Apresentarei neste texto duas comparações envolvendo o pensamento e a música, ambas elaboradas por filósofos cujas obras estavam dedicadas às questões mais centrais ao tema da consciência. O primeiro filósofo é o escocês David Hume, e o segundo o francês Henri Bergson – representantes de momentos filosóficos muito diferentes e no entanto participantes de uma mesma discussão, tão grande quanto interminável.
Não pretendo apresentar um resumo ou síntese das ideias de um ou de outro. Se vou apresentar duas comparações, o que farei é algo mais ou menos como comparar duas comparações diferentes. São passagens menores e não tão relevantes de suas obras, mas que, diante da curiosidade, apresentam um curioso potencial. O objetivo é, na verdade, apontar para a recorrência de certas metáforas e analogias usadas para tratar de temas para os quais não dispúnhamos – ou ainda não dispomos – de uma linguagem propriamente definida e modelada para tanto, ou seja, um idioma especializado. Os problemas da mente se confundem com os problemas da consciência que, por sua vez e num certo momento, também se confundiram com os problemas da alma. É claro que, para tentar descrever os processos mentais numa linguagem que fizesse sentido, inúmeras analogias e metáforas foram empregadas nas primeiras pesquisas sobre estes temas. Um conceito, enquanto matéria filosófica, sempre envolve uma síntese ou uma comparação em certa medida, e inúmeros insights e raciocínios, para que façam algum sentido aos nossos costumes, dependem justamente da abrangência das analogias que são colocadas em jogo. Neste caso, acho que vale a pena prestar atenção na maneira com que a música, este estranho fenômeno jamais explicado em sua totalidade, é evocado para explicar ou ilustrar os igualmente estranhos e misteriosos processos mentais relativos às impressões, aos afetos, e às sensações. Um mistério parece explicar o outro mistério ainda que ambos continuem ocultos em suas próprias medidas.
As comparações aqui mencionadas podem ser encontradas nos principais trabalhos de cada pensador. Antes de apresentá-las apontarei o caminho aberto pelas ideias de cada um deles.
David Hume (1711 – 1776), em sua obra Tratado da Natureza Humana (1739), se empenhou em apresentar um sistema filosófico total que pudesse explicar a mente, as sensações, o pensamento, a ação e a ética humana partindo do núcleo de nossa personalidade e tendo, como foco, as suas percepções, desdobradas tanto enquanto impressões como também enquanto ideias. As impressões transcorrem na dimensão das sensações. antecedem as ideias. Estas últimas, que ocorrem na dimensão das reflexões, são derivadas das primeiras. Ou seja: só formulamos ideias a partir das coisas que experimentamos de algum modo, e isso diz respeito até mesmo às nossas noções mais básicas, como por exemplo a ideia de espaço ou então qualquer outra convicção derivada de uma relação causal. Além disso, há também ideias secundárias, quer dizer, ideias que produzem imagens de si mesmas em novas ideias.
Segundo Hume, as ideias não possuiriam a mesma vivacidade ou força que as impressões, posto que estas teriam a imaginação e a memória à sua disposição para reforçarem a si mesmas constantemente. Dizendo de forma um tanto mais resumida, as memórias seriam sempre mais fortes e menos livres, posto que estariam presas à impressão de onde se originaram, ao passo a imaginação seria sempre mais livre, mas também mais fraca, uma vez que não dependeria de qualquer compromisso com a impressão original de onde partiu.
Sob essas condições nossa mente viveria permanentemente habitada por esses estados existindo numa contínua relação. Ora, isto pode muito bem se verificar no modo com que a nossa mente jamais descansa ou interrompe o seu trabalho, e um pensamento sempre desencadeia outro. Mas nossa imaginação também tem os seus limites e é dependente de uma série de outros processos mentais, sejam aqueles pelos quais um costume se firma em nossas ideias, ou mesmo a partir das relações de causa e efeito estabelecidas por outras pessoas e aceitas como corretas por nós mesmos sem que tenhamos podido experimentá-las.
A mente, assim, está em movimento permanente, e experimenta tanto sensações reverberantes quanto ideias imprecisas. Mas sob qual regência estaria o movimento ininterrupto da mente? Provavelmente nas formas pelas quais uma ideia introduz a outra, e um pensamento se assemelha a outro. Para tanto, Hume identificou três dessas formas: as relações de semelhança entre as ideias; as relações de contiguidade; e as relações de causa e efeito.
