a necessidade de narrar os sonhos

A literatura que recorre ao sonho enquanto matéria-prima ou fonte para a elaboração de narrativas é abundante, farta.

O livro que tenho em mãos é o diário de sonhos de Georges Perec, La boutique obscure, traduzido para o espanhol (porque o livro não existe em português) como La cámara oscura [Editora Impedimenta, 2010; tradução de Mercedes Cebrián].

São, ao todo, 124 sonhos (sonhados de 1968 a 1974) sem qualquer acompanhamento ou comentário além da data.  Não há ali revelações para além do texto – nada além do nível da intuição.

O que mais chama a atenção, contudo, é como a mudança brusca de direção, comum ao fluxo desordenado dos sonhos (como nos vários momentos em que as pessoas começam a tirar a roupa sem aviso e tudo descamba pro sexo), pode exigir de Perec que desenvolva pequenas narrativas curtas e de linguagem bastante objetiva – preocupada apenas em descrever o o ocorrido no sonho.

Uma vez que os sonhos são mesmo tempo coisa muito pessoal, muito subjetiva e fugidia, é curioso que a linguagem para descrevê-los seja tão seca. Questão de compromisso com o relato? A subjetividade individual do autor transborda para além das descrições dos seus processos mentais (algo que se torna mais evidente por exemplo nos sonhos em que aparecem figuras autoritárias ou regimes ditatoriais pitorescos e burocráticos, com prisões e coisas do tipo – algo que talvez se vincule à história trágica dos pais de Perec, que morreram em campos de concentração nazistas).

Atraente ali contudo, no meio das referências a pessoas que desconhecemos, é o exercício do sonho na esfera da vida particular. Daí a singularidade com que cada detalhe de cada sonho parece brilhar. Apartamentos sendo reformados, relações conflituosas, frustrações cotidianas com cores aberrantes, adaptações de obras, ofícios literários que Perec desempenhava em vida, membros crescendo descontroladamente, objetos inexplicáveis. Por exemplo o sonho nº 90, de outubro de 1971, Mi altura:

“Debo redactar una nota (tipo noticia de Who’s who) relativa a mi jefe.

Para facilitarme la tarea, Jean Duvignaud me entrega una <<libreta de entana>>, una libreta cuya cuberta rígida ha sido recortada en el interior (un poco como para pasaporte).

La <<libreta de ventana>> no tiene que ver con mi jefe, sino con L. También descubro que uno de sus nombres es Bertrand. Hojeando la libreta, me doy cuenta de que la información que contiene no está en absoluto al día.

Es una libreta de ventana, pero no es una libreta al día.

Estoy en casa de S. B. En un pasillo estrecho y tortuoso, me presenta a su madre mencionando mi altura: 1,65m y medio. Rectifico. Primero digo: 1,70m, después: 1,68m. tengo la impresión de ser desesperadamente pequeño. 

Ahora hay una multitude en los salones de S. B. Se cuenta – o quizás la vemos – la historia de un chico que se pone a levitar, provocando la admiración de los asistentes. Pero acaba cayéndose al suelo (por más que planease con gracia) y se precipita bajo un tren.

Antes mantuve una larga conversación con su padre, y quizás también con su tío. Los dos estaban abominablemente borrachos.” 

Dentre as características mais marcantes dos sonhos, estão as suas categorias fluídas. As identidades se misturam, duas pessoas se juntam em uma só, assim como os lugares. Sentimos saudades de cenários em que nunca estivemos, projetados em futuros mais que longínquos, passados coabitados. Neles lemos livros com letras embaralhadas, mas que, quando lidas pela voz do sonho, nos chegam acompanhadas de seu próprio sentido – e ao despertarmos o sentido nem sempre continua lá.

Eu me recordo daquilo que o filósofo Arthur Schopenhauer tem a dizer sobre os sonhos :

“A vida e os sonhos são folhas de um mesmo livro. A leitura encadeada se chama vida real. Quando, porém, finda  a hora da leitura habitual – o dia – e chega o tempo de descanso e recuperação, ainda folheamos com frequência descontraídos, sem ordem e encadeamento, ora uma folha aqui, ora outra ali. Muitas vezes se trata de uma folha já lida, outras de uma desconhecida, mas sempre folhas do mesmo livro” O Mundo como Vontade e como Representação  [Editora Unesp; tradução de Jair Barboza]

A ciência interpretativa dos sonhos não é o que interessa a Perec. Seu exercício é transformar o sonho numa escrita/leitura. Necessário dizer: no livro as páginas não têm número. Não interessa a ordem.

