o dia em que nossa amizade não sobreviveu a uma reavaliação ideológica

peter doig

Até que acontece. Nem as previsões epistemológicas e análises dóxicas mais precisas conseguem antever o dia em que será, o assunto do qual brotará a cabal divergência – aquela decisiva opinião que será o ponto de chegada ou o ponto de partida para as carteiradas vindouras -, a germinante centelha que, espalhando-se como o fogo no cerrado, terminará incendiado os ânimos, os amigos, ou o casal, ou os pais e os filhos (caso em que o fenômeno é mais frequente, e às vezes até mesmo procurado pelas partes envolvidas), pra depois esfriá-los dentro da geladeira pra onde vão depois de mortos.

Até que acontece. Ou já somos suspeitos há algum tempo, e a patrulha à paisana está num dia muito atribulado, não nos é permitido tolerar certas transgressões, incompatibilidades, humores caprichosos e insensatos, belicosos, fleumáticos, uma distância enorme entre os lugares que habitamos nos espectros políticos e a certeza absurda de que é justamente aí que devemos firmar pé.

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há Marte em Água, digo…

MartianChronicles05

Se estamos certos em afirmar que o diálogo estabelecido entre a imaginação e a ciência funciona mais ou menos segundo um esquema que prediz que o que uma pensa ou intui em uma época, a outra tem por dever inventar ou conhecer na época seguinte, neste século sinistro e terminal talvez que a equação tenha se invertido um pouco, e decadentes que estão as nossas poéticas, não é cedo nem tarde invertermos os fatores pra sugerir que, depois desta última descoberta, se a ciência pretende continuar expandindo suas fronteiras, faz-se necessário que a imaginação a acompanhe.

Soa enfadonho e apocalíptico cogitar que a imaginação humana tenha envelhecido, e que o acúmulo dos séculos tenha transformado a nossa experiência, o nosso convívio, em uma espécie de demora, de atraso. A enorme carga de autoconsciência histórica é um componente obrigatório em qualquer enunciado filosófico, mas o fardo dos tempos não pesa apenas nas esferas sociológicas. Seu peso é sentido também entre aquelas artes que, há pouco tempo, conseguiam articular em um âmbito estético toda a paixão e o impulso que catapultavam as vontades de liberdade, de paz, de evolução da consciência, todo o deslumbramento oferecido pelas novas substâncias alucinógenas, como o LSD, naquele breve respiro de vinte anos após o holocausto, antes da curva descendente de um belíssimo e colorido espírito de época que desaguou na cocaína e nos anos 80. Os sonhos não envelhecem – morrem.

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por uma direita esquerda

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A Última e Mais Completa Crítica Social já se encontra disponível para ser compartilhada entre os povos.

A cada Semana uma Crítica mais terminal, uma Análise mais nocauteante que a anterior.

Ninguém se arrepende em esperar. Quem discorda ou concorda, todos saem ganhando.

Ninguém é salvo pelo gongo.

São milhares de acessos por hora.

Os apostadores apostam em quem vai chegar primeiro à Linha de Chegada: se o Modelo Explicativo, ou a Realidade Vivenciada. Os apocalípticos ou o Apocalipse.

Empates são raros.

Pelo bem geral da Nação, proibiremos os cidadãos de possuírem opiniões.

Queremos evitar as disputas por significados.

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maneiras curiosas de ir à guerra

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Os tehuelches e seus cogumelos

Os habitantes da planície da Patagônia pareceram ter, à primeira vista dos viajantes europeus que por lá aportaram, de dois metros e meio até três metros de altura. Fosse essa dimensão exagerada um efeito da silhueta de indivíduos naturalmente altos aumentada pela vasta paisagem desértica da região em que viviam tendo como comparação a baixa altura de um europeu comum, ou então um recurso dramático pra incrementar as próprias narrativas criadas pelos viajantes, os tehuelches que combateram o avanço da nação argentina em meados do século XIX durante a conquista do deserto patagônico empreenderam o uso de certas técnicas pouco convencionais na história militar, o bastante para que fossem recordados pelos seus inimigos ainda muitos anos depois de terem desaparecido.

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a necessidade de narrar os sonhos

A literatura que recorre ao sonho enquanto matéria-prima ou fonte para a elaboração de narrativas é abundante, farta.

O livro que tenho em mãos é o diário de sonhos de Georges Perec, La boutique obscure, traduzido para o espanhol (porque o livro não existe em português) como La cámara oscura [Editora Impedimenta, 2010; tradução de Mercedes Cebrián].