Tomemos um exemplo bastante ilustrativo, e derivado do universo da meditação: ao meditar, um indivíduo deve fechar os olhos e começar sua meditação com a atenção concentrada no esforço da inalação e exalação do ar. Dependendo da capacidade do sujeito para manter-se neste estado, essa concentração deverá durar mais ou menos o tempo em que a mente leva para poder, então, se enganchar em outro pensamento que não seja o da própria respiração. Podemos fazer este exercício nós mesmos, ou então imaginar o caso: começamos respirando e mantendo a mente atenta ao ato da respiração, mas logo um pensamento irrompe e penetra a nossa concentração. Este pensamento não surgirá do nada. Ele nasce a partir de alguma relação que se estabelece entre ideias. Prossigamos com a hipótese: pode ser que ao me concentrar na respiração eu seja levado a pensar na ideia de respiração e, pensando na ideia de respiração, eu posso ser levado a cogitar aquelas pessoas que têm problemas de respiração (relação de contiguidade). Problemas de respiração podem ser causados por doenças como de fato pudemos atestar tão tristemente nos últimos meses (relação de causa e efeito). A sensação de falta de ar, produzida em minha imaginação pela cogitação da ideia de um problema respiratório, pode me fazer pensar em outros problemas ou acontecimentos que provocam a falta de ar, como o susto, ou o cansaço (relação de semelhança). Ao final de tudo, a mera ideia de sentir falta de ar pode me produzir uma falta de ar real, e, deste modo, uma ideia pode também provocar certas sensações, desde que haja uma memória ou uma experiência que lhe sirva de substrato.
Nessa obra em particular, bastante extensa e riquíssima em seus exemplos, Hume entendeu como necessário estabelecer várias comparações, analogias, e metáforas que pudessem ilustrar ou elucidar um pouco melhor o seu sistema. Assim, numa passagem bastante conhecida, lemos que a personalidade, o eu, é basicamente uma comunidade em movimento, tamanho o grau de impermanência das nossas paixões e ideias. Isso quer dizer que o eu não é constituído de um núcleo sólido e fixo – a mente, na verdade, é um fluxo ininterrupto de associações entre ideias e paixões estimuladas pelas impressões resultantes dos nossos encontros com o mundo. Essa crítica a uma ideia de personalidade permanente, sujeito metafísico transcendente cuja forma eterna jamais seria atacada, abriria um importante caminho para o desenvolvimento de uma matéria mais psicológica, tanto mais desconfiada de uma identidade já colocada a priori, quanto mais preocupada com suas variações, impermanências, e fluxos. Assim, não foi sem razão que alguns estudiosos seduzidos pela arte da comparação enxergaram certos ecos budistas na teoria da personalidade proposta por Hume.
A filosofia de Hume, assim como a de Spinoza, também pressupõe acordos morais e éticos. A preferência que o filósofo escocês deu às experiências, e a dependência que nossos juízos e ações fazem dela, certamente contribuiu para a classificação que a história da filosofia fez dele, um cético polêmico. Deste ceticismo, contudo, Hume extraiu este que seria um método para lidar com assuntos morais, redefinindo uma ética pessoal bastante liberal na medida em que evidencia os limites dos nossos juízos.
Mas o filósofo escocês elaborou uma outra comparação, mais modesta e menos definitiva, e também menos famosa do que aquela mencionada acima, e que diz respeito às qualidades da música – esta é a comparação que nos interessa aqui. Nela, o filósofo compara o funcionamento da mente, sobretudo no que diz respeito à presença das paixões, à ressonância dos instrumentos de corda.
Ora, se considerarmos a mente humana, veremos que, no que diz respeito às paixões, sua natureza não é a de um instrumento de sopro, que, quando percorridas suas notas, perde imediatamente o som assim que cessa a respiração; assemelha-se antes a um instrumento de cordas, em que, após cada toque, as vibrações continuam retendo algum som, que se extingue gradual e insensivelmente. A imaginação é extremamente rápida e ágil, mas as paixões são lentas e obstinadas. [Editora Unesp, tradução de Debora Danowski]
Gostaria de fazer um comentário sobre essa comparação, procurando descortinar, aí, um insight relevante e mais contemporâneo sobre o ritmo, a melodia e a harmonia da mente – os três elementos rudimentares da música. Acho que Hume não imaginava, em sua época, que, assim como o som, também o funcionamento da mente viria a ser medido pelas suas ondas, em sua frequência.