Porventura a sensação mais legítima e mais absoluta do sonho, do sonhar, não é algo tão particular que qualquer tentativa de tradução do sonho para outra linguagem ou domínio que não acaba resultando em perda? Afinal, qual é a linguagem dos sonhos?

Logo de início, somos apresentados às suas intenções:

“De esos sueños demasiado soñados, demasiado releídos, demasiado escritos, ¿qué podría yo esperar a partir de ahora sino a convertirlos en textos, en manojo de textos depositados como ofrenda en las puertas de este <<camino real>> que me queda por recorrer – con los ojos abiertos?” 

Mas a escrita é só uma forma. O hábito de contar e narrar os nossos sonhos para os nossos familiares, amigos, conhecidos, é, certamente, um hábito muito antigo. Pois: desde quando somos capazes de sonhar? Um hábito que acompanha a nossa espécie desde muito antes dos seus primórdios – ofício já disponível entre outros mamíferos e aves, quando ainda estava ausente a possibilidade de relatar o sonho… Talvez o sonho seja, de fato, uma das primeiras fontes de narrativas – certamente a primeira fonte das narrativas fantásticas.

Quais são as relações que as narrativas sobre os sonhos guardam com a realidade? Como se estabelece o jogo entre significantes e significados?

Pensemos no jogo-do-bicho. O jogo brasileiro, per esempio, sobrevive de relações ao mesmo tempo um tanto misteriosas e arbitrárias entre o conteúdo sonhado e os resultados do jogo – é costume entre os apostadores buscarem informações em sonhos que sequer são seus como palpite para apostas. Uma relação lógica entre os entes e a ordem cósmica? No desespero tudo vale, e quaisquer relações soam verossímeis. Se choveu muito, jacaré. O cosmo é um tecido e o tempo uma ilusão. Os sonhos são vias de acesso que atravessam o tecido. A linguagem, a arte, os símbolos, são ferramentas para o mapa do universo. 

Épocas em que os sonhos funcionavam como oráculos, como fontes para tomadas de decisões. Sociedades secretas de sonhadores. O hábito de começar uma conversa pedindo ajuda para a interpretação de um sonho. Exemplos disso em várias sociedades tradicionais espalhadas pelo mundo. No ocidente, o sonho enquanto referência é uma visão, sobretudo, mística, herdeira de Pitágoras e Tertuliano, e corre por fora da maior parte do pensamento intelectual Antigo e Medieval. Pois que, em solo europeu, restará também à Igreja Católica a administração dos sonhos enquanto fenômeno cultural. Para Pitágoras o sonho é o momento em que a alma se liberta do corpo – ideia que encontra eco em certas especulações espíritas. Aristóteles, alguém muito mais lido pelos medievais do que Pitágoras, é um dos que, pela razão, desvaloriza o sonho. Enquanto via de acesso ao futuro, deverá ser entendido como falso – e tudo o que vier do sonho, deve ser considerado fantasia ou delírio. Para os medievais: uma deformação do verdadeiro conhecimento de Deus, posto que somente Ele sabe do futuro. São também os medievais os responsáveis por estabelecerem um tipo de “hierarquia” dos sonhadores, dando enorme importância aos sonhos premonitórios tidos por santos ou figuras políticas.

Entretanto também durante o sono, na escuridão do quarto, seremos atormentados com tentações demoníacas que o pudor cristão rechaçará vigorosamente enquanto uma modalidade do pecado, a polução noturna, o sonho pecaminoso e erótico, os monges acordando suados e perturbados. Santo Agostinho refletindo a respeito da possibilidade do pecado cometido dentro de um sonho e chegando à conclusão de que não, não é possível que estejamos cometendo pecado quando incorremos em atitudes pecaminosas dentro do sonho – simplesmente porque ali não temos controle sobre nossos impulsos.

E na decadência do sistema medieval, às vésperas da Renascença, os sonhos se tornarão mais exuberantes, exóticos, poéticos.

Ao passo que inúmeros adivinhos especialistas na oniromancia ofereciam seu serviço nas praças gregas e latinas, dentro os antigos tal arte foi considerada secundária se comparada a outras formas de adivinhação mais nobres, como as que se usavam das entranhas das vítimas e dos animais, ou as que acompanhavam o voo dos pássaros, praticadas respectivamente por arúspices e áugures. De qualquer forma, eventos singulares, observados na natureza, que trazem escondidos em si uma ordem geral apresentável apenas àqueles que sabem lê-la.

