toda sua numerosa família, numa grande cidade europeia.
Ora, no dia seguinte ao de uma refeição fatal, encontraram-nos mortos, ele e todos os membros de sua família. Na minha qualidade de testamenteiro, tive que ir, imediatamente, ao local desse horroroso acontecimento.
Soube que, nos dias anteriores, o pai dessa infeliz família avia acompanhado num dos diários que recebia, uma longa reportagem sobre uma salsicharia modelo, onde se preparava, com limpeza sem igual, salsichas feitas – dizia-se – a partir de produtos garantidos e legítimos.
Ao mesmo tempo, não podia abrir esse jornal nem qualquer outro, sem deparar com um desses anúncios, recomendando essa nova charcutaria.
Por fim, a tentação tornou-se irresistível e, apesar de não gostar muito de salsichas – como, aliás, nenhum dos seus, pois haviam sido educados na Armênia, onde não se come salsicha – acabou por comprá-las. Na mesma noite comeram-nas e ficaram todos envenenados.
Chocado por esse incrível incidente, consegui, mais tarde, com o auxílio de um agente da polícia secreta, descobrir o que se segue:
Certa firma de grande porte havia adquirido a vil preço um enorme lote de salsichas destinado ao exterior, mas que, devido a um atraso na expedição, não tinha sido aceito. Para desembaraçar-se o mais depressa possível de todo esse estoque, a citada firma não tinha regateado dinheiro aos repórteres, aos quais havia confiado o cuidado dessa maléfica campanha nos jornais.
Outro exemplo:
No curso de uma de minhas estadas em Baku, eu mesmo li, vários dias seguidos, os jornais locais que meu sobrinho recebia, longos artigos cujas colunas ocupavam bem a metade do jornal e que se extasiavam, com riqueza de detalhes, com os méritos e as proezas de célebre atriz.
Falavam dela com tanta insistência e exaltação que eu próprio, homem idoso, fiquei inflamado: uma noite, deixando de lado todos os meus afazeres e renunciando a meus hábitos, fui ao teatro ver essa estrela.
E que pensam que eu vi?… Algo que correspondesse, por pouco que fosse, ao que se escrevia sobre ela nesses artigos que enchiam a metade do jornal?…
Nada disso.
Durante minha vida, havia encontrado numerosos representantes dessa arte, bons e maus e posso dizer, sem exagerar, que há muito me consideravam um conhecedor na matéria.
Ora, sem mesmo expressar minhas concepções pessoais sobre a arte, mas colocando-me do simples ponto de vista comum, devo reconhecer que nunca havia visto nada comparável a essa celebridade… quanto à falta de talento e à ausência das noções mais elementares da arte de representar um papel.
Em todas as suas manifestações no palco, havia tal falta de presença, como se diz, que pessoalmente, mesmo num impulso de altruísmo, não teria confiado a essa estrela o papel de ajudante de cozinha em minha casa.
Como soube mais tarde, um industrial de Baku – o tipo acabado do grande refinador de petróleo, enriquecido por acidente – adiantara a alguns repórteres uma bela quantia, prometendo duplicá-la, se conseguissem fazer de sua amante uma celebridade, até então arrumadeira na casa de um engenheiro russo e a quem ele havia seduzido por ocasião de suas visitas de negócios.
Ainda um exemplo:
Lia, de quando em vez, num jornal alemão muito difundido, longos panegíricos sobre a glória de um pintor e esses artigos levaram-me a pensar que tal artista era uma espécie de fenômeno na arte contemporânea.
Como meu sobrinho mandara construir uma casa na cidade de Baku e decidira, prevendo seu casamento, encomendar m interior suntuoso, aconselhei-o a não ser mesquinho e mandar vir esse famoso artista, para dirigir os trabalhos de decoração e pintar alguns afrescos.
(Eu não ignorava que, nesse ano, ele havia tido a sorte de perfurar vários poços de petróleo de grande vazão, o que permitia esperar um polpudo rendimento). Assim, suas enormes despesas seriam proveitosas, pelo menos, a seus descendentes, que receberiam como herança os afrescos e outras obras desse mestre incomparável.
Foi o que fez meu sobrinho. Foi procurar pessoalmente esse ilustre artista europeu. E o grande pintor chegou em breve, arrastando atrás de si toda uma coorte de assistentes e de trabalhadores e, parece-me, até seu próprio harém – no sentido europeu da palavra, é claro. Depois, sem se apressar, pôs-se à obra.