É difícil medir o grau de importância que há na relação entre a mente e o instrumento. Não falo aqui de um instrumento musical apenas, mas da própria noção de um instrumento apto para auxiliar o ser humano em uma ação. A pedra lascada, a pedra polida, um cinzel, um machado, uma flauta. Sabemos que o cérebro atual é uma decorrência do grau de interação que a nossa espécie passou a estabelecer com os instrumentos que ela começou a inventar em determinado momento de sua pré-história. A cultura humana, nossa linguagem, nossa capacidade de abstração e representação são derivações de uma inteligência que aprendeu a manipular a matéria e a delimitar objetos no espaço. A mera comparação da mente humana com um instrumento, enquanto um artifício filosófico, é, em tese, uma demonstração dos modos pelos quais a inteligência está sulcada numa relação instrumental com o mundo. Hume não percebeu isso, mas Bergson sim – como veremos.
De qualquer modo, a mente está preparada para fabricar e performar com todos os instrumentos que conhecemos. Com exceção da nossa própria voz e do nosso próprio corpo, não há nenhum instrumento disponível de maneira já pronta e acabada na natureza – todos os instrumentos são invenções materiais da cultura humana. Mas isso não sugere que outros animais não inventem seus próprios instrumentos ou que não portem instrumentos físicos – e que toda sua capacidade de comunicação não seja, mesmo, musical. Dizer que somos capazes de tocar instrumentos já implica uma relação de correspondência e adequação entre as dimensões da mente e as possibilidades físicas do objeto, uma vez que ele foi modelado pela vontade humana para produzir um determinado efeito. Todavia, isso não quer dizer que o funcionamento da mente seja verdadeiramente análogo ao de qualquer instrumento. Isto seria colocar numa situação de equivalência o funcionamento do corpo do inventor com o funcionamento do corpo inventado. A analogia falha na medida em que reporta ao vício da inteligência: a apreensão de uma coisa a partir de sua instrumentalização. Vício da finalidade, vício mecânico – não seria a inteligência, também, um instrumento? Imagino, ao contrário, que cada instrumento seja responsável por estimular um determinado aspecto da mente, como se pode observar na diferença de natureza entre um instrumento de percussão e um instrumento de cordas. Acho que isso não se limita às camadas estruturais que a mente pode acessar na composição da música, mas no grau com que a música pode passar a habitar uma camada interior de ressonância do ser humano através da simbiose entre o instrumento e o ser – o instrumento enquanto extensão.
A primeira questão concernente à comparação feita por Hume, mais óbvia, diz respeito aos instrumentos escolhidos pelo filósofo: sopro e cordas, são, afinal, os instrumentos mais básicos de uma orquestra. A música de concerto tem o seu auge no século de Hume. Que uma tal comparação não coloque em jogo os instrumentos percussivos – praticamente irrelevantes na música europeia do período – é compreensível, mas por que não comparar a mente com um cravo (ou piano), cujas notas podem ressoar com tanta propriedade quanto aquelas de um instrumento de corda? O fator em torno do qual se produz a comparação é o efeito de reverberação gerado pelos instrumentos de corda, o que não se verifica nos instrumentos de sopro. Aqui, no caso, não importa se o som produzido está estruturado em torno de uma melodia ou de uma harmonia, mas cabe verificar que um instrumento de sopro não pode produzir harmonia sem que disponha de outros instrumentos como acompanhamento. Um instrumento de corda, menos limitado nesse aspecto, é plenamente capaz de expressar uma harmonia, mas talvez não de forma tão perfeita quanto um piano. Um piano, na verdade, tanto porque é corda e percussão ao mesmo tempo, parece de alguma forma ainda mais completo que um instrumento de corda, posto que na operação das duas mãos, há uma possibilidade harmônica mais ampla – a harmonia e a melodia, o canto e o acompanhamento, são possíveis neste mesmo instrumento, simultaneamente.
