Confúcio sempre foi e continua sendo um perfeito exemplo de como a filosofia chinesa é profundamente diferente da filosofia ocidental. É muito provável que qualquer cidadão brasileiro com um grau médio de letramento já tenha ouvido falar do sábio chinês ou tenha se deparado, então, com alguns de seus ensinamentos e máximas. E, ao passo que a filosofia ocidental progrediu construindo sistemas muitíssimo elaborados de compreensão do mundo e dos seres humanos, a filosofia chinesa se perpetuou através da prática dos seus comentaristas. Assim, a busca pela formulação de um sistema mais original e mais completo que o de seus antecessores, como se tornou comum no ocidente, sobretudo a partir da entrada da Europa na modernidade, não cabia na tradição da filosofia chinesa – cujo sentido compreendia uma reverência quase que absoluta ao clássicos. Deste modo, mais importante do que inventar uma nova possibilidade de significado, convinha interpretar e esclarecer aqueles ensinamentos trazidos ao mundo pelas palavras dos antigos mestres. No caso de Confúcio essa sabedoria, cristalina e simples, encontra grande lastro na literatura de auto-ajuda atual. Sem qualquer preconceito ou prejuízo, há, de fato, uma afinidade possível entre aquilo que os velhos mestres tinham para ensinar, e aquilo que os leitores de hoje em dia buscam para acrescentar às suas vidas. Veremos neste pequeno texto como que essas afinidades são mais amplas do que imaginamos, e às vezes até um tanto divertidas.
A leitura dos textos de filosofia chinesa nunca se desdobrou num método de leitura tão racionalmente obcecado como o dos ocidentais. É verdade que essa obsessão, maravilhosa em seus desenvolvimentos, favoreceu uma miríade de articulações de pensamento imbuídas de ceticismo e dedicadas a desvendar as limitações de suas próprias leituras e entendimentos, permitindo, então, que alguns campos filosóficos florescessem precisamente por conta das incertezas: a hermenêutica e a epistemologia são algumas destas áreas inseminadas pelos problemas típicos da mente ocidental. Não cabia, portanto, para os orientais, pensar o próprio pensamento – ainda que algumas práticas de meditação efetuassem exatamente isso. A esta característica própria do pensar, acrescentamos a diferença entre os idiomas: o chinês antigo era claro e conciso, e não abria tanto espaço assim para argumentações. Não havia, para o filósofo do extremo oriente, a necessidade de sustentar uma tese ou defendê-la de seus opositores. Nada parecerá mais estranho à filosofia ocidental, arvorada nas suas dialéticas e escolásticas, do que a simplicidade das palavras de Confúcio, principalmente se temos em vista o fato de que esta simplicidade, que já alcança dois milênios, continua a render comentários riquíssimos da parte de seus leitores.
Confúcio teria vivido entre 551 e 479 a.C. Assim como os seus discípulos e futuros comentadores, ele tampouco se dedicou à elaboração de um pensamento original, preocupando-se muito mais em preservar os ritos e os conhecimentos que, à sua época, já eram clássicos. Se ele assim o fez, deixando uma marca original na história do pensamento, foi, provavelmente, por acidente, um efeito colateral de sua dedicação. Essa preocupação, portanto, não o impediu de dar origem a uma nova escola de pensamento e ação. Sua obra tornou-se um pilar da educação pública, tomada como referência desde o século II d.C, e voltada para a formação de sujeitos virtuosos em suas ações e no trato com os seus familiares, amigos, e, principalmente, com o Estado (instância que indica a abstração em prol de um bem comum). A filosofia de Confúcio, nada especulativa, tornou-se, nas dinastias Han e Tang, uma filosofia de Estado, posto que visava a edificação de relações harmônicas entre os indivíduos e no exercício da virtude da parte também de seus governantes. Esta formação dependeria, é claro, de uma séria dedicação ao estudo dos clássicos, e na manutenção dos ritos e das tradições. Assim como Platão esteve, num determinado momento de sua filosofia, interessado na formação de líderes justos e sensatos, todo o trabalho de Confúcio na formação de seus discípulos seguiu a intenção de formar bons funcionários, burocratas, administradores e futuros bons governantes, uma vez que seria praticamente impossível reformar o caráter de um governante que já estivesse investido no seu exercício do poder. Este trabalho, cristalizado em obra, e convertido em referência (como um tipo de vestibular) para as admissões de novos funcionários a partir da dinastia Han, chegou a ser execrado durante a Revolução Cultural no século XX, tendo, finalmente, retornado à sua posição central no seio da sociedade chinesa contemporânea – não sem sofrer, é claro, algumas operações necessárias.
