o dia em que nossa amizade não sobreviveu a uma reavaliação ideológica

peter doig

Até que acontece. Nem as previsões epistemológicas e análises dóxicas mais precisas conseguem antever o dia em que será, o assunto do qual brotará a cabal divergência – aquela decisiva opinião que será o ponto de chegada ou o ponto de partida para as carteiradas vindouras -, a germinante centelha que, espalhando-se como o fogo no cerrado, terminará incendiado os ânimos, os amigos, ou o casal, ou os pais e os filhos (caso em que o fenômeno é mais frequente, e às vezes até mesmo procurado pelas partes envolvidas), pra depois esfriá-los dentro da geladeira pra onde vão depois de mortos.

Até que acontece. Ou já somos suspeitos há algum tempo, e a patrulha à paisana está num dia muito atribulado, não nos é permitido tolerar certas transgressões, incompatibilidades, humores caprichosos e insensatos, belicosos, fleumáticos, uma distância enorme entre os lugares que habitamos nos espectros políticos e a certeza absurda de que é justamente aí que devemos firmar pé.

Até que ficou tarde pra que voltássemos atrás. É difícil reconhecer o erro perante o público. E às vezes as encruzilhadas nos dispersam – entendemos até rápido demais que não é necessário caminharmos juntos. Não é nem mesmo possível. Não há razão para um esforço que não prometa recompensas.

Mas se nem todas as desavenças são tão destrutivas, por que dar plenos poderes às desavenças políticas?

Acontece. As gentes são muitas. Umas a mais, outras a menos, em nosso generoso quadro de amizades, falta não fará. Além de tudo, as recomendações são claras: cerquemo-nos apenas daqueles que nos fazem bem.

(mas que o nosso bem dependa tanto de estarmos expostos apenas a comentários compatíveis com os nossos, isso as recomendações não previam; e quando se trata de iniciar uma amizade a partir de uma semelhança ideológica?)

As redes sociais, as arenas de confronto, o exercício do repertório, os covis pantanosos de opiniões moribundas, as gargantas tóxicas cheirando a centro acadêmico, a oferta sebosa e gratuita de milhares de argumentos muito sérios, responsáveis, íntegros o bastante para entrarem em ebulição à simples menção de seus contrários. Já está tudo claro, exposto e explicado.

Não é possível dar as mãos àqueles que estão contra nós – tal filosofia é de conhecimento público. Ninguém pretende, e nem tem motivos, pra imaginar qualquer alteração em sua máxima. É preciso rescindir contrato, abandonar o ninho, romper os laços – ações prescritas nos clichês do pacto que guarda a promessa que todo indivíduo, por motivos de sobrevivência, firma consigo mesmo naquela obscura hora noturna em que conversamos com nosso destino.

Temos de acreditar, que, entre nós, há aqueles que pensam em mundos distintos, e que procuram mundos distintos. Temos de acreditar que a virtude exige sacrifícios, e que não podemos abrir mão de uma moral profunda em benefício da superfície pálida da conveniência.

Há aqueles que vieram antes de nós, os que nos entregaram o mundo assim, como o encontramos. Há aqueles que dizem que tempos extremos exigem medidas extremas, e que as máscaras hão de cair, e que não é possível fazer um omelete sem quebrar alguns ovos.

Há aqueles que acendem uma vela pra Deus e outra pro Diabo.

Alguém havia comentado que as mulheres ficam mais bonitas sem maquiagem, na hora em que acordam; outro disse que orelhas de abano eram um problema bem mais sério do que a liberação das drogas; um terceiro, em tom ainda mais grave, asseverou sua preocupação com uma certa gosma roxa que teria sido testemunhada em pontos diferentes da cidade, ao longo de uma mesma semana; um quarto disse que seu maior medo era de ser sepultado vivo; alguém reclamou da fortuna que as gentes fazem com a tal da especulação imobiliária; as mães choraram o anúncio de uma PEC ou de um Projeto de Lei; em trajes sonolentos, uma alma caridosa cantou uma canção que todos nós já tínhamos ouvido um dia, mas que não nos era cantada há muito tempo, e por isso dela não lembrávamos; antes do amanhecer, alguém pensou ter visto um urso subir o telhado; outro, em resposta, olhando a chaleira que fervia, acusou Deus de um crime inominável; um vizinho seu, que estava próximo, discordou, atribuindo o crime ao Homem, e não a Deus.

Bêbados, não sabíamos do alcance de nossas agressões:

– A família humana não sobreviverá à moral dos novos tempos.

Mas, bêbados, esperávamos que esses novos tempos não fossem assim tão definitivos.


Imagem: Peter Doig

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