A primeira vez que ouvi falar sobre “validação subjetiva” deve ter sido em uma reportagem na Revista Galileu. O artigo dedicava-se a abordar o fenômeno como um viés cognitivo capaz de localizar em sistemas reais uma quantidade de informação compatível com o sistema de crença pessoal de cada um, ao mesmo tempo em que transforma em ruído qualquer informação que contrarie a lógica embutida no resultado de tal operação. Resumindo: uma estratégia psicológica pra validarmos coisas que já acreditamos, recolhendo e interpretando arbitrariamente informações que parecem se adequar àquilo que queremos. Os inúmeros casos de paranoia social e a reincidência de teorias da conspiração seriam demonstrações genéricas e vulgares deste fenômeno, além de, claro, qualquer outro tipo de ideologia contemporânea que ouse adquirir alguma popularidade na Internet.
A validação subjetiva é um procedimento regular daquilo que se chama Efeito Forer. Numa comparação esdrúxula, seria mais ou menos como quando incorremos em leituras labiais malsucedidas e acabamos confundindo os movimentos dos lábios com a informação que desejamos escutar na hora devido à coincidência de alguma similaridade nos movimentos musculares da boca.
Tal sucedâneo psicológico não poderia deixar de acontecer nas artes, seja no momento de recepção de uma obra por parte de um espectador ou leitor, ou até durante processos mais contínuos, como a elaboração, ou confecção, ou seja, durante o ato criativo, quando acontece de o autor se deparar com um sem número de elementos que no mundo parecem chegar até ele no momento certo, justo quando “ele precisava ver aquilo”. (Quem é que nunca ouviu uma música, leu um livro, ou viu um filme naquele instante preciso em que qualquer um desses objetos parece ter sido feito e pensado exclusivamente pra nós, de tão encaixados que estão àquilo que vivemos?)
Grosso modo, e isso é apenas uma aproximação conceitual, sem qualquer validade científica, talvez o caso mais interessante de validação subjetiva acontecendo nas artes em geral esteja naquele livro de Philip K. Dick, VALIS, de 1981. A sigla vem de Vast Active Living Intelligence System, o objeto/deus/inteligência superior cuja existência norteia uma investigação mística-neurótica sem qualquer paralelo na literatura de Ficção Científica. Autobiográfica, foi também ilustrada por Robert Crumb. Narra a história do próprio Philip K. Dick, rebatizado aqui de Horselover Fat, e seu contato com inteligências superiores e revelações de uma vida simultânea e bastante emocionante transcorrida no passado. Sua exploração neste domínio da psiconáutica teria sido explicada por ele mesmo como algum traço ou indícios de esquizofrenia ou psicose decorrentes do uso exagerado de drogas e de traumas pessoais recentes. Não há quaisquer dúvidas a respeito de que tais experiências desfrutaram de certa rentabilidade criativa. Isto se deve ao fato fortuito de terem caído nas mãos justamente de alguém muito capacitado para a escrita. Outros escritores poderiam ter ficado imobilizados pelo mistério, reféns de suas próprias mentes.
A “superação” desse trauma não poderia ter acontecido se o próprio Philip K. Dick não se reservasse bastante cético a respeito de si mesmo, conforme se nota no tom inicial de sua fala naquela pronunciação sinistra e memorável dada em Metz, na França, na qual discursou sobre a possibilidade de vivermos em uma matrix (pois é).
Ou, mais ainda, quando, no livro supracitado, uma ida ao cinema na companhia de dois amigos é narrada como se fosse a elucidação ou a multiplicação de um problema cósmico, a comunhão entre essas “validações subjetivas” em uma experiência de sincronicidade compartilhada por todos eles com a ajuda das pistas dadas pelo filme que assistiam, cujo nome, VALIS, serve para dar título ao romance. Uma ironia distanciada de si mesma não me parece uma má ideia pra se abordar uma experiência religiosa dentro de um âmbito literário. É bom duvidarmos de nós mesmos; é bom duvidarmos até mesmo daquilo que escrevemos, ao mesmo tempo e ainda que persista um conteúdo real no meio desse acúmulo de ficções, autoficções científicas.
Esta cena, na verdade, teria sido inspirada numa situação real em que Philip e um amigo assistiram ao filme The Man Who Fell to Earth, estrelado por ninguém menos que o recém-falecido herói-alienígena, David Bowie.
“The film VALIS inside the novel reminded me in its style of the film The Man Who Fell to Earth.
Philip K. Dick: You got it. You got it. That’s where the idea came. It’s like Madame Bovary going to see Lucia—I remember that scene so well, how it crystallized all the nebulous things that were floating around in Madame Bovary’s mind. Now, that impressed me enormously.