O resultado do trabalho dessa celebridade contemporânea oi que, em primeiro lugar , o casamento foi adiado e, em segundo, foi necessário gastar bastante dinheiro para recolocar tudo em condições e depois fazer pintar e enfeitar as paredes com iluminuras, de maneira mais conforme à verdadeira pintura, por simples artesãos, desta vez persas.
No caso presente, é necessário, aliás, fazer justiça aos jornalistas: foi de modo quase desinteressado que ajudaram a esse pequeno pintor a fazer sua carreira, por simples camaradagem, como modestos escrevinhadores que eram.
Como último exemplo, contar-lhes ei uma história sombria, cujo responsável foi um dos pontífices dessa espécie particularmente perniciosa da literatura contemporânea.
Quando morava na cidade de Khorassã, encontrei um dia, em casa de um amigo comum, dois recém-casados europeus, com quem fiz amizade.
Detiveram-se várias vezes em Khorassã, mas sempre por muito pouco tempo.
Viajando em companhia de sua jovem esposa, meu novo amigo colhia observações e dedicava-se a análises para determinar os efeitos da nicotina de diversos tabacos sobre o organismo e o psiquismo dos homens.
Tendo reunido, em vários países da Ásia, todas as informações de que necessitava, voltou com sua mulher para a Europa e pôs-se a escrever um importante trabalho em que expunha as conclusões de sua pesquisa.
Ora, por inexperiência, a jovem senhora ainda não tinha aprendido a encarar a eventualidade de ‘dias negros’ e, durante essas viagens, esgotara todos os recursos. Assim, viu-se obrigada, para permitir que seu marido terminasse o livro, a entrar como datilógrafa numa grande editora.
Essa casa editorial era frequentada por certo crítico literário, que a encontrava frequentemente ali. Caído de amores por ela, como se diz, ou apenas desejando satisfazer sua concupiscência, tentou levá-la a uma ligação. Ela porém, mulher honesta e conhecendo seu dever, não cedeu a suas investidas.
Enquanto, nessa esposa fiel de um marido europeu, triunfava a moral, esse indivíduo contemporâneo típico, sujo sob todos os aspectos, nutria, com tanto mais força quanto mais a sua concupiscência não havia sido satisfeita, o desejo de vingança, habitual nessas pessoas, de tal maneira que conseguiu, com suas intrigas, fazer com que perdesse seu emprego, sem o menor motivo. E depois, quando o marido terminou e publicou sua obra, esse crítico pôs-se a escrever, por rancor, nos quotidianos dos quais era colaborador e até me outros jornais e revistas, toda uma série de artigos nos quais dava uma interpretação absolutamente falsa do livro. Em resumo, desacreditou-o a tal ponto que foi um fracasso total: ninguém se interessou pelo livro nem o comprou.
As artimanhas de um desses representantes perniciosos de uma literatura sem princípios tiveram, dessa vez, como resultado levar um pesquisador honesto a desejar pôr fim à sua vida. Quando esgotou todos os seus recursos e não teve com que comprar pão para ele ou para sua querida mulher… depois de se terem posto de acordo, ambos se enforcaram.
Devido à influência que lhes dá sua autoridade de escritores, sobre a massa dos homens ingênuos e fáceis de serem sugestionados, os críticos literários são, a meu ver, mil vezes mais nocivos que todos esses babosos garotos que são os repórteres.
Conhecia, por exemplo, um crítico musical que nunca, em sua vida, havia posto a mão num instrumento e que, portanto, não tinha nenhuma compreensão prática da música: não sabia nem mesmo o que era um som, nem a diferença entre as notas dó e ré. As anomalias inerentes à civilização contemporânea haviam-lhe permitido, entretanto, ocupar o posto responsável de crítico musical e, depois, tornar-se uma autoridade para os leitores de um jornal em plena prosperidade, cuja difusão era considerável. Seus julgamentos, completamente ignaros, acabaram por inocular nos leitores opiniões definitivas, quando a música deveria ter sido para eles o que é em realidade: uma fonte de compreensão correta de um dos aspectos do conhecimento.
O público nunca sabe quem escreve. Só conhece o jornal, o qual pertence a um grupo de comerciantes experientes.
Que sabem, de fato, aqueles que escrevem nesses jornais e o que se passa nos bastidores da redação? O leitor ignora totalmente. Por isso acredita piamente em tudo o que encontra nos jornais.
Minha convicção reforçou-se a esse respeito, nesses últimos tempos, para tornar-se mais firme que uma rocha e todo homem capaz de pensar de maneira mais ou menos imparcial pode fazer a mesma constatação: os que se esforçam para se desenvolver pelos meios que a civilização contemporânea lhes oferece adquirem, quando muito, uma faculdade de pensar digna da primeira invenção de Edison e só desenvolvem em si mesmos, em matéria de sensibilidade, o que Mullah Nassr Eddin teria denominado a sutileza de sentimento de uma vaca.