Talvez, à revelia dos desencontros culturais, essa filosofia nos pareça um tanto dura, seca, rígida, sisuda. Isso também pode ter a ver com o legado construído por alguns de seus comentadores, dentre eles Xunzi e Mêncio. O primeiro, mais do que o segundo, teria contribuído para uma visão um tanto pessimista da humanidade, cuja conduta poderia ser reconduzida arbitrariamente. Encontramos na figura dos provadores de vinagre uma representação estética à altura dessa filosofia. O tema se repete na tradição pictórica chinesa: os três fundadores das principais filosofias da China, Buda, Lao Tsé e Confúcio, estão diante de um caldeirão de vinagre. A expressão no rosto de cada um deles indica a maneira com que eles sentem e compreendem tanto o sabor do vinagre quanto a vida (para a qual o vinagre serve de analogia). A expressão no rosto de Confúcio indicaria que, para ele, a vida é azeda em face dos seus infortúnios e dificuldades e merece, portanto, ser corrigida. As regras de convívio, as tradições e os ritos serviriam, afinal, para isso.
As ideias de Confúcio, adaptadas para o Estado e desprovidas de suas roupagens mais simbólicas, místicas ou religiosas, teriam sido facilmente recebidas pelos jesuítas portugueses, uma vez que não entravam em conflito direto com o cristianismo. Isso se deve também ao fato de que sua filosofia é muito mais acessível e mais fácil de ser interpretada do que a de um outro sábio chinês, contemporâneo seu, Lao Tsé – o precursor do Daoísmo – alguém cujo estilo ambíguo e abstrato resultou num espectro muito mais amplo de interpretações. Por outro lado, os valores morais de Confúcio e sua aplicação direta na vida familiar e nas esferas burocráticas da administração pública poderiam encontrar nas interpretações europeias um caminho de entrada no ocidente a ponto de influenciar, de algum modo, decisões importantes da primeira experiência republicana francesa. Vejamos que um dos princípios fundamentais da filosofia do sábio chinês é aquilo que se chama Ren – algo cuja tradução daria um belo tópico republicano, próximo daquilo que chamamos de fraternidade. A palavra que indica esse conceito, nos caracteres chineses, formam este desenho:

O que esse desenho parece indicar? A primeira figura, do lado esquerdo, é, supostamente, o desenho de um homem. Os dois traços, à sua frente, indicam o número dois. A palavra sugere convívio, respeito, relação, humanidade. O princípio básico da filosofia de Confúcio revela, portanto, a dedicação à elaboração de uma existência harmônica entre os sujeitos – uma relação entre dois é o ponto de origem da sociedade. Este princípio, por sua vez, está associado à contribuição que o sábio deu à conhecida Regra de Ouro – noção onipresente nos sistemas éticos, religiosos ou filosóficos construídos pela humanidade ao longo das eras e que Kant decodificou como um mecanismo da razão prática: não façamos ao outro aquilo que não gostaríamos que nos fosse feito; devemos agir segundo o modo com que gostaríamos que os outros agissem; na versão iluminista do filósofo de Königsberg: aja de tal modo que a tua máxima virtude possa ser elevada a uma conduta universal. Confúcio seria, é claro, um pouco mais modesto. O que vale pra ti, deve valer pra todos.