Anotar os sonhos, contudo, é prática corriqueira e comum em um mundo alfabetizado como o de hoje. É recomendado por aqueles que desenvolveram técnicas para sonhos lúcidos. Deve-se fazer uso de um caderno exclusivo, e de uma caneta que só será usada para isso. Dever-se-à rememorar o sonho logo assim que se acorda, porque ainda estão frescos na mente. Ao longo de todo o dia também será necessário que se retome o sonho, e que o usemos como critério para diferenciarmos o estado da vigília do estado onírico. Passamos então a cultivar o hábito de, enquanto acordados, inquirir a respeito do real que nos cerca. Devemos discernir os objetos à nossa volta e escolher, entre eles, algum que nos possa indicar que isso tudo pode ser real ou sonho. Façamos um pouco disso todos os dias e inevitavelmente nos pegaremos fazendo o mesmo quando estivermos o sonho. Quando isso acontecer, o treinamento entra na fase em que aprendemos nivelar a nossa consciência dentro do sonho – porque, ainda assim, ainda que dentro do sonho nos tornemos conscientes, as coisas continuarão fugidias.

A essa técnica deu-se o nome de reality check, e é procedimental à ação a escolha de algum objeto ou artefato que desencadeie o fenômeno durante o sonho. Há quem escolha as palmas das mãos, o relógio, o interruptor. Olha-se pra mão e conta-se os dedos; olha-se para o relógio afim de contar os números. Primeiro nos habituamos a fazer isso durante a vigília, acordados. O hábito naturalmente irá se transferir para o sonho.

Mas há uma variedade bem grande de técnicas e módulos voltados para a obtenção de sonhos lúcidos: MILD, Tholey, são alguns dos quais me lembro, muito embora o mais recomendado seja a mistura de todos os métodos, uma vez que não há incompatibilidade. Xamãs e druidas de tempos imemoráveis devem ter alcançado estágios interessantes de sonambulismo, mas suas técnicas não estão tão facilmente disponíveis na Internet.

Fazendo uso dessas técnicas comuns disponibilizadas na internet, em mais de um caso fui capaz de obter o total controle dos meus sonhos a partir da lucidez:

Na primeira vez sonhei que estava na rua de minha casa presenciando uma batalha aérea que acontecia no céu logo acima de mim, os aviões dando rasantes, tiros, e arremessando bombas. Senti um pânico que me pareceu muito semelhante a algo que eu já havia sentido. Daí que me lembrei, dentro do próprio sonho, que já havia sonhado uma vez com algo muito parecido e que era também como uma batalha aérea. A hipótese me fez considerar que aquilo tudo pudesse ser um sonho, e daí me pus a andar pelas ruas sem medo, experimentando as sensações de tato, cheiro e sabor, pra que logo em seguida acordasse. Esse sonho me serviu de incentivo pra começar a exercitar as ditas técnicas.

Poucos meses de treinamento depois, sonhei que estava em uma casa e que uma festa acontecia. A casa era curiosíssima, de decoração excêntrica, cheia de detalhes, estátuas, quadros, e ornamentos infinitamente rebuscados. A luz era mágica, e todas as pessoas ali dentro pareciam estar tendo conversas interessantes, profundas. Uma penumbra de fumaça e música oriental parecia deixar todo mundo inebriado. Mas em seguida a isso, acordei dentro do próprio sonho, e neste outro sonho me encontrava na mesma casa, só que com a festa tendo chegado ao fim, toda a decoração tinha sido retirada, e as luzes eram muito mais sóbrias. Vi que estava sonhando, e um pensamento esquisito me ocorreu: “Acho que serei abduzido”. Nesse instante, uma luz vinda do céu me sugou pra cima e acordei.

A minha abdução, em alguns círculos, poderia servir como evidência real de um contato com alienígenas. A maior parte dos relatos de abdução são provenientes de experiências ocorridas nesses estados intermediários, durante a dita paralisia do sono. Em um documentário intitulado The Phase, Michael Raduga (que eu não sei se é um neurocientista ou só um estudioso do assunto) defende que todas essas experiências transcendentais envolvendo anjos, demônios, e extraterrestres, na verdade, teriam acontecido durante essa tal fase. Essa zona intermediária feita de segundos antes do despertar seria capaz de abrigar esse Outro elusivo ao qual tantas culturas parecem aludir. A paralisia do sono, por sua vez, fenômeno frequente e assustador, decorrente d’A Fase, é facilmente explicado pelo stress cotidiano, por alguma alteração no lugar em que estamos dormindo e coisas do tipo.