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quando nos reunimos para ouvir o bardo

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Bem afortunados aqueles que tiveram a chance de se emocionar, de perder os olhos e os pensamentos nas miragens de jardins distantes, enquanto viam e ouviam um bardo dedilhar na frente deles as suas canções mais memoráveis.

Que as apresentações musicais tenham sempre sido uma forma de espetáculo, isso é óbvio, e que, com o avanço inadiável da indústria cultural e da consequente cooptação de quaisquer ambições ou gozos estéticos à ordem da mercadoria programada para seus espaços específicos, sabemos, ninguém tem quaisquer dúvidas. Mas encontrar, no auge de sua consolidação, um vídeo tão singelo, tão absoluto na maneira com que perpetua o clímax afetivo que somente a escuta musical dentro de um espaço doméstico pode permitir, é, no mínimo do mínimo, inspirador. Radicalmente inspirador.

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o dia do exame

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O dia do exame

Paralelo 20º 32º 20 sul.

Meridiano 47º 24º 03º oeste.

Terça-feira, 24º, tempo parcialmente nublado.

Hora local 0800

Umidade Alta: 33%.

O cruzamento defronte ao CIRETRAN amanhece preenchido pelos veículos das 68 autoescolas do município. Apoiados às grades, com os pés nos muros, os braços cruzados, um clima perfunctório no humor da maior parte dos candidatos que discutem entre si os macetes da prova da baliza. Os carros populares rebatizados com os nomes de cada companhia, cada um em uma grafia própria – Central; Metrópole; Bom Jesus; Líder; Modelo; Nova; Dois Irmãos; o gentílico do nome da cidade ou do Estado – pastam bovinamente o asfalto das vagas ao redor do quarteirão.

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o tio que foi à guerra

robert knox sneden

Depois de tanto insistirem pra que o tio lhes contasse da campanha da Itália, as crianças conseguiram tirá-lo de sua mudez casmurra, e dali, de sua cadeira de balanço, o que as crianças ouviram foi um discurso que jamais esperariam ouvir do tio, posto que quase nunca o ouviram falar tão depressa e com tanto volume:

– Meninos, se querem saber, eu conto, eu respondo, mas com a condição de que se faça silêncio. Querem saber como é ir à guerra? Pensem em duas coisas que, provavelmente, qualquer um de vocês já deve ter vivido. Coisas da infância. Comecem esquecendo os filmes, as explosões, os mocinhos e os bandidos. Não precisam de nada disso pra imaginar como é a guerra. Para quem esse destino terrível não se imponha, espero que nenhum de vocês, moleques, tenha de ir à guerra, é bem possível de imaginarem como é o conflito, a sensação terrível do front, sem terem até mesmo estado lá. As sensações que sentimos num lugar desses é só uma forma mais avançada de certos medos e temores que já sentimos na infância. Quero que se concentrem em duas sensações que todos vocês já devem ter sentido. A primeira é semelhante a certos momentos que experimentamos também em brincadeiras de esconde-esconde. Sabe, aquele segundo em que estamos escondidinhos, atrás da janela, ou atrás do arbusto, de uma pilastra, na sombra, aquele preciso instante em que estamos escondidos e nos acomete uma vontade repentina de dar uma mijada? Talvez seja o risco de sermos descobertos, não há quem não tenha sentido isso, pelo menos por uns dez segundos quando foi criança, quando brincou de esconde-esconde, principalmente pentelhos como vocês, que ficam na rua dia e noite¹. Agora imagine essa sensação triplicada, exagerada até o grau mais agudo, essa ânsia de mijar, de dar aquela urinada, mais ou menos como quando você, meninos, ficam segurando a vontade durante o futebol inteiro, as pernas contraídas, antes de voltarem pro intervalo da aula e depois se refestelarem no mictório do banheiro, pensem nessa sensação de dar essa mijada escandalosa como se fosse algo permanente, algo que não vai embora, e que persiste durante toda batalha. Ela dura tanto tempo que você se acostuma com ela, e quando vai mijar de novo, quando vai mijar de verdade, fica parado um tempão na frente da privada, sem saber se tem mesmo algo querendo sair dali ou não. E pode acontecer até de a vontade continuar com você, mesmo depois de ter esvaziado a bexiga. Conseguem imaginar algo assim? Talvez outros tenham desfrutado a guerra de maneira mais relaxada ou prazerosa do eu, porque a guerra em que lutei, fazendo o que eu fazia… Pra alguns deve ter sido divertido, eu não duvido! E olha, nunca me chamaram de covarde. Nada disso está em jogo. Nada a ver com covardia, bravura. É tão raro alguém encontrar alguma oportunidade que seja pra provar o próprio valor… Qualquer um pode ganhar ou perder medalhas! E se essas sensações não falharam comigo, que era um soldado, eu não quero nem saber como é que deve ser com os que estão desarmados, as pessoas comuns, as que chegam a abandonar o próprio país. Pois bem, como eu dizia! A segunda sensação crianças, como eu dizia!, também deve ter já acontecido com alguns de vocês. Isso é importante. Todos devem se lembrar. Envolve você, qualquer um, menino, menina, você, a sua família, e um supermercado, ou uma feira, que seja, a festa junina, e envolve você perder-se deles. É sempre por um breve momento até que se resolva, mas a duração é o bastante para que se cogite o fato de que nos perderemos para sempre, porque há evidências, não há? Todos sempre ouvimos falar de crianças que são sequestradas e que são separadas para sempre de seus pais. Imagine que entre os soldados que lutam juntos há algum tempo, todos são a família de todos. Então é mais ou menos como quando vamos aos lugares grandes, shows, carnavais, por exemplo, e ficamos preocupados de as pessoas não irem muito longe e se perderem, porque na guerra, se elas se perderem, elas nunca voltam, os da nossa família.