Encontrando-se num grau muito inferior de desenvolvimento moral e psíquico, os representantes da civilização contemporânea são como crianças brincando com o fogo, incapazes de medir a força com a qual se exerce a influência da literatura sobre a massa das pessoas.
Se creio na impressão que me veio do estudo da história antiga, as elites das civilizações de outrora nunca teriam permitido que semelhante anomalia prosseguisse por tanto tempo.
O que digo, aliás, pode ser confirmado por informações que nos chegaram sobre o interesse que dedicavam à literatura quotidiana os dirigentes deste nosso país – não faz ainda tanto tempo – na época em que ele estava entre as grandes potências, isto é, na época em que Babilônia nos pertencia e era, sobre a terra, o único centro de cultura unanimemente reconhecido.
Segundo essas informações, existia também ali uma imprensa quotidiana, sob forma de papiros impressos, em quantidade limitada, é claro. Mas, só podiam colaborar nesses órgãos literários, homens idosos e qualificados, conhecidos de todos por seus sérios méritos e sua vida honesta. Existia até uma regra segundo a qual esses homens só eram admitidos a desempenhar sua função depois de terem prestado juramento. Intitulavam-se então ‘colaboradores juramentados’, como hoje há jurados, peritos juramentados, etc.
Em nosso dias, ao contrário, qualquer fedelho pode tornar-se repórter, desde que saiba expressar-se lindamente e, como se diz, literariamente.
Aprendi, aliás, a conhecer bem o psiquismo desses produtos da civilização contemporânea, que inundam com suas elucubrações esses jornais e revistas e pue avaliar seu ser, pois durante três ou quatro meses tive ocasião de estar lado a lado com eles todos os dias, na cidade de Baku e de ter com eles frequentes conversas.
Encontrava-me em Baku, onde tinha ido passar o inverno em casa de meu sobrinho. Um dia, vários rapazes vieram pedir-lhe um dos grandes salões do andar térreo de sua casa – onde tivera inicialmente a intenção de instalar um restaurante – para ali reunir sua Nova Sociedade dos Literatos e Jornalistas.
Meu sobrinho aquiesceu de pronto a esse pedido e, a partir do dia seguinte, esses rapazes reuniam-se todas as noites para fazer o que chamavam suas assembleias gerais e seus debates científicos.
Os estranhos eram admitidos a essas reuniões e, como não tinha nada que fazer à noite e meu quarto era ao lado da sala onde se reuniam, ia frequentemente escutar seus debates. Dentro em breve, alguns deles me dirigiam a palavra e, pouco a pouco, estabeleceram-se entre nós relações amistosas.
Em sua maioria eram ainda muito jovens, débeis e efeminados. Em alguns os traços do rosto revelavam que seu pais deviam ter-se dedicado ao alcoolismo ou a outras paixões, por falta de vontade ou que os donos desses rostos se entregavam a maus hábitos ocultos.
Embora Baku seja uma cidade pequena, comparada à maioria das grandes cidades da civilização contemporânea, e as amostras de humanidade que ali se reuniam não fossem mais que ‘aves de voo baixo’, não tenho escrúpulo algum em generalizar, pondo todos os seus colegas no mesmo saco.
E sinto-me com esse direito, porque mais tarde, durante minhas viagens pela Europa, encontrei frequentemente representantes dessa literatura contemporânea e causaram-me sempre a mesma impressão: a de parecerem-se uns aos outros como duas gotas d’água.
Só diferiam por seu grau de importância, que dependia do órgão literário no qual colaboravam, isto é, da nomeada e da difusão do jornal ou da revista que inseria suas elucubrações ou, ainda, da solidez da firma comercial à qual pertencia esse órgão, com todos os seus obreiros literários.
Muitos dentre eles se intitulavam ‘poetas não se sabe por quê. Em nossos dias, na Europa, qualquer um que escreva um absurdo deste gênero:
Verde resedá
Mimosa vermelha
A divina pose de Lisa
É como o pranto da acácia.
recebe dos que o rodeiam o título de poeta; alguns fazem até constar esse título nos cartões de visita.
Nesses obreiros do jornalismo e da literatura contemporânea, o espírito de corporação é muito desenvolvido: apoiam-se mutuamente e elogiam-se, em toda ocasião, de modo imoderado.