O cérebro nos pregar peças e se aproveita dessa situação de prostração e medo pra inserir aí criaturas sinistras e sombrias, como naquele famoso quadro O Pesadelo, de Johann Heinrich Füssli. O barato é que a criatura sinistra varia conforme o repertório simbólico disponível no momento histórico em que a coisa acontece: na Idade Média somos visitados por anjos ou demônios; em épocas contemporâneas, são E.T’s. Em todos os casos, contudo, somos abduzidos. O fato de eu estar com as informações desse documentário bem presentes em minha memória na época em que “fui abduzido” de certa forma acabou fazendo com que os alienígenas aparecem pra mim ali também.

Em conversas com um amigo mais crente do que eu eu tive de ouvir que isso tudo se trata de fato da existência de alguma entidade inteligente. Ora, Jorge Luis Borges chegou mesmo a sugerir que os nossos pesadelos são como visões verdadeiros do inferno – na medida em que o inferno não é outra coisa além de um estado de consciência. É uma teoria impossível de ser invalidada. De fato, trata-se de uma consciência deveras elusiva, e sua participação na história humana não deve ser desprezada em criatividade o tanto quanto deve ser desprezada em periculosidade. Em outras palavras: se o único momento em que tal consciência encontra chance para nos fazer algum mal são esses parcos segundos antes de acordarmos, e se não há nenhum caso de alguém que tenha morrido de paralisia do sono, não há muitos motivos pra que nos preocupemos.

Seria mais interessante, é claro, desenvolver meios para aprender alguma coisa com esse contato – esse contato que travamos com outras inteligências durante o sonho.

Muito mais assustador do que qualquer abdução ou paralisia do sono, contudo são as sincronicidades. Carl G. Jung dedicou um livro inteiro para a análise do assunto, e trata-se de um dos conceitos-chave de sua obra que mais ofereceu desafios e dificuldades pra ser explicado, uma vez que é algo irreprodutível, bem difícil de se observar. É uma consequência lógica dos avanços produzidos pela investigação dos arquétipos e do inconsciente coletivo, uma ocorrência contra-intuitiva o suficiente pra tensionar paradigmas científicos, uma vez que prescinde de casualidade ou de relações formais empíricas, aparecendo em lugares diferentes tanto no tempo como no espaço, sem correspondências muito claras. São áreas que não tiveram muita continuidade nos estudos psicológicos, e os principais expoentes continuam sendo seus fundadores.

Tive muitas experiências que parecem de certa forma envolver sincronicidades e arquétipos. Cito duas:

Certa vez sonhei com um platô no qual haviam montanhas de ossos, crânios, troncos. O céu estava vermelho e escuro, como o céu apocalíptico dos quadros de El Greco. De alguma forma, dentro do sonho obtive a informação de que aquilo que eu estava a ver, aquilo, a cena toda, era Deus. Lembro-me de sentir medo, um medo terrível, na hora. Considerei o sonho absurdamente interessante, porque fui ateu durante boa parte da minha vida e não estou acostumado a sonhar com Deus.

Anos depois, lendo a Bíblia, me deparei com a história do profeta Ezequiel, e de sua visão. Ezequiel teria profetizado sobre uma “planície de ossos”. Uma visão escatológica, metáfora da decadência de Israel. É um episódio bastante conhecido das narrativas bíblicas. Um episódio bem mencionado e cantado. No entanto, afastado do cristianismo, e desprovido do mesmo repertório que os seus fiéis, eu nunca tinha ouvido falar dessa história

Naquela época, quando descobri a relação do sonho com a passagem bíblica, eu vivia recebendo de um amigo bastante religioso as admoestações de que se tratava de um sonho sério, e de que eu deveria procurar uma mudança na minha postura: parar de relativizar as coisas, e me converter de vez à fé católica. O inconsciente coletivo junguiano oferece uma ótima explicação, com certeza mais econômica do que uma razão religiosa ou divina – é a mesma justificativa que Jorge Luis Borges encontra para o caso do poema Kubla Khan, sonhado por Coleridge muitos anos antes de ser encontrado o famoso palácio do imperador mongol, mencionado pelo seu poema.