Podemos esmiuçar ainda mais essa comparação, se quisermos afirmar que a mente é ao mesmo tempo menos e mais que a música. Uma vez abolidos todos os critérios do que define a música, qualquer movimento cerebral de ondas pode se traduzir em pelo menos algum dos aspectos estruturais da música. Se a analogia não se esgota na brevidade de seus termos, e não recorremos aqui ao conhecimento especializado produzido pela neurociência, quais seriam as melodias, harmonias, e ritmos da mente? Note-se que a divisão da música segundo essa estrutura tríplice é um evento da inteligência humana, e o nível de sua arbitrariedade pode estar no mesmo lugar da sua datação: até que ponto o mundo dos sons pode ser reduzido a isso? E quando não falamos apenas do mundo dos sons, mas da totalidade fenomênica do que se passa em nossa mente? As melodias poderiam ser aqueles pensamentos imediatos que figuram na nossa placa mental e a partir dos quais operamos e agimos. Quando agimos decididamente, de forma atenta, concentrada, e sóbria, as melodias se tornam melhor definidas. Como não temos a capacidade de pensar em várias coisas ao mesmo tempo, mesmo que passemos o mais rápido possível de um pensamento ao outro, e um monte de características possam se fundir em uma mesma imagem, pensamos cada coisa de uma vez, a melodia aparece tal como ela é, de forma linear, assim como o encadeamento de um pensamento nos pensamentos conseguintes. Tal e qual o improviso de um músico, grande parte do nosso pensamento se produz de forma involuntária, sem que deliberemos a todo momento. A harmonia bem poderia ser a disposição de ânimo, o conjunto mais próximo de sensações e ideias com as quais determinados pensamentos e sensações se harmonizam. Ou melhor, também poderiam ser aquelas sensações e ideias de fundo, que se apresentam numa outra velocidade e, de algum modo, se compõem com a melodia (o pensamento linear), formando, às vezes um baixo. Neste caso, teríamos um controle ainda menor sobre a harmonia se comparado com aquele que temos sobre a melodia.
Parece-me, aliás, e de algum modo, que, para o bom desempenho de grande parte de nossas ações no mundo, devemos sempre levar em consideração um certo grau de harmonia. Uma boa ação, ou um gesto bem desempenhado, sempre se harmoniza com alguma outra coisa, anterior, simultânea, ou mesmo posterior. Quanto mais virtuoso parece ser um artista no domínio de sua técnica, ou quando mais precisos são os movimentos de um atleta, mais harmônicos eles nos parecem. Hume, aqui, certamente diria que a harmonia toma como referência um certo grau de perfeição que passamos a definir para todas essas tarefas, e que uma tal definição responde, afinal, à própria ideia que fazemos de algo perfeito. Mas sabemos que a ideia de perfeição não responde necessariamente a uma noção de beleza. A perfeição é o grau de ajustamento, de adequação, de encaixe entre uma expectativa e a sua realização, vista, por exemplo, na maneira com que o tijolo sai do molde. E os critérios estabelecidos para tanto, uma vez colocados para julgar algo como uma música, ou qualquer outra obra de arte, seriam unicamente pautados pelos costumes. O próprio Hume define a harmonia como a proporção entre as partes. Isso pode se revelar na decoração de uma sala, nas medidas de um corpo, ou no andamento de um tema musical. Hoje em dia, séculos depois, nutrimos uma certa desconfiança em relação a qualquer possibilidade de algo tido universalmente como belo ou harmônico. Tal ideia, a ideia da qual se forma nossa desconfiança, portanto, depende de uma outra noção, e que é a noção de algo cujo valor é sempre relativo.
Mas e o ritmo? Enquanto terceiro elemento estrutural da música, a partir de qual analogia poderíamos vislumbrar o ritmo na nossa mente? Talvez esta seja a analogia mais fácil de todas, ou, melhor ainda, talvez nem seja necessário raciocinar de forma analógica, posto que o ritmo das ondas cerebrais é real, mensurável e determina todo o funcionamento do órgão – e consequentemente, também do próprio corpo. O sono e a vigília se diferenciam, afinal, pelo ritmo e frequência das ondas cerebrais.
Precisamente aqui, no momento em que passamos a falar do ritmo, julgo conveniente apresentar algumas das ideias do outro filósofo também mencionado neste texto.