1. – Esse diálogo aconteceu em 1982, o que explica que as crianças ainda brincassem na rua, e não com os seus tablets e videogames em apartamentos cinzentos.


Imagem: Robert Knox Sneden

ascenção e queda do bidê, parte 2

 

Há quem diga que o bidê, após o acoplamento da ducha, tenha se tornado o instrumento mais capaz e o maior responsável dentre os dispositivos modernos a dar uma dimensão verdadeiramente nova de significados à palavra “analógico”. O seu uso ancilar à higiene no século XX chegou até mesmo a tornar-se obrigatório em alguns países, como a Itália. Costumava instalar-se no quarto, de onde foi demovido, passando depois a habitar os banheiros. A origem da palavra vem do francês “bidet”, ou “bider”, que quer dizer “trotar” – uma óbvia comparação à posição em que montamos num cavalo sugere que também estaríamos montando este valoroso utensílio doméstico, que hoje, após a cansativa saga dos anos 80 e 90, sobrevive em grande parte dos apartamentos de classe média funcionando como um depósito de revistas velhas, em cujo acervo deveriam certamente constar algumas edições clássicas da Revista Isto É, Época, ou Veja, e Playboys da época em que vaginas ainda tinham pelos, sempre no fundo mais inalcançável da pilha de revistas que, erguendo-se de dentro do bidê, parece não ter fim. A comparação é pertinente. O coice proporcionado pela forte propulsão de alguns bidets que experimentei já me fez sentir violado.

Quando colocados ao lado da privada, em banheiros de menor espaço, distintos dos banheiros modelo europeu, podem acabar levando crianças ou idosos com problemas de vista a confundi-los com a própria privada, e as fezes, ao contrário de boiarem no confortável reservatório de água da privada, escorreriam pela fria louça do bidê antes de esvoaçarem pelo banheiro quando o defecante girasse a válvula pensando em ativar a descarga e, sem saber, desse vazão à água que, com forte impulso, saltaria pra fora do bidê, onde antes estava acostumada a entrar na cavidade anal ainda mais ou menos suja do defecante em questão e exercer ali o seu poder de limpeza, agora voaria livre, levando consigo dejetos nunca dantes vistos.

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luv, dmt, secreções ectoplásmicas & o Nepal

katmandu

“Dois anos antes, durante a primavera e o verão de 1969, morei no Nepal e estudei a língua tibetana. A onda de interesse por estudos budistas estava apenas começando, de modo que nós, que estávamos o Nepal querendo aprender tibetano, éramos um grupo unido. Meu objetivo ao estudar tibetano era diferente do da maioria dos ocidentais envolvidos com a linguagem no Nepal. Quase todos estavam interessados em algum aspecto do budismo Mahayana, ao passo que eu me sentia atraído pela tradição religiosa que antecedeu, no século XVII, a introdução do budismo no Tibete.

Essa religião pré-budista do Tibete era uma espécie de xamanismo estreitamente relacionado com o xamanismo clássico da Sibéria. O xamanismo do povo tibetano, chamado de Bön, continua a ser praticado hoje em dia na área montanhosa do Nepal que faz fronteira com o Tibete. Seus praticantes são em geral desprezados pela comunidade budista, vistos como heréticos e, geralmente, como pessoas de baixo nível.

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