Foi mesmo o modernismo quem transformou em piada esse negócio de mobilizar um grande aparato teórico pra levar adiante a análise de uma banalidade? Ascenção e Queda do Bidê; A Extinção do Touro-Mecânico; Genealogia da Uva-Passa; coisas assim. Quem foi que riu primeiro? Haveria de ser necessário que, antes, chegássemos à hipótese de que não há banalidades, simplesmente porque não há nada abaixo da superfície? Certo está, que foi antes dos historiadores tornarem isso um ofício. Há quem goste de pensar que, em termos literários, Ulysses, de Joyce, seja o êxito (e fracasso) máximo desse tipo de vontade. Uma piada seríssima. Uma piada e a gargalhada, às vezes relaxada às vezes desesperada, de quem riu da própria piada.
Tendo sido o modernismo ou não, a piada persiste até hoje nos circunscritos meios intelectualizados, às vezes servindo até como exercício literário-criativo: tergiversar sobre o nada, sobre aquilo que se confunde com o nada, recorrendo, para tanto, se e quando necessário, aos clássicos e cânones do pensamento e das letras – tornar interessante, e engraçado, aquilo que é ordinário e banal, mas de um modo que o esforço por tornar este algo em algo interessante não fique tão nítido a ponto de soterrar, com o excesso de estilo, a superficialidade transcendental de um caroço de azeitona, por exemplo, ou do cheiro do esmalte, ou dos processos fisiológicos humanos. A literatura, assim, é mais um esforço de criar o extraordinário do que de relatá-lo, esta que seria sua função original.
Se a herança remete às ordens realistas e naturalistas, não interessa, o ponto está provado. Qualquer temática pode tornar-se interessante por meio da linguagem que se emprega ao falar dela. Mas quando é que / até que ponto isso pode ter como consequência o abandono total de qualquer possibilidade do extraordinário enquanto oposição ao ordinário? Se tudo é potencialmente extraordinário, o que é que sobra pra ser o seu contrário ou sua incompletude?
Pegando o próprio Ulysses como exemplo, estaria mentindo qualquer um que o julgasse banal, tão evidentes que estão os seus extraordinários vôos de imaginação, suas fantásticas alegorias, jogos absurdos e impenetráveis. Extraordinária é a obra porque extraordinário é o autor (sendo, na verdade, a primeira quem cria o segundo), e o fator transcendente que opera dentro dessa esperada camada de banalidade está justamente na arbitrariedade das escolhas assumidas por ele, na assinatura de sua narrativa, em algum lugar anterior ao seu próprio nascimento enquanto categoria.
A grandiosidade não está simplesmente no eco do passado em um ato presente, mas numa voz afinada para que esses ecos possam soar através dela. Cifrar um épico grego dentro de uma epopeia aparentemente comum de um irlandês, tal como fez Joyce, pode ser, no âmbito estético, um ato de ocultamento, obscuro, porém intertextual, mas / e que tinha como resultado almejado justamente a sua exposição ao homem comum que lhe servia de matéria-prima, um resultado completamente distinto da perpetuação do fantástico e do extraordinário com a qual chega a até mesmo a contribuir, não só quando se torna um espelho da jornada heroica do Ulysses grego, mas, e até ainda mais, quando é a própria tragédia surreal (e irritantemente cômica) do homem moderno.
O que torna possível o eco e o escamoteamento de uma jornada dentro de outra é justamente o fato de que a massa modelada para tanto seja o texto, dimensão vazia em que nada pode ser essencialmente banal e dentro da qual o excesso pode servir até como evidência de uma falta. Dimensão que é, sobretudo, um limite.
A literatura se torna banal pelo signo da repetição, formal, temática, que seja. O texto de Joyce não é apenas a manipulação de uma reserva de linguagem flutuando sobre nada. Fosse a coisa uma questão de arranjos, robôs já estariam sendo capazes de produzirem ótimos romances modernistas. No Ulysses de Joyce o banal é apenas um referente ao passo que o extraordinário é um meio de acesso a ele.
texto escrito ao som desse disco:
Imagem: Louis-Léopold Boilly