Tendo em vista uma filosofia tão séria, simples, e crucial, é curioso, portanto, que, na leitura de uma obra seminal como Os Analectos, encontremos algumas passagens capazes de abrir um sorriso em nosso rosto. O que são, pois, Os Analectos? Seu significado original é o de diálogos. São, pois, conversas do mestre com seus discípulos. É o segundo volume de uma compilação feita pelo editor e comentador Zhu Xi (1130 – 1200). São, ao todo, 20 capítulos, e cada capítulo era, no tempo de sua confecção, constituído de 20 rolos de bambu nonde estavam registradas as palavras do mestre e os seus comentários. A leitura era feita de forma aleatória, mais voltada para a aquisição de um insight ou uma intuição reveladora do que a na absorção sistemática de ideias. Daí percebemos o grau com que a filosofia chinesa se difere da filosofia grega – esta última, profundamente devotada ao logos, ou seja, à possibilidade de uma apreensão racional e lógica da realidade.
E quem foi, pois, Confúcio, o autor desta obra? Um homem livre, filho de uma nobreza empobrecida, que passou dificuldades, privações e que, através do estudo e de uma dedicação notável, conquistou posições importantes na administração de seu reino. Depois, tendo se tornado um burocrata e um erudito, passou a angariar discípulos e tornou-se um pedagogo, um educador. Ao seu redor se uniam os jovens dedicados a acumular sabedoria, a se aprofundar nos estudos das tradições e dos clássicos, e a se candidatar a posições mais altas da burocracia estatal chinesa.
E em que momento histórico esse sujeito e a sua obra se inseriam? Naquele momento conturbado da história da China que os historiadores denominam Período da Primavera e do Outono. O nome, um tanto poético, expressa as característica de uma época marcada pela incerteza, pela impermanência com que os impérios e as dinastias se erguiam para depois se esfacelarem. Diante de uma época de fragmentação política, tanto Confúcio quanto Lao Tsé se perguntavam sobre as possibilidades de restauração da ordem. Enquanto que o segundo se apoiava numa tentativa de compreensão das leis da natureza e nas chances de governar de acordo com essas leis, Confúcio empreendia um projeto de formação de indivíduos virtuosos. O projeto de Confúcio se estabeleceu a longo prazo – a mudança da sociedade só seria possível após uma sucessão de gerações, algo que ele jamais poderia testemunhar em vida. Ele compreendia que a educação não devia se limitar apenas à leitura e ao entendimento do clássicos, mas, sobretudo, à formação do caráter alicerçado no exercício da honestidade e da justiça em seus distintos níveis. Por estas razões, enfrentou problemas também devido ao excesso de honestidade, quando passou a participar de um nível mais alto da política. Este brevíssimo resumo pode ajudar a formular uma imagem e uma ideia concisa sobre o homem e sua obra. Muito antes da empresa capitalista asseverar a possibilidade de um self made man, o treinamento moral a que Confúcio submetia os seus alunos, no estudo dos clássicos e no respeito às normas, era, sobretudo, um caminho que se abria para a ascensão social. Essa ascensão, contudo, longe de se limitar a uma mera realização individual, tinha em vista um horizonte mais amplo: a construção de uma sociedade coesa em que as pessoas não estivessem condenadas a sofrer das mesmas privações que ele sofreu na sua adolescência, em virtude da corrupção, da ingerência e das guerras. Este, sendo o desejo máximo do Mestre Confúcio, também encontrava nas características históricas de seu tempo uma razão mais ampla, posto que, naquela época, a China estava mergulhada em guerras e conflitos.
Os Analectos, a obra mais popular do sábio chinês, tem uma importância incalculável na história da China e na vida dos chineses até os tempos atuais. Mais acima mencionei a existência de uma passagem curiosa, capaz de esboçar um sorriso no rosto dos seus leitores. A passagem à qual me refiro aqui se encontra no capítulo 10.17:
“Com a mudança de expressão [de Confúcio], [as galinhas selvagens bateram as asas,] voaram e depois se empoleiraram juntas. [O Mestre] disse: “As galinhas selvagens dos espinhaços destas montanhas [sabem seu] tempo! [Sabem seu] tempo! Zilu lhes fez uma reverência com as mãos junto do peito, [as galinhas] bateram três vezes as asas e voaram”.
