o problema da literatura contemporânea segundo um velho sábio persa

“[…] o discurso que ouvira, em minha mocidade, quando de minha primeira estada na Pérsia, num dia em que assistia a uma reunião de intelectuais, na qual se discutia sobre a cultura contemporânea.

Entre os que mais falaram nesse dia, estava um velho intelectual persa – intelectual, não na acepção europeia da palavra, mas no sentido que se lhe dá no continente da Ásia, isto é, não somente pelo saber mas pelo ser. Era, aliás, muito instruído e possuía um profundo conhecimento da cultura europeia.

Disse, entre outras coisas:

‘É muito lamentável que o período atual de cultura – que denominamos e será denominado pelas futuras gerações civilização europeia – seja intermédio, por assim dizer, na evolução da humanidade; em outros tempos, que seja um abismo, um período de ausência no processo geral de aperfeiçoamento humano, uma vez que os representantes dessa civilização são incapazes de transmitir a seus descendentes, como herança, qualquer coisa de válido para o desenvolvimento da inteligência, esse motor essencial a todo aperfeiçoamento.

Assim, um dos meios principais de desenvolvimento da inteligência é a literatura.

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o caso do marido KGB

O seguinte caso é uma história verídica acontecida no final dos anos de 1970, na cidade de Boston, Estados Unidos. Após ter ganho a primeira página em alguns jornais locais, contudo, a notícia foi rapidamente sufocada pelos órgãos de inteligência norte-americana. A conclusão da história, portanto, nunca veio a público.


Renée Garland conheceu seu marido, Joseph Botvinnik, em uma festa num clube de dança comumente frequentado pelos universitários e pela classe média protestante de Boston, em 1971. Ela tinha 18 anos e estava iniciando seus estudos em Direito na Boston University School of Law. Ele tinha 25, e dizia ser gerente de uma exportadora de grãos e alimentos com contratos na Europa e norte da África. Não possuíam nenhum amigo em comum. O moço, ela veio descobrir, era o filho único de uma família de imigrantes ucranianos, que teriam chegado em Nova Iorque no começo do século XX. Ela, por sua vez, era a mais brilhante das três filhas de um casal de fazendeiros do Oklahoma, criadores de milho e de suínos.

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a sífilis lunar

Eels are mysterious beings. It may be that what are called their ‘breeding habits’ are teleportations. According to what is supposed to be known of eels, appearances of eels anywhere cannot be attributed to teleportations of spawn. In the New York Times, Nov. 30, 1930, a correspondent tells of mysterious appearances of eels in old moats and in moutain tarns, which had no connection with rivers. Eels can travel over land, but just how they rate as mountain climbers, I don’t know.

Charles Hoy Fort, Lo! – 1931

Lua Europa, uma das grandes luas que orbitam o planeta Júpiter. Chamo-me Montezuma Lovejoy, sou um colono espacial, e a primeira vítima humana de uma doença que ainda não tem nome.

Estou há exatamente um mês trancafiado em quarentena, enquanto os médicos me submetem a baterias de exames, rotinas de medicamentos e dietas malucas. Enquanto isso vou recordando e pondo minha consciência à limpo. Deste doloroso exame emergem memórias nas quais me vejo sempre protagonizando alguma coisa ligada à colonização de Europa.

Sou um veterano do processo de terraforming que deixou habitável esta lua.

Operei tratores gigantes e explorei cavernas de gelo submerso. Pude acompanhar todo o processo de aquecimento da atmosfera, desde o começo. Tive o privilégio de assistir in loco ao derretimento da gigantesca crosta de gelo que cobriu, durante milhões de anos, o profundo oceano salgado que havia sob a virgem superfície do planeta.

Em outras palavras: tenho vivência.

O meu nome, se devo explicá-lo, foi escolhido por meu pai, um já falecido historiador fascinado pelos povos indígenas mesoamericanos – alguém que merece todas as devidas congratulações por ter conseguido convencer uma mãe a presentar sua prole com uma alcunha que jamais seria entendida na primeira pronúncia em qualquer lugar fora do México.

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o nervo de haussmann

Sabemos que Sebastian Haussmann nasceu na Turíngia, na penúltima década do século XVI. Filho da união de um rico comerciante alemão com uma senhora italiana nascida no Vêneto, estudou medicina na Universidade de Pádua, onde foi aluno de Vesálio e de Girolamo Fabrizio.

O fascínio nele despertado pelas aulas dos anatomistas italianos foi o suficiente para que dedicasse o restante de sua carreira ao estudo do corpo humano. Ainda que saibamos pouco sobre sua vida, posto que além dos dois processos judiciais movidos contra ele o tempo só preservou algumas páginas de seu diário pessoal, não nos será difícil imaginá-lo à luz da liberdade intelectual da qual gozavam os estudantes daquela época, mergulhados na renascença esplendorosa da Sereníssima.