Henri Bergson (1859-1941) possui uma trajetória prodigiosa e seus trabalhos dialogam com vários campos do conhecimento, passando pela psicologia, biologia e física. Seu principal trabalho filosófico é a obra A Evolução Criadora (1907). Ali, o pensador francês se dedica a uma profunda reflexão sobre o impulso criador da vida, os caminhos encontrados pela evolução vegetal e animal, e os meios pelos quais a consciência direciona essa evolução ao tempo em que também é um resultado dela. Uma obra dessa magnitude também foi responsável por revisar certos paradigmas provenientes da biologia e da física julgados insuficientes para a compreensão do fluxo contínuo da vida, através do qual se desdobra o próprio espaço e o próprio tempo. Assim, uma crítica à teoria mecanicista e ao paradigma finalista abriu caminho para uma nova metafísica que enxergasse o universo não nos seus movimentos parados, como captados por uma câmera fotográfica, mas justamente na produção contínua de suas novidades. O insight revelador aqui aponta para a maneira com que matéria e vida se encontram e interagem – a evolução é uma luta contínua da consciência contra os limites colocados pela matéria.
Entre os conceitos fundamentais expostos nessa obra consta a ideia de duração. Ora, a duração não é nada menos do que a própria consciência desdobrada ao longo de um continuum temporal e dentro do qual ela experimenta inúmeras variações de estado. Estes estados não existem separados um do outro, ainda que a nossa atenção se restrinja apenas a estes momentos em que eles se encontram isolados ou então, como é o caso, melhor definidos para a nossa própria apreensão. Mas o fato é que as variações são contínuas e, sob as condições do presente, elas perpetuam o passado. Isso quer dizer, em outras palavras, que toda variação presente existe por sobre as condições herdadas do passado.
Imaginemos o seguinte exemplo: ao experimentar a tristeza produzida por uma decepção amorosa, numa determinada etapa da vida adulta, certamente irei comparar essa tristeza com as outras tristezas produzidas por outras decepções amorosas vividas anteriormente, quando eu era mais jovem. Assim, a personalidade, o eu, existe enquanto um vínculo continuo que ata todas essas variações numa sequência linear e duradoura. O fato de que eu já tenha experimentado outras decepções amorosas diminui o ineditismo desta nova decepção. Todavia, na medida em que esta nova decepção se acrescenta às outras decepções acumuladas, ela também traz consigo algo de novo, posto que esse acúmulo de decepções do qual disponho em meu reservatório emocional não é, absolutamente, o mesmo de quando eu era jovem (quando este reservatório era bem menor e não continha os resíduos de todas as outras decepções amorosas vividas até o presente atual).
Todas as decepções amorosas anteriores produziram, também, certa variação no meu estado anímico. Mas essas decepções estão intercaladas em vários outros momentos de alegria, riso e satisfação. É natural que eu tenha passado por um e por outro carregando comigo os resíduos de um e de outro. Assim, ao me deparar, hoje em dia, com um filme que trata de uma comédia romântica, posso ser levado a rememorar aquela minha decepção, podendo chegar a rir daquele mesmo motivo que em algum outro momento me fez chorar, e esse estado produzido pelo riso pode vir a modificar a relação que guardo com a memória daquela decepção, redefinindo o seu significado para as próximas decepções que se apresentarem.
