Foram duas as vezes em que sonhei com o Godzilla.
Quer dizer: eu não sei se era realmente O Godzilla. Era um monstro gigante (um kaiju, ou algo assim). Não me lembro exatamente do seu formato, se era um lagarto, um macaco, um robô, não dava pra ver. Devo dizer, aliás, que essa é a questão mais curiosa que envolve ambos os sonhos: a perspectiva.
Com exceção do filme Hospedeiro, de 2006 e Cloverfield, de 2008, desconheço qualquer outro filme sobre monstros gigantes que se preocupe tanto assim com a questão da perspectiva, o local do observador, e o ponto de onde é possível testemunhar a ação do monstro. No caso do Hospedeiro, o monstro não é tão grande; no caso de Cloverfield, é um dos maiores já retratados no cinema. Ora, pois estamos falando de criaturas que são maiores que edifícios, verdadeiros colossos abissais capazes de sacudirem um continente. De que modo elas podem se tornar terríveis, se não através de uma perspectiva que acentue o seu tamanho impressionante?
Pois bem: nos dois sonhos que eu tive, a perspectiva foi fundamental para as sensações que desfrutei ali.
No primeiro sonho, transcorrido em 2014, eu estava acompanhado de uns familiares, à toa, num dia ensolarado de férias, num rancho à beiro do rio. A paisagem é semelhante à de alguns feriados da minha adolescência. Ao longe, no horizonte, um monstro gigante destruía uma cidade. Ligávamos a televisão, recebíamos um telefonema de alguém, boatos, conversas a respeito do ataque do monstro. Discutíamos: quais eram as chances de que ele chegasse mais perto? Ouvíamos os barulhos da destruição, chegando de longe. Às vezes ficava mais intenso. Às vezes, parecia que o monstro tinha ido embora, e sua silhueta desaparecia do horizonte.
Essa foi a situação toda. O sentimento de expectativa predominou durante o sonho inteiro.
O segundo sonho eu fui ter em janeiro de 2020. A paisagem era totalmente diferente. Estávamos dentro de um edifício, como num desses prédios espelhados. Era noite, final do expediente, e os funcionários da firma faziam uma festa. O ambiente era todo feito de corredores, gabinetes, repartições. A festa se prolongava, as pessoas ficavam bêbadas, cada vez mais loucas, e começavam a dançar. A música, também, ficava mais alta.
E onde estava o monstro? Obviamente, do lado de fora do edifício, pisoteando a cidade, e às vezes colidindo com as nossas janelas, esbarrando no nosso edifício, sacudindo todos os andares. A reação não poderia ser mais absurda: nós nos divertíamos com cada sacudida, a cada investida do monstro. Gritávamos, provocando a criatura. “Vai cair!”; e “Seguuuuuuura!”. A festa não chegava ao fim.
Não sei se as duas visitas do Godzilla ao meu inconsciente têm a ver com qualquer expectativa mais ampla sobre a sociedade e o mundo. Não sei se as perspectivas diferentes indicam estados de espírito diferentes, disposições diferentes em relação aos eventos, e uma evolução do atual estado de coisas, que se expressa por sua vez numa maior proximidade do monstro no segundo sonho.
Em nenhuma das vezes, contudo, eu tive medo. Apenas um pouquinho de ansiedade.