I saw The Man Who Fell to Earth and thought it was one of the finest films—not just science-fiction films, but one of the finest films I had ever seen. I thought it was incredibly original, incredibly provocative, rich in ideas, beautiful in texture, glorious in its overall conception. It was enigmatic. In no way is the film VALIS the plot and theme of The Man Who Fell to Earth, but the idea occurred to me that a science-fiction film, if well done, could be as rich a source of knowledge and information as anything we normally derive our knowledge and information from. The film tremendously impressed me; I just loved it. My use of the film VALIS is my homage to The Man Who Fell to Earth. It was one of the greatest experiences of my life to see that.”
A obsessão de Philip pelo filme está bem expressa nas palavras de seu biógrafo, Lawrence Sutin:
“Phil loved [The Man Who Fell to Earth], and for a short time he and [Kevin] Jeter listened closely to Bowie albums, hoping to discern a sly pop sign from God/Valis/Zebra. No luck. But a failed experiment can be a useful plot device, and in VALIS [Horselover] Fat and Kevin go to see a movie called Valis, which portrays the struggle between theAlbemuth characters Nicholas Brady (who is zapped by the pink light force) and evil President Ferris Fremont. Fat gets in touch with rock star Eric Lampton and his wife, Linda, who both star in the film. Fat is convinced that they know about Valis—the Vast Active Living Intelligence System—and can rescue him from spiritual isolation.”
Verdadeira ou não, as aventuras do Philip K.Dick real coexistiram simultaneamente, no tempo (1970) e no espaço (Califórnia/Berkeley), com as de outros psiconautas de sua época, naquele contexto bastante propício. Um deles era Terence McKenna. Em seu livro Alucinações Reais [Record; 1993], ele narra sua vinda, acompanhado de outros pesquisadores (entre eles seu irmão, Dennis), à América do Sul, mais precisamente na Amazônia peruana, na intenção de levarem adiante experimentos com o uso de cogumelos.
Na mesma direção de Dick, uma comunicação com certa “inteligência superior”, de origem intergalática, também é estabelecida. Inúmeras coincidências e “sincronicidades” são percebidas e anotadas e interpretadas sem qualquer conclusão. Em vez de nomeá-la de Deus, ou de VALIS, no entanto, McKenna escolheu o termo Logos (a inteligência geométrica), tal e qual Dick parece ter escolhido em alguns momentos de seu livro.
Logos, enquanto o Verbo, ou a Palavra anunciada para os teólogos, e a Razão para os filósofos. Nos sucedâneos de uma viagem psicodélica, ou de uma experiência mística inominável, continua funcionando como um repositório para o Outro. Aquele ente do qual esperamos uma pronúncia que não seja a nossa, a demonstração de um conhecimento que não seja o nosso, e uma imagem que não seja a nossa, muito mais exótica e irreconhecível. O problema, todos sabem, é que, em se tratando de linguagem, não há até hoje nada que nos seja muito estranho. Nenhuma natureza humana na qual pelo menos algum de nós não possa se reconhecer. Por mais distante que sejam os alienígenas que se comunicam conosco, ainda existe neles algo de muito humano. Sendo assim, não é surpreendente que McKenna tenha até mesmo escrito um artigo, intitulado I Understand Philip K. Dick.
Destaco o seguinte trecho:
“Can we refer to a delusional system as a folie a’ deux, if the deux participants have never met and are practically speaking, unaware of each others’ existence?
Does the delusion of one visionary ecstatic validate the delusion of another? How many deluded, or illuminated ecstatics does it take to make a reality? PKD proved that it only takes one. But two is better.
When my brother looked over the edge in the Amazon and felt the dizziness of things unsaid in March of 1971, he came back with two words bursting from his lips, ‘May Day! May Day!’; the pilot’s call of extreme emergency.
May Day found me in Berkeley sheltered by friends so concerned about my state of mind that they considered committing me. I was only a few miles from Phil, who was rapidly going nuts too, as his psych admission of 3 May ‘71 attests. It was always like that with PKD and me. We never met but we lived around each other for years. In Berkeley, we both lived on Francisco St. within five blocks and a few years of each other. We both had roots in Sonoma County, in Orange County. How many times were we a table or two away from each other in the Cafe Med? How many times did I hurry past him on the Ave on some stoned errand? Later his homeopathic doctor was my doctor. There is a garbled mention of me (or my brother) on pg. 74 of this book.
Yah, yawn, the world is fuckin’ strange, right bro?”
De fato, bem estranho.