Minha explicação, contudo, ainda é muito limitada perto daquilo que sugere o filósofo francês, posto que ainda estou me concentrando nos episódios isolados das variações, e, mais ainda, nos momentos em que estas variações se encontram melhor definidas. E a comparação sugerida por Bergson, que também recorre tal e qual a de Hume ao universo musical, é também muito singela diante da sofisticação de suas ideias. Vejamos como ela se apresenta:
Quer dizer que não há diferença essencial entre passar de um estado a outro e persistir no mesmo. Se o estado que “permanece o mesmo” é mais variado do que supomos, inversamente a passagem de um estado para outro é mais semelhante do que se imagina ao prolongamento de um único estado; a transição é contínua. Mas, precisamente porque fechamos os olhos à variação incessante de cada estado psicológico, somos obrigados, quando a variação se torna tão considerável que se impõe à nossa atenção, a falar como se um novo estado tivesse vindo justapor ao anterior. E igualmente supomos este invariável, e assim indefinidamente. A aparente descontinuidade da vida psicológica resulta, portanto, de a nossa atenção se fixar sobre ela por meio de uma série de atos descontínuos: ali onde somente existe um plano levemente inclinado, a linha quebrada de nossos atos de atenção faz-nos ver os degraus duma escada. Mil incidentes surgem, parecendo destacar-se daquilo que os precede, e não se ligar ao que vem depois. Mas a descontinuidade com que surgem os faz destacar-se sobre um fundo contínuo em que se desenham e ao qual se devem os próprios intervalos que os separam: são como os tambores tocando de quando em quando em uma sinfonia. A nossa atenção fixa-se sobre eles porque a interessam mais, mas cada um deles é arrastado na massa fluida de toda a nossa existência psicológica. Cada um deles não é mais do que o ponto mais bem iluminado de uma zona movente que compreende tudo o que sentimos, pensamos, queremos, em suma, tudo o que somos num momento dado. [Editora Unesp, tradução de Adolfo Casais Monteiro]
Como vemos, a sua comparação “percussiva” não diz tanto respeito ao funcionamento da mente em si mesma, mas à maneira com que nós percebemos o funcionamento da mente, ou seja, de forma limitada, segundo aquilo que o filósofo chama de mecanismo cinematográfico. À semelhança de uma câmera, esse mecanismo concentra sua atenção nos episódios mais marcantes, isolando-os numa sequência temporal. A comparação, portanto, diz respeito a uma limitação. Existe uma orquestra, mas nossa atenção fica retida em certos movimentos específicos dessa orquestra: o toque dos tambores, no caso.
Assim como o eu é algo como uma comunidade, poderia, a mente, ser algo próximo de uma orquestra? Não há, para os propósitos da comparação, nenhuma diferença semântica entre uma comunidade e uma orquestra, mas acho que aqui a comparação perde um pouco de seu efeito porque a mente não pode ser tão polivalente quanto qualquer uma das duas – uma vez que a própria orquestra ou a comunidade são o resultado de uma reunião de muitas mentes. É certo que vários processos cerebrais ocorrem simultaneamente, e até de forma involuntária, mas a atenção e a imaginação estão limitados à unidade do órgão. Temos uma melodia (o nosso pensamento imediato), colocada sobre uma harmonia (as sensações de fundo que ressoam para além das nossas vontades), organizada em torno de um ritmo (sobre o qual temos apenas algum controle de indução em determinados momentos). A melodia responde à harmonia que, na companhia do ritmo, atuam como seus condicionantes. Pensando de forma analógica, podemos considerar que essa relação é proporcional à relação do nosso eu consigo mesmo, o ajuste de uma camada de nossa identidade à outra, os aspectos ressonantes de nosso agregado composto de identidades e ações que se modulam a partir dos estímulos recebidos do ambiente.
Não estamos considerando, portanto, o elemento social da música. Poderíamos nos perguntar de onde ela se origina, a quais funções ela cumpre, que espaços e dimensões sociais ela preenche. Certamente a história da música poderia oferecer inúmeras respostas possíveis a essas perguntas. Mas, enquanto enxergamos a música como um correlato da psiquê, desvinculada da sua realização histórica e sociológica, ela perde a sua singularidade, e parece ser capaz de traduzir em sua ordem e grandeza os outros eventos do mundo, assim como somos levados a dizer que o giro das galáxias é uma dança – como se fosse possível, com isso, evidenciar um novo ponto de vista, um novo perspectivismo ultra-material em que as coisas do mundo, preenchidas de uma nova intenção, revelassem as suas harmonias e melodias ocultas. Mas o tempo, como sugere Bergson, é sempre psicológico, e o Universo, como sugere a primeira lei de Hermes Trismegisto, é mental.