Ainda assim, esvaziado em seu valor metafísico, o sonho que tive pode continuar sendo verdadeiramente profético uma vez que traz em si embutidos alguns símbolos primitivos (e por isso mesmo atemporais) que já contam com raízes bem profundas em nossa cultura psíquica. O apocalipse se arrasta cotidianamente em nossa civilização. Eu havia me deparado com um texto extremamente violento e misterioso, cheio de morte e guerra. De qualquer forma, um arquétipo de decadência, de sinal dos tempos, de profecia escatológica bastante referenciado em outras obras de arte. Até o céu, como eu disse, ecoava os traços de um outro artista que também pintou visões arrebatadoras: El Greco.

O outro sonho, bem mais singelo, mas igualmente significativo para mim, envolve uma coincidência emocional que, à bem da verdade nem deve ser lá uma coincidência. Sonhei que dava um abraço em uma amiga no exato dia em que ela sonhava o mesmo, antes de partir em uma viagem da qual sabíamos que demoraria muito tempo para regressar. Há outra explicação para esse caso que não reincida sobre os nossos laços afetivos?

Ainda há uma montanha de obras cinematográficas e plásticas sobre o tema. De início, alguns nomes vêm à mente: tanto Jorge Luis Borges quanto Jack Kerouac possuem um Livro dos Sonhos – o de Kerouac é um diário,o de Borges vale-se daquilo que sonharam figuras e personagens da história humana e sua amostragem já seria numerosa o bastante para que qualquer exercício de recapitulação se fizesse redundante; há o Finnegans Wake de James Joyce, a contraparte onírica do atribulado dia do Ulysses, que levou 16 anos para ser escrita; há Alice in Wonderland, de Lewis Carroll; há The Man who was Tuesday, de G. K. Chesterton, que tem como argumento um pesadelo, e The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hide, de Stevenson, que parece ter saído de um; há Confessions of an English Opium Eater, de Thomas de Quincey, um intermediário entre estados de delírio e de sonho profundo; La vida es sueño, de Calderón de la Barca, tem no monólogo de Segismundo os versos mais memoráveis sobre o tema (Yo sueño que estoy aquí/ destas prisiones cargado,/ y soñé que en otro estado/ más lisonjero me vi./ ¿Qué es la vida? Un frenesí./ ¿Qué es la vida? Una ilusión,/ una sombra, una ficción,/ y el mayor bien es pequeño:/ que toda la vida es sueño/ y los sueños, sueños son.), mas além dele há outros tantos poetas que versaram sobre o tema: Guilherme de Almeida, em Berceuse das Rimas Riquíssimas (Durma à sombra dos meus olhos/ como de uma árvore, e molhe os/ seus sonhos nas minhas lágrimas), Edgar Allan Poe, e o sonho dentro do sonho (Is all that we see or seem/ But a dream within a dream?); há o infeliz conto de Dostoiévski, O sonho de um homem ridículo; há as paisagens desoladas do Hebdomeros de De Chirico; há o belíssimo Sandman, de Neil Gaiman; há aquela que é uma das maiores obras do Renascimento, Hypnerotomachia Poliphili; pensando nos relatos bíblicos, a quantidade de profecias e visões que se deram em sonhos também não deve ser desprezada (há pelo menos 40 sonhos no Velho Testamento, dos pesadelos de Jó ao José adivinho que interpretava os sonhos do Faraó), e não existe religião ou conjunto de mitos que não recorra aos sonhos, assim também o comprovam o Popol Vuh, o Corão, o Bardo Thodol, e o Livro Egípcio dos Mortos. Na cultura pop não poderia ser diferente.

Também é do sonho que recebemos inspiração, e é para o sonho que levamos angústias e vontades. Descobertas científicas, intuição, soluções para problemas, insights. A liberdade do pensamento fundamental para o gênio da criatividade. Há inúmeros esboços de um mapa da nossa geografia onírica, e a aventura psiconáutica não pode abrir mão de nenhuma amostra desse rico e inesgotável manancial, seja ela ciência ou religião.

Quando é que teremos, finalmente, a chance de se entediar com os sonhos? Talvez quando eles não significarem mais nada – talvez quando a vida real ganhar uma força entorpecente tão forte que ele, o sonho se tornará indistinguível da nossa escuridão noturna, vazia de sentido.


Imagem: P. Wyss

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