a filosofia surgiu na grécia antiga?

Em virtude dos avanços necessários dos estudos decoloniais, a pergunta em torno da origem da filosofia tem sido feita com cada vez mais frequência. Diante disso, temos observado os esforços intelectuais de pensadores que afirmam que a filosofia grega não é a primeira, e nem a única filosofia do mundo – mas apenas uma dentre outras filosofias. Esta afirmação vem carregada de uma acusação na qual se cruzam diferentes fatores históricos, sociológicos, epistêmicos, e segundo a qual a narrativa que entrega aos gregos a autoria da filosofia é, na verdade, uma narrativa eurocêntrica que contribuiu para descaracterizar e apagar o legado cultural de povos como os egípcios, por exemplo.

A acusação de epistemicídio e apagamento é fundada na suposição, inteiramente correta, de que os séculos do colonialismo, neste processo de apagamento, acabou definindo uma hierarquia epistêmica cujo centro é a textualidade e a razão europeia moderna. No edifício desta hierarquia, a filosofia grega seria tomada como um ponto de partida original da ciência ocidental – uma trajetória ao longo da qual a crítica decolonial encontra uma série de construções históricas que ocultam o parentesco da filosofia grega com outras expressões culturais circunvizinhas. Mas o aspecto mais importante desta crítica, acredito, tem a ver com a sua capacidade para trazer à baila uma variedade de outras tradições e expressões do conhecimento humano que não se dobram às matrizes definidas pela modernidade europeia.

Tendo em vista estes sucedâneos mais recentes da crítica cultural e histórica, a pergunta, o seu motivo, e o seu significado, adquirem uma maior clareza. A questão “a filosofia nasceu na Grécia Antiga?” na verdade não quer ser respondida, porque sabemos que a pergunta em si não é tão relevante – o que ela pretende é denunciar as outras formas de saber que foram apagadas pela história, posto que isso que chamamos de “filosofia” é um constructo recente que serviu de parâmetro e referência a partir da qual julgamos todas as outras “candidatas a filosofia”. Considerando esta denúncia, a “originalidade” da filosofia grega perderia o seu valor singular, e ela seria apenas mais uma outra sabedoria colocada ao lado de um repositório humano comum. Todavia, esta tentativa mais plural de estabelecer uma vizinhança de filosofias, por mais bem intencionada que seja, traz consigo alguns problemas graves para o próprio estudo da história e da filosofia.

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o pensamento enquanto música

Apresentarei neste texto duas comparações envolvendo o pensamento e a música, ambas elaboradas por filósofos cujas obras estavam dedicadas às questões mais centrais ao tema da consciência. O primeiro filósofo é o escocês David Hume, e o segundo o francês Henri Bergson – representantes de momentos filosóficos muito diferentes e no entanto participantes de uma mesma discussão, tão grande quanto interminável.

Não pretendo apresentar um resumo ou síntese das ideias de um ou de outro. Se vou apresentar duas comparações, o que farei é algo mais ou menos como comparar duas comparações diferentes. São passagens menores e não tão relevantes de suas obras, mas que, diante da curiosidade, apresentam um curioso potencial. O objetivo é, na verdade, apontar para a recorrência de certas metáforas e analogias usadas para tratar de temas para os quais não dispúnhamos – ou ainda não dispomos – de uma linguagem propriamente definida e modelada para tanto, ou seja, um idioma especializado. Os problemas da mente se confundem com os problemas da consciência que, por sua vez e num certo momento, também se confundiram com os problemas da alma. É claro que, para tentar descrever os processos mentais numa linguagem que fizesse sentido, inúmeras analogias e metáforas foram empregadas nas primeiras pesquisas sobre estes temas. Um conceito, enquanto matéria filosófica, sempre envolve uma síntese ou uma comparação em certa medida, e inúmeros insights e raciocínios, para que façam algum sentido aos nossos costumes, dependem justamente da abrangência das analogias que são colocadas em jogo. Neste caso, acho que vale a pena prestar atenção na maneira com que a música, este estranho fenômeno jamais explicado em sua totalidade, é evocado para explicar ou ilustrar os igualmente estranhos e misteriosos processos mentais relativos às impressões, aos afetos, e às sensações. Um mistério parece explicar o outro mistério ainda que ambos continuem ocultos em suas próprias medidas.

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pequeno ensaio sobre o homem-formiga

Seria possível realizar mentalmente os poderes do Homem-Formiga?

Imaginemos a sua figura.

Imaginemos o Homem-Formiga tornando-se infinitamente pequeno, reduzindo seu tamanho.

A cada segundo, metade do que era.

Consideremos, então, a pequenez. A pequenez enquanto um delírio. O delírio de alguém que se põe a admirar a sua criação em seus mínimos detalhes. Um artífice, um matemático, um arquiteto, um filósofo. É preciso diminuir o tamanho do pensamento, dobrá-lo sobre si mesmo, reduzi-lo a uma simulação microscópica de si mesmo.

A vontade que cria o superpoder do Homem-Formiga é a da sabotagem e da infiltração. Uma ideia microscópica poderia imiscuir-se no pensamento de alguém. Sem que se perceba. A sabotagem depende de frestas e de falhas que tornam a estrutura vulnerável. O Homem-Formiga tem a possibilidade de verificar de perto a estreiteza, e a espessura de cada fresta de seu próprio pensamento.

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