Qual seria, portanto, na minha imaginação, o instrumento mais apropriado para a comparação sugerida pelos dois filósofos, Hume e Bergson? Talvez que se terminarmos discutindo os gêneros dos instrumentos, os efeitos comparativos do insight percam um pouco de seu efeito. Não quero falar de instrumentos de corda ou de percussão, mas um de um instrumento específico. Ainda que tratemos de metáforas musicais, grande parte do nosso vocabulário voltado para a descrição do mundo físico depende de metáforas visuais. A ordenação da música segundo uma razão inteligente já depõe a favor da afinidade entre o modelo e a coisa em si. Falamos, aqui, das variações da mente e da persistência de algumas sensações que continuam reverberando em nossa personalidade. Acredito, que, sob estas formas, talvez o sitar indiano seja o mais apropriado nas suas dimensões e efeitos em virtude de sua microtonalidade, e porque a sua melodia emerge de um fundo ressonante que se assemelha aos estados contemplativos e meditativos. A estrutura musical do raga indiano pode ser ouvida como uma realização da própria consciência meditativa, uma vez que ela consiste nas variações sobre determinados temas. Essa forma bastante simples e antiga parece ocultar as complexidades que brotam dos seus improvisos, ao mesmo tempo em que não se restringe às fórmulas musicais mais condensadas num determinado limite temporal ou rítmico – já que também há pequenas variações rítmicas ao longo do raga. A dimensão intuitiva do ritmo aparece muito bem preservada aqui, como se um tempo se manifestasse dentro do tempo, sempre enquanto condicionante, sustentando uma tensão constante do condicionado. A vasta possibilidade de seus compassos, e a própria complexidade material do instrumento (as cordas ressonantes, por exemplo, criam uma harmonia a partir da melodia sem que a vontade do músico interfira) também contribuem para uma a interioridade expansiva de seu efeito – um dos efeitos mais cruciais da música, quando ela redefine o espaço segundo uma ordem interior. A harmonia, no caso, não é resultado de uma proporção geométrica entre os corpos em movimento no espaço, ela é um espaço intuitivo nascido da centralidade do eu, o próprio lugar de onde emerge a compreensão tonal do qual todo o improviso depende. A harmonia se encontra na criação de um espaço segundo suas próprias regras – colocado sempre como interior à consciência. É compreensível que a música indiana seja, portanto, bastante expressiva. Uma arte que se volta tão fundo para seu interior encontra sempre o máximo de expressão. Seu conteúdo se localiza ao mesmo tempo entre o abstrato e o figurado, posto que também procura sintonizar a mente com certas paisagens da natureza: o raga da manhã, o raga da tarde, o raga da noite.
Qualquer um que esteja mais dedicado às atividades do pensamento e da imaginação deve ter se deparado, em algum momento, com os limites da mente, para além dos quais se torna difícil ou até mesmo impossível avançar. Um desafio frequente, que serve como demonstração dos limites mais óbvios e mais claros da nossa imaginação, diz respeito à possibilidade de imaginarmos uma cor que não exista. Quem é que pode realmente imaginar uma cor que não existe? Quando, e como seria possível contemplar, mentalmente, a ideia de uma cor que nunca pudemos experimentar? Ora, se existe alguma instância em que isso é possível, ela se encontra dentro das dimensões do fenômeno musical. É por meio da música que podemos não apenas imaginar cores que não existem, mas experimentá-las de forma contemplativa. Por isso não parece nem um pouco estranho que o músico indiano Ravi Shankar tenha sugerido que o raga seja um tipo de cor mental do sujeito que o executa. Transcrevo algumas palavras suas:
“Você não deve tratar o raga como se ele fosse o seu servo. Você deve mergulhar nos seus mistérios, dedicar-se totalmente ao seu espírito e permitir que ele se expresse através de você. O raga também implica uma cor, como Rabindranath Tagore observou. É a cor da sua mente. É a cor com que você pinta a mente dos outros também. O raga, portanto, transmite calor para aqueles que te ouvem e une tanto o músico quanto o ouvinte num laço de amor e êxtase“.
Talvez a duração do eu guarde mesmo alguma semelhança com o raga indiano, mas não só. A ideia de um eu articulado em torno das suas variações parece apontar para uma ideia muito antiga a respeito da impermanência, já formulada pelos filósofos pré-socráticos. Aquela impermanência, expressa na comparação do devir universal com o fluxo do rio, se dá dentro de suas margens limitadas e corre sempre numa direção.