Quando li essa passagem para uma amiga ela se recordou imediatamente daquele filme de animação que hoje já conta mais de 20 anos, Chicken Run, traduzido aqui no Brasil como A Fuga das Galinhas. A passagem, breve e misteriosa, encontra uma explicação no comentário que vem em seguida:
“Segundo os intelectuais da dinastia Song, a importância da interpretação dessa passagem é ainda maior para compreendê-la, pois parte do texto se perdeu. Confúcio e Zilu estavam no campo, onde viram galinhas selvagens. […] Quando a expressão do rosto de Confúcio mudou, as galinhas se assustaram e voaram para um lugar seguro. Admirado, ele as elogiou por sua capacidade de pressentir mudanças no estado emocional dos homens: ao perceber perigo, fogem para longe e observam o desenrolar dos acontecimentos. Em seus comentários, Zhu Xi explica que as pessoas deveriam agir dessa forma, sempre atentando para as situações favoráveis que surgem durante o curso de sua ação.
Xing Bing, por outro lado, oferece uma interpretação diferente, dizendo que Confúcio elogia não a capacidade das galinhas de pressentir o momento propício para a fuga, mas a naturalidade com que agem. Segundo Xing Bing, os ideogramas shizai, traduzidos por ‘sabem seu tempo’, devem ser lidos como ‘é hora’. Por essa interpretação, Zilu teria deduzido que o Mestre estava com fome e teria matado as galinhas. A parte final dessa passagem deveria ser retraduzida para significar o seguinte: ‘Zilu abateu as galinhas e as assou. O Mestre cheirou várias vezes o prato que Zilu preparou e levantou-se sem comer’. Evidentemente, por essa leitura de Xing Bing, a passagem carece de um sentido relevante para que entendamos o pensamento de Confúcio”. [Editora Unesp, tradução de Giorgio Sinedino].
As primeiras impressões dessa passagem não carecem de um certo senso de humor. Sou levado a imaginar a gravidade de expressão de Confúcio, quão feio deve ter se tornado o seu rosto a ponto de afugentar as galinhas selvagens. Pior: o que seu discípulo deve ter dito para que ele reagisse dessa forma?
Prefiro ficar com a primeira interpretação: as galinhas demonstram uma capacidade de se antecipar ao perigo em virtude de sua sensibilidade aos sinais do ambiente à sua volta. Essa capacidade de antecipação, de algum modo, remete também à virtú do príncipe ideal de Maquiavel. Pensamos no valor que essa capacidade adquire quando da posse de um reino, na administração de um grande contingente de vidas. A similitude não estaria no talento administrativo do príncipe, nem tanto pela sua capacidade de controlar o Estado, mas pela sua habilidade de se movimentar dentro de uma situação potencialmente instável – derivada de uma percepção correta dos sinais emitidos pelos seus súditos e pelo seu povo – e sempre aberta para o acaso.
Essa capacidade, um atributo muito louvável da parte dos governantes, parece diferir um pouco de um princípio básico do daoísmo de Lao Tsé: o wu wei (无为), muitas vezes traduzido para o português como não-ação. Difícil de explicar, uma tal ideia, posto que na filosofia daoísta este princípio leva ao controle máximo sobre todas as coisas: o domínio perfeito é o não domínio – ideia da qual o anarquista Henry Thoreau poderia ter sido um militante. A militância da não-ação. Aprende-se a governar na medida em que compreendemos as leis da natureza, os contrários, as mudanças, e os seus fluxos inexoráveis. Assim, a capacidade de antecipação e a habilidade para compreender o momento, segundo Lao Tsé, provavelmente resultaria numa ação mínima, perfeitamente harmonizada com as demandas do momento. Uma explicação mais fácil, expressa em metáfora, pode ser encontrada nas palavras de Bruce Lee: be water my friend. A água, ao passo que não possui contorno, adquire a forma dos limites que a constrangem, podendo ser muito calma, mas, também, extremamente poderosa. Seu poder é proveniente da capacidade de adaptação aos corpos e ao espaço.