Parece-me até que esse traço é a causa principal de sua proliferação, de sua falsa autoridade sobre a massa e da adulação servil e inconsciente que a multidão testemunha aos que se poderia qualificar, com a consciência tranquila, de perfeitas nulidades.
Nessas assembleias, um deles subia ao estrado para ler, por exemplo, alguma coisa no gênero dos versos que acabo de citar ou para examinar por que o ministro de tal ou qual Estado, durante um banquete, se exprimira sobre certa questão de tal maneira e não de outra. Depois, o orador terminava, na maioria das vezes, seu discurso por uma declaração deste gênero:
‘Cedo a palavra a essa luz incomparável da ciência de nosso tempo, o Senhor Fulano, chamado à nossa cidade para um assunto da mais alta importância e que teve a amabilidade de haver por bem assistir à nossa assembleia. Vamos ter, neste momento, a felicidade de ouvir sua voz adorável.’
E, quando essa celebridade subia ao estrado, por sua vez, tomava a palavra nesses termos:
‘Senhoras e senhores,
‘Meu colega foi bastante modesto ao chamar-me de celebridade… (Diga-se, de passagem, que não havia podido captar o que dissera seu colega, pois chegara da sala vizinha cuja porta estava fechada.)
‘Para dizer a verdade, se me comparam a ele, não sou nem mesmo digno de sentar-me em sua presença.
‘Não sou eu que sou uma luz, é ele: ele é conhecido não somente por toda a nossa grande Rússia, mas por todo o mundo civilizado. Seu nome será pronunciado com exaltação por nossos descendentes e ninguém esquecerá jamais o que ele fez pela ciência e pelo bem da humanidade.
‘Se esse deus de verdade vive hoje em dia, nesta cidade insignificante, não é por acaso, parece, mas por importantes razões só dele conhecidas.
‘Seu verdadeiro lugar não é entre nós, é ao lado das antigas divindades do Olimpo…’
E somente depois desse preâmbulo essa nova celebridade pronunciava alguns absurdos sobre um tema como este: Por que os Sirikitsi declararam guerra aos Parnakalpi.
Depois dessas assembleias científicas, havia sempre uma ceia regada com duas garrafas de vinho barato. Muitos deles enfiavam tira-gostos nos bolsos – este uma rodela de salame, aquele um arenque com um pedaço de pão – e se, por acaso, um deles era surpreendido, dizia negligentemente: ‘É para meu cachorro: o maroto tem seus hábitos, espera sempre sua parte, quando chego tarde em casa.’
No dia seguinte, podia-se ler em todos jornais locais o relato da reunião e dos discursos, redigido num estilo incrivelmente empolado, sem que, é claro, se fizesse a mínima referência à modéstia do jantar nem ao furto dos pedaços de salame… para o cachorro.
E são essas pessoas que escrevem nos jornais a propósito de toda espécie de verdades e descobertas científicas. O leitor ingênuo, que não vê os escritores nem conhece seu modo de viver, forma uma opinião sobre os eventos e sobre as ideias, segundo as lengalengas desses literatos que são, nem mais nem menos homens doentes e inexperientes, completamente ignorantes do verdadeiro sentido da vida.
Com raríssimas exceções, em todas as cidades da Europa, os que escrevem livros ou artigos de jornal são precisamente esses doidivanas, que chegaram a esse ponto em razão de sua hereditariedade e de suas fraquezas específicas.
Para mim, não há nem sombra de dúvida: entre todas as causas das anomalias da civilização contemporânea, a mais evidente, a que ocupa lugar predominante, é essa literatura jornalística, pela ação desmoralizante e perniciosa que exerce sobre o psiquismo dos homens. Fico, aliás, profundamente espantado que nenhum ‘detentor do poer’ se tenha algum ida dado conta disto e que cada Estado consagre quase mais da metade de seu orçamento para manter uma polícia, prisões, prefeituras, igrejas, hospitais, etc., bem como para pagar inúmeros funcionários, padres, médicos, agentes da polícia secreta, procuradores, agentes de propaganda, etc., com o único fim de salvaguardar a integridade física em oral de seus cidadãos, sem despender um só tostão nem empreender seja o que for para destruir até às suas últimas raízes essa causa evidente de toda espécie de crimes e de mal-entendidos.’
Assim terminava o discurso do velho letrado persa.”
Da memória de Georges Gurdjieff, Encontros com Homens Notáveis, 1931 [Editora Pensamento, 1974; tradução de Eleonora Leitão de Carvalho]
Imagem: Jean-Léon Gérôme, The Snake Charmer, 1879.