A música racionalizada também é um trabalho pré-socrático. Se a música, para os pitagóricos, podia expressar simbolicamente a perfeição das proporções, e, nessas proporções, a razão cósmica da perfeição da criação, poderíamos verificar também nos aspectos musicais da nossa mente uma continuidade muito mais abstrata e imprecisa do movimento universal: uma imanência total e indistinta. A anedota bastante famosa em que se narra a descoberta das proporções das notas, vivida pelo personagem Pitágoras, é explícita: o filósofo, próximo de uma forja, ouvia o ferreiro martelar o ferro sobre a bigorna, e percebia que, dependendo do lugar onde o martelo batia, o som era mais agudo ou mais grave. O raciocínio funciona de maneira analógica, e salta de um instrumento para o outro: a inteligência é, afinal, a manipulação dos objetos sólidos no espaço. A descoberta de Pitágoras revelou a ele o valor das proporções, instituindo formalmente o sentido de uma harmonia, colocada na perfeição dos intervalos: tal e qual os trastes colocados no braço de um violão. Mas o sentimento de harmonia não pode deixar de ser arbitrário, posto que há outros infinitos intervalos invisíveis à inteligência humana, todos colocados de forma impermanente no movimento ininterrupto do universo. O movimento é, afinal, segundo Nietzsche, a única coisa de imortal que existe, e não seria possível que a música existisse, pois, sem movimento – sem a ordenação do tempo dentro do espaço.
Retornemos, portanto, à gênese dos instrumentos e à invenção da cultura material. Podemos discernir a função de alguns instrumentos inventados pela nossa espécie: as funções do martelo, do machado, da colher etc. A função de um instrumento musical é, certamente, a de fazer música, mas e a função da música, qual seria?
Talvez essas comparações sejam proveitosas e apontem para uma mesma realidade, as sintonias e afinidades possíveis entre a mente e o fluxo ininterrupto da matéria. Na medida em que a música parece revelar uma certa ordem ocasional imposta ou nascida deste movimento, ela se sintoniza vez ou outra com o ritmo, a melodia, e a harmonia da nossa própria mente (uma outra forma de música interna), de onde ela mesmo nasce. Mas é mesmo da mente que ela nasce, ou é na mente que ela se organiza? E qual é o papel das nossas percepções na organização do material sonoro? O instrumento musical é um instrumento de navegação no tempo, talvez uma de suas funções mais primitivas seja a de modular algumas tendências musicais já expressas no choro ou no riso, pulsões naturais da vida em comunidade. Ele, o instrumento musical, é, provavelmente, o único instrumento que inventamos para isso, para navegar no tempo. É a partir do entrelaçamento de harmonia, melodia e ritmo que adquirimos uma melhor capacidade para navegar. A navegação no tempo se dá, é claro, a partir da própria invenção de um outro tempo que se destaca do fluxo interminável daquilo que não é música, o mundo anterior e posterior a uma execução sonora, o mundo anterior ao choro e o mundo anterior ao riso – nossos comportamentos mais eficientes quando se trata de abolir o tempo.
Por isso, talvez, algumas músicas sejam mesmo tão viciantes. Porque a harmonia produz algum prazer, e o vício é, segundo Buda, a memória do prazer.
Adendo: se nossas comparações levassem em consideração o papel da informação dentro da estrutura musical, e o grau com que a música também expressa uma certa individuação colocada entre as ordens de grandeza dadas pelo tempo e pelo cromatismo, não poderíamos deixar de lado a música eletrônica. Mas em que medida a música eletrônica insere inovações no fenômeno da música, e como ela pode aprofundar ainda mais o nosso insight? Modulação e disparo. A invenção do loop, do sequenciamento, um controle maior sobre as ondas, são invenções que podem incrementar a nossa consciência e o nosso entendimento sobre o que vem a ser a música – as formas pelas quais podemos desenhá-la e interpretá-la. A música eletrônica substitui o instrumento pela computabilidade. Ela exaure a dimensão intuitiva e corporal do instrumento físico, acessível em sua materialidade, concentrando-se exclusivamente na inteligência informada. Apesar do seu enorme potencial, todavia, os instrumentos puramente eletrônicos fracassariam na nossa comparação devido à necessidade que eles têm de uma programação. Assim, podemos questionar a própria estrutura da comparação que temos feito esse tempo todo: se a mente é um instrumento, quem é o músico que toca o instrumento? O eu é maior ou menor que a mente? Somos tocados por ela ou estamos tocando-a? Não será possível encontrar respostas satisfatórias para essas perguntas porque a comparação possui um limite em si mesma e sua função não é traduzir perfeitamente uma realidade em outra, mas apenas lançar alguma luz sobre a nossa intuição.
Imagem: Nu Descendo uma Escada, Marcel Duchamp.
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