Essa concepção não parece ser tão conciliável com a de um Confúcio que recomenda uma ação correta e direta, uma intervenção do sujeito dentro de um espaço. O sujeito daoísta permanece quase que indistinto da natureza. O sujeito confunciano tem sua matéria-prima derivada do mundo dos homens, de modos que sua ação não será tão mínima assim. Todavia, essa ação correta não é sempre a mesma. Não havia, no pensamento de Confúcio, uma receita geral para todos os momentos – é óbvio que cada caso era um caso a ser ponderado na sua própria singularidade. Não existiria um modelo único de ação, mas, é verdade, a ideia de um Mandato do Céu exigia que os governantes e os sujeitos não se extraviassem demasiadamente do caminho. Se as ações deflagrassem um descaminho, um distanciamento da justiça e da norma, era provável que o Céu respondesse de maneira proporcional, cortando os seus laços com os governantes que haviam ascendido e adquirido poder justamente em benefício da generosidade deste Mandato.
De todo modo, a passagem resvala num tópico bastante interessante para aqueles que buscam a sabedoria: o exercício da percepção correta. Como é possível cultivar uma percepção correta das coisas? Esse tópico é interessante porque, parece-nos, que toda a conduta de uma pessoa sábia, ou seja, as suas palavras corretas e as suas ações corretas, dependem de uma capacidade correta de perceber o mundo: ler e interpretar os sinais que lhes chegam. Como seria possível alcançar um tal grau de percepção das coisas? Silenciando nossa mente? Silenciando os nossos desejos e as nossas vontades? Aprendendo com a experiência e errando muitas vezes até descobrir o caminho mais correto e mais verdadeiro? Ora, para o daoísmo, a experiência não é tão necessária assim (podemos conhecer o mundo sem jamais sair de casa). A pergunta faz sentido porque, de algum modo, os nossos desejos sempre interferem na maneira com que vemos o mundo. Desconhecer as nossas intenções e ignorar os nossos desejos seria um erro incomensurável caso fôssemos nos dedicar a um tal exercício. Conhece-te a ti mesmo, significa, antes de tudo, conhecer as suas próprias razões e os seus próprios desejos. E é verdade que temos cada vez mais à nossa disposição os sinais e as informações que queremos para construir os nossos cercadinhos de significado. Como transpor estes limites, então? Essa dúvida, proveniente de uma questão básica, coloca uma distinção na natureza da realidade: aquilo que é, e aquilo que desejamos.
Se as galinhas fugiram de Confúcio, elas também deveriam querer fugir do campo de concentração em que viviam confinadas no filme Chicken Run. Ali, na animação de massinha, um clássico instantâneo dos anos 00 (com Mel Gibson interpretando um galo de circo), encontramos referências explícitas a um clássico do cinema de guerra, Fugindo do Inferno. Cenas em que as galinhas fogem por um túnel subterrâneo são inspiradas neste outro filme, estrelado por Steve McQueen. Aliás, todo o clima do campo de prisioneiros é transposto para a animação, e o filme não abre mão de repetir alguns clichês dos filmes de guerra da era heroica de Hollywood. Vemos, então, que o desejo das galinhas de fugir já existia e era compartilhado por vários membros do galinheiro. No entanto, na medida em que se dão conta de que a morte é iminente, os esforços para a fuga aumentam. Quando apenas algumas galinhas que botavam poucos ovos eram condenadas à degola, era possível contornar a situação. Mas, então, uma nova máquina, capaz de produzir tortas de galinha, acaba semeando o pânico, a morte se impõe como um destino igual para todas, e a fuga se torna o único caminho possível para a vida. Todas as reações das galinhas são derivadas da percepção que elas têm dos sinais que chegam até o galinheiro: as movimentações de luz e som na direção da fazenda. A percepção delas, instigada pelo instinto de sobrevivência, é bastante correta. O mesmo não pode ser dito daquele outro personagem, Sr. Tweedy, que jura estar percebendo as tentativas de fuga das galinhas, mas é convencido pela Sra. Tweedy de que tudo não passa de uma ilusão sua – provavelmente porque ela não está atenta aos mesmos sinais que ele.
