quando nos reunimos para ouvir o bardo

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Bem afortunados aqueles que tiveram a chance de se emocionar, de perder os olhos e os pensamentos nas miragens de jardins distantes, enquanto viam e ouviam um bardo dedilhar na frente deles as suas canções mais memoráveis.

Que as apresentações musicais tenham sempre sido uma forma de espetáculo, isso é óbvio, e que, com o avanço inadiável da indústria cultural e da consequente cooptação de quaisquer ambições ou gozos estéticos à ordem da mercadoria programada para seus espaços específicos, sabemos, ninguém tem quaisquer dúvidas. Mas encontrar, no auge de sua consolidação, um vídeo tão singelo, tão absoluto na maneira com que perpetua o clímax afetivo que somente a escuta musical dentro de um espaço doméstico pode permitir, é, no mínimo do mínimo, inspirador. Radicalmente inspirador.

Orfeu, em sua descida ao Tártaro, arrancou com sua lira lágrimas de ferro de Hades, o rei do submundo, o mais negro dos corações dos deuses do Olimpo. José Rastelli, o menestrel que no vídeo embala os corações de seus companheiros com seu violão, é quem reinterpreta a melodia atemporal que une os laços dos personagens destes rituais: o músico e o público, seja no palco ou na sala de uma casa. Os outros, emocionados, pelo que podemos nitidamente perceber, devem, de certo, tratar-se de amigos dele. Há garrafas de vinho esvaziadas sobre uma cadeira. Um dos que ali estão, enche o copo com cerveja. Estamos duplamente embriagados, pela música e pelo álcool. O outro, ao ouvir Rastelli iniciar o tema chamado “No Jardim do Mosteiro”, arremata:

– Covardia!

É natural que alguém, ao ver o vídeo, faça uma pergunta voltada para os dias de hoje: se a cena acontecesse em 2015, quantas pessoas ali na sala estariam fuçando no celular? A resposta não importa, nem interessa. O que passou, passou. Os rituais de antanho, por mais belos e inspiradores que sejam, não podem ser reencenados à luz dos séculos vindouros. Os bardos que hoje estão em extinção recebem o mesmo diagnóstico dos rapsodos e poetas, que ainda no século XX tinham espaço para recitar na sala da casa de seu público: esse tipo de arte emociona quando afirma o valor afetivo/emocional/pessoal que reaviva naquele que a escuta. Às vezes nos lembramos de alguém ou de uma época.

Mas é claro que qualquer um com o mínimo de sensibilidade pode ser bem capaz de achar belo tanto o vídeo quanto as músicas (o olhar perdido logo no começo, enquanto um deles canta “Índia” é um convite para que deixemos transbordar). Muito mais difícil, na verdade, é encontrarmos na rotina de um cotidiano tão pedestre e miserável tempo e oportunidade para que situações assim sejam devidamente desfrutadas. Ninguém tem a sorte de contar com um músico tão competente nos ambientes que frequenta.

E rodinhas de violão existem aos montes. O bardo que arrancava lágrimas das gentes cantando sobre guerreiros e princesas de reinos longínquos, hoje, só pode ser encontrado no palco de um show, e ali, entoando as repetidas canções que pela força do hábito se firmaram na mente do público, os seus maiores sucessos reproduzidos pelas rádios, ali é alçado à estatura do ídolo, confundido com a musa, absorvido como herói, consumido como objeto, mas talvez, também, é ali e dali que, com sua linguagem, traduz pensamentos e experiências absolutamente pessoais. Interessa saber se no palco a coisa é mais ou menos falsa?

Demorar-me em reflexões estéreis é que é falso. O vídeo fala por si mesmo, e tudo ali é demasiadamente genuíno.

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