Se procurarmos reinterpretar esses fatos à luz do nosso século XXI, passadas algumas décadas de arrefecimento do efeito da expansão de consciência da década de 60, encontraremos na Internet uma profusão de informação muito maior e muito mais assustadora, capaz de funcionar e de se ajustar a absolutamente qualquer sistema de crenças pessoal.
Isso, por sua vez, remete à interessantíssima comunicação dada pelo historiador italiano Carlo Ginzburg no programa Fronteiras do Pensamento, à qual ele deu o nome de “A História na Era Google”. Citando um caso semelhante, e igualmente grave de “validação subjetiva” por meio do uso dos mecanismos de busca, Ginzburg sugere que o uso de tal dispositivo poderia funcionar como algo que nos subtraísse de nosso destino, “construindo um pedaço de identidade totalmente estranha ao contexto” em que vivemos, abolindo tempo e espaço (tal e qual a experiência religiosa de Philip K. Dick narrada em VALIS, algo que remonta ao período dos primeiros cristãos e possibilita a reinserção dessa mesma teologia nos tempos atuais, num cenário de conflito global). Mais adiante Ginzburg diz:
“Idealizar o Google não faria sentido. Recusar-se a ver a energia que ele pode liberar seria igualmente sem sentido. […] O Google é ao mesmo tempo um poderoso instrumento de pesquisa histórica e um poderoso instrumento de cancelamento da história. Porque, no presente eletrônico, o passado se dissolve. Esta contradição já está modificando o mundo em que vivemos e em que as futuras gerações viverão. Os conceitos de presente e futuro se tornaram mais frágeis, e de passado também. Ao menos o passado como os historiadores o viam.”
[link para a palestra completa]
Mecanismos de cancelamento da história, sejam eles ferramentas ou ideias, já são coisa conhecida para qualquer um que se debruce sobre o estudo das sociedades, dos movimentos políticos, das agremiações messiânicas, das cruzadas bélicas, dos movimentos artísticos. O ineditismo trazido pelo Google é quase que um antídoto à prisão da história. Quase, porque sua novidade é efetuar um “cancelamento” por meio do excesso de informação, e não da falta dela. A vontade de comunicar-se, de estabelecer vínculos, de perceber continuidades; tudo isso continua conosco no plano do discurso ou no plano da prática, e, no entanto, por mais que qualquer um busque transcender a própria época, terminará fincando pé justamente sobre o lote histórico que lhe é reservado. A Internet, sendo assim, aparece como um enorme mapa-realidade, disponível a todos, à coragem ou covardia de todos. Cumpre, e com até certo exagero, às expectativas que haviam sido depositadas nela. Destrói consensos, anula verdades, subverte autoridades, inverte o senso-comum, reafirma a desorientação dos desorientados.
As experiências de Philip K. Dick, e a dos irmãos McKenna, são indícios de como o corpo, ao alcançar certos estados de consciência, pode perfeitamente funcionar como receptáculo, a mente como uma área de contato com esse Outro. O corpo ainda é o centro da experiência, assim como o Eu – sua centralidade. A necessidade que os acomete de procurar exemplos na história, posto que a história, antes da Internet, é o pool simbólico de onde recolhem outras experiências semelhantes, deve ser vista como uma busca por ajuda na forma com que se lida e se interpreta esse Outro, seja ele um Deus, anjo, ou alienígena* – ou, no caso, a própria mente. Necessidade de amparo por meio de um aparato simbólico já constituído (a mitologia ou a literatura do tema), aquilo que outros humanos têm a dizer sobre coisas parecidas, obtendo na produção do relato uma maneira de situarem a própria experiência mística dentro do arcabouço da cultura humana, algo como: “vejam só, isto também é possível”. A imaginação e a criatividade agradecem. Talvez que ela tenha se enriquecido tanto, a imaginação dos tempos humanos, e de forma tão abundante, que nada mais lhe será estranho daqui pra frente, nada, a não ser a banalidade de todo dia – até o terror político.
* É até aceitável que hoje se diga que anjos, deuses, criaturas mágicas e alienígenas já pertençam a um conjunto de figuras e arquétipos quase nada surpreendentes. Isso é mais um indício de como há uma insistência por meio do tempo presente, do consumo das formas e do excesso de produção simbólica, e de como tudo isso pode trabalhar para o achatamento da dimensão misteriosa que a cultura humana tem produzido desde há muito tempo. De qualquer forma, a realidade presente também demonstra uma permissão muito grande dada às múltiplas “referencialidades”, à maneira com que os textos e símbolos podem guardar referências infinitas a outros textos e símbolos, escondendo o assombro justamente nestes ecos.