Pensemos no sonar dos morcegos e na sensibilidade dos fungos. Olhos, ouvidos, nariz, o tato – quais são os outros sentidos que nos faltam? Cada antena inventa um novo tipo de sinal? Quantos são os sinais possíveis e quantas são as antenas possíveis na natureza? Ora, nós, humanos, na arena da vida e dos afetos, o tempo todo estamos tentando interpretar os sinais que nos chegam. Não precisamos estar na posse de um reino ou de um cargo importante para se preocupar com isso. Inúmeras simbologias (o tarô, a astrologia, a quiromancia) se desenvolveram enquanto artes divinatórias com uma função que era mais ou menos esta: se existe uma ordem, ela se distribui pelo cosmos, e podemos acessá-la. Entendendo esta ordem que governa a natureza, podemos nos antecipar aos movimentos que se desenham no horizonte. Tanto o confucionismo quanto o daoísmo respeitavam profundamente o oráculo chinês dedicado a esta tarefa: o I Ching. Mas, em outros contextos, como na Grécia Antiga, interpretando corretamente o movimento dos pássaros, ou as vísceras dos animais, encontraríamos sugestões de ação e conduta para os dilemas que se abriam: o que fazer? Qual caminho devo seguir? Qual escolha devo fazer? Com a filosofia, a ideia de uma compreensão lógica do universo seguiu um caminho diferente desta prática dos oráculos, considerada mais vulgar, e a fissura entre a nossa mente e o mundo aumentou. Obtivemos, desde então, uma capacidade cada vez maior de saber dos limites de nossa percepção – e de desconfiar dos nossos sentidos e dos nossos desejos. Daí provém o ceticismo enquanto princípio ético para o estabelecimento da razão: o mundo é aquilo que é, e não aquilo que eu gostaria que fosse. Mas, como posso eu, saber, de fato, o que é o mundo? E como posso, também eu, saber dos meus desejos a seu respeito? Parmênides sugeriu uma via para verdade e outra via para a opinião; os nossos juízos nem sempre se conformam com os fatos. Qualquer seja a substância, pode ser que, outrossim, nossos desejos guardem uma intuição que é, pelo menos em algum nível, sempre correta. Bergson diria que esta vontade, este querer, deve, em algum momento, se encontrar com o nosso ser.
Mas imagino agora o que um budista teria a dizer: não existem sinais a serem interpretados se não existir um sujeito observador. Ou seja, os sinais só existem em decorrência da nossa vontade de encontrá-los. O desejo de sobrevivência das galinhas do filme é o que as leva à prestarem atenção nos sinais que chegam da direção da fazenda. Mas não somos as galinhas num galinheiro. Estamos submetidos a uma variação de estados anímicos muito mais ampla e que nos é, até, desconhecida. Como podemos pensar na tristeza e formular um juízo correto enquanto ainda estamos tristes? Como perceber o perigo, então, quando estamos entusiasmados? Todos os sinais reverberam melhor no silêncio, e os sinais que nos apetecem não se restringem a uma realidade única. Eles não são como um sinal físico do mundo da natureza – eles se integram a certas expectativas nossas e, principalmente, com as experiências que temos nos nossos encontros. Os estímulos que nos chegam, as palavras que nos são ditas, as mudanças de humor que nos afetam e que são como que reações das ações e dos gestos dos outros; em suma, a sabedoria parece envolver sempre um nível de capacidade e atenção para a verdadeira dimensão destes movimentos. E aqui, poderíamos distinguir movimento de sinal, porque o sinal já envolve uma elaboração conceitual da qual o movimento puro independe. O nosso desejo tão comum e central de buscar individualmente a felicidade e a realização pessoal depende, portanto, da emissão de um alerta que abra a nossa percepção para os sinais que possam ser recebidos pela antena do nosso desejo. Antes, durante, e depois, estamos condenados a fazer representações mentais destes sinais. Não podemos nos furtar à tendência de atribuir significados a eles. Mas é apenas assim que o desejo pode interferir na nossa interpretação dos sinais? É possível virar as costas para eles? Será que isso que chamamos de intuição consiste apenas em conseguir ler corretamente os sinais para então registrá-los sob o imperativo do nosso querer? Por isso não posso concordar tanto assim com a segunda interpretação dada à passagem das galinhas, porque ela sugere que o desejo de Confúcio em se alimentar o teria levado ao comentário elogioso sobre a natureza dos animais. Isso indica uma participação maior da fome e do afeto na formulação do comentário do mestre, o que também não deixa de ser engraçado. Mais provável que os animais fugiram quando ele cerrou as sobrancelhas.