Entre a admiração pelas xilogravuras do grandioso volume De Humani Corporis Fabrica e a veneração por uma antiguidade povoada pelas pinturas de seus contemporâneos, Haussmann, pelo que consta em suas anotações, nutria uma profunda devoção pela figura e pela obra de Cláudio Galeno, e a imagem do médico ancestral vivissecando macacos e expondo suas grandiosas palestras sobre a higiene pessoal nos anfiteatros, na glória que deveria ter sido o mundo greco-romano, também motivava seus próprios sonhos pessoais de prestar um contributo à história da ciência e da medicina.

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os confins da imaginação

Estávamos no ano de 2003, na sala de informática do Colégio Objetivo, em Birigui, interior de São Paulo. Não sei se havia alguma atividade da qual havíamos sido dispensados, as aulas de informática sempre se pareceram de alguma forma às aulas vagas, mas a turma ficou livre pra explorar a Internet durante alguns bons minutos antes do intervalo.

Como não havia computadores pra todo mundo, nós alunos éramos obrigados a dividir as máquinas, e duplas e trios mistos operavam cada uma delas. Isso fazia com que a experiência de navegação fosse bastante coletiva, cada coisa curiosa sendo imediatamente compartilhada entre a turma.

Assim, não poucas vezes, a experiência de assistir aos vídeos mais polêmicos do início do século XXI, dentre eles execuções, decepamentos, suicídios, aparições e acidentes, bem como a contemplação de fotos sangrentas exibindo os corpos de famosos mutilados, tudo isso foi sempre acompanhado de muita demonstração conjunta de choque e curiosidade.

Naquele dia, no entanto, o que nos tomou a atenção foi um joguinho. Alguém, que provavelmente o encontrou no histórico ou na barra dos favoritos em algum lugar, apareceu com esse puzzle em que um gnomo explorava lugares bastante difíceis de serem descritos, mas cheios de personalidade. Alguma coisa espacial-florestal de escala imprecisa, povoada com detritos tecnológicos, e com ares bastante alucinógenos, quase sonolentos, onde você ia clicando com o mouse, quase à deriva, até descobrir acidentalmente caminhos que nem sempre saberia refazê-los. Não me lembro como fui parar ali (talvez fosse o efeito da paisagem), mas me lembro que imediatamente todo o restante do pessoal já estava tentando resolver os desafios, entre simples e intuitivos, e trocando informações a respeito de certas áreas.

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palavras de um xamã yanomami a respeito de Stonehenge

“As viagens que fiz para defender nossa floresta contra os garimpeiros acabaram me levando para muito além do Brasil. Assim, certo dia, brancos que tinham escutado meu nome me chamaram de uma terra longínqua, da qual eu não sabia nada, a Inglaterra. Eu aceitei o convite, porque tinha curiosidade de conhecer aquela gente distante que parecia ter amizade por nós. Era a primeira vez que eu deixava nossa casa de Watoriki para voar num avião por tanto tempo. Era tão longe que eu acabei chegando até a terra dos antigos brancos, que eles chamam de Europa. Então, pude ver com meus próprios olhos os vestígios das casas dos primeiros forasteiros de pele clara, os napë kraiwa pë, que Omama criou há muito tempo com o sangue da antiga gente de Hayowari.

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ficção aumentada

I must download several copies of myself and storage them into security areas.

Terence McKenna

Num futuro em que a pesquisa com tecnologias de Realidade Aumentada seguiu desimpedida, imaginemos sua conjunção com os ramos da robótica responsáveis pelo desenvolvimento de inteligências artificiais e de equipamentos portáteis para realidades virtuais. Pensemos neste futuro como situado em lugar do final do século XXI, ao mesmo tempo a intersecção entre uma Idade de Ouro da tecnologia e uma Idade das Trevas emocional que obterá como resultados sociais uma enorme confusão entre os distintos níveis de trânsito de informação, até que, claro, devido à incrível plasticidade do cérebro humano, adequemos devidamente nossa linguagem a esse ultra-futuro pós-pós-humano de velocidades simultâneas incomensuráveis por meio de sofisticadíssimos implantes neurobiológicos de aumento de capacidade sensorial e de memória.

Todavia, considerando que nem todas essas maravilhas de ponta serão prontamente disponibilizadas a preços acessíveis para os cidadãos comuns, imaginemos diversões mais sutis, arquitetadas pelos artistas, arquitetos, engenheiros da programação e da informática, todos esses mestres espirituais vindouros que terão às suas mãos tantos e tão fascinantes instrumentos de criação e não hesitarão em exibir ou esconder os seus produtos por aí, nas áreas acessadas por realidades indefinidamente maiores, espalhadas pelos espaços tangíveis aos