Pensando ainda sobre a nossa capacidade de entender e interpretar os sinais do universo: depois das simbologias dos oráculos e das investidas filosóficas, a ciência também desenvolveu outros tantos mecanismos que nos permitiriam ler o ambiente à nossa volta e desempenhar uma ação antecipatória. Termômetros, sismógrafos, enfim, todos os medidores que temos nos dão indicações restritas às movimentações do mundo material, sem que possamos acessar aquilo que acontece na nossa vida psíquica. Estes sinais, visíveis no mundo dos fenômenos, portanto, eram compreendidos pelos oráculos como os gestos de uma intenção universal. Havia, ali, uma relação entre sujeito e ente (dotado de vontade). Por isso a ideia de um destino ou uma vontade divina fazia mais sentido. Depois, conforme a nossa desconfiança aumentou, provavelmente em virtude da experiência de contradição entre estas leituras e a realidade que se apresentava, estes gestos se tornaram apenas um dado para o conhecimento, existindo dentro de uma relação entre sujeito e objeto (desprovido de vontade). E parece-nos, pois que, agora, o fator humano exista como um complicador, e, distantes da natureza, incapazes de compreender os seus movimentos, confinados num mundo artificial e deslumbrados com as nossas próprias criações, é cada vez mais difícil desenvolver uma percepção correta das coisas, sobretudo quando vivemos num regime de estímulo constante dos nossos desejos. Ora, por que falamos tanto de astrologia se, em uma cidade como São Paulo, não conseguimos nem sequer contemplar as estrelas? Provavelmente porque elas foram convertidas em símbolos e ficaram à serviço apenas dos nossos desejos. Porque agora os seus significados existem dentro de um registro a partir do qual podemos tentar administrar os nossos afetos. Recorremos à leitura dos astros porque os astros estão envolvidos no regime dos nossos desejos, expectativas, e seus movimentos nos provocam: é necessário agir, se harmonizar com este outro movimento que não é nosso, antecipar os seus efeitos. E isso, de fato, não deveria parecer estranho. Na origem da palavra desejo, desiderio, encontramos sid, que remete ao espaço e às estrelas (como em sideral). O desejo é, fundamentalmente, o desejo de ver estrelas. Mas, podemos voltar os olhos mais abaixo: o mundo em que vivemos, onde todos os serviços são terceirizados para que possamos viver numa bolha de conforto, é, pois, também, uma bolha de desejo, pronta pra explodir. Num determinado ponto da curva, as artes divinatórias, os sistemas de magia, e a interpretação dos sinais da natureza sempre estavam vinculados a uma busca por poder e pela realização das nossas vontades.
Repetimos, pois, a pergunta: e quando nosso desejo interfere na nossa interpretação das coisas? E quando aquilo que queremos, ou melhor, aquilo que gostaríamos que fosse verdade acaba parecendo mais atraente para o nosso entendimento do que os sinais que se revelam? Isto é um primeiro ponto: um desacordo entre nossa vontade e os sinais do mundo dos fenômenos. Mas, e se o universo for displicente o bastante para confirmar todos os nossos desejos e nos levar adiante em decisões que prescindam de uma revisão? E se a conformação entre os nossos apetites e estes sinais for tão grande que não sobre qualquer espaço para a dúvida? E se, ao nosso redor, encontrarmos gente interessada em referendar estes sinais e corroborar com este desejo de estar no caminho correto? Não me lembro onde foi que li: o sucesso e o poder são os maiores obstáculos quando é necessário saber de si. Ao contrário das galinhas do filme ou as galinhas dos espinhaços das montanhas da China, não estamos mais lutando pela sobrevivência, os sinais que queremos compreender e interpretar corretamente nos levam apenas à realização dos nossos desejos, o único triunfo possível num mundo desprovido de sentido.
Para concluir, depois de tudo, retornemos ao filme. De que modo ele se encerra? No final da narrativa, as galinhas conseguem fugir. Não sem uma ação alucinante, elas conseguem ser bem sucedidas nos seus planos. Trabalhando dedicadamente, obtém sucesso na construção de um aviã ue será o movido a pedaladas, e fogem então, voando, para fora do galinheiro. Depois, temos a chance de ver as galinhas vivendo num cenário idilíco, quase uma galinhotopia. O que se faz ali? Vive-se livremente. As galinhas mais velhas contam histórias, e as crianças aprendem a voar – mais ou menos como elas “voaram” para fora do galinheiro.
É óbvio que aqui nos deparamos com a pergunta: o que faríamos nós, depois que fugíssemos do galinheiro em que vivemos? Quer dizer, existe um galinheiro que nos sirva de metáfora? Ou seja, realizados os nossos desejos mais imediatos ligados à sobrevivência e a liberdade, o que desejaríamos depois? Se o mundo do lado de fora do galinheiro não tem sentido algum, será que a produção de novos desejos encetaria novas direções, novos rumos para a existência? Poderemos fazer tudo aquilo que não fazíamos dentro do galinheiro? Ora, certamente que não tudo. Poderemos pelo menos tentar satisfazer agora aquilo que não podíamos antes e, o principal, dar uma outra ocupação a nós mesmos que não seja aquela imposta a nós pelos donos do galinheiro. O problema, e nisso não podemos deixar de levar em conta as ideias de René Girard, é que depois de assegurados estes desejos mais imediatos ligados à sobrevivência e às primeiras necessidades, já não teríamos mais o que desejar e passaríamos a imitar os desejos uns dos outros e a entrar em disputa pelos objetos que nos servissem de satisfação para estes desejos, é claro, depois de percebermos que não haveria o suficiente para todo mundo. E mais uma vez a lógica da escassez predominaria sobre as nossas vontades. Pergunto outra coisa: e se descobrirmos, então, que há um galinheiro ainda maior envolvendo todo o resto para fora do galinheiro do qual pensávamos ter fugido? E se a metáfora for exatamente esta: cada desejo que temos e que nos move, que se impõe com gravidade à nossa órbita e nossa existência impõe consigo, na verdade, uma nova cerca, um novo vigia, uma nova direção e um novo regime – afinal, cada desejo está ligado, de algum modo, a um apetite. E pode ser que cada desejo corresponda então aos novos desdobramentos de uma estrutura de poder indeterminada na qual nós, enquanto galinhas, ocupamos uma determinada posição.
[Para que o texto não terminasse de forma um tanto pessimista, inseri este último parágrafo: não é que o mundo não tenha sentido. É que se todos os sentidos do mundo caminham na direção do desejo, então o desejo haverá de ser o único sentido possível, e então, todas as tecnologias simbólicas inventadas pela humanidade se prestariam apenas à tentativa de conferir aos indivíduos a chance e a habilidade de se anteciparem aos movimentos do mundo para que possam proteger as suas vontades e os seus desejos, aspectos fundamentais de toda a personalidade. Todos os corpos da natureza teriam sido modelados pelo desejo e o nosso drama cósmico consistiria em correr sempre atrás dele, ou ser empurrado por ele, de qualquer forma e de todo modo, atender à exigência feita pela perpétua individuação deste desejo ao longo de sua progressiva diversificação e aquisição de qualidades.
Não é, então, que tudo seja isso. É que o tudo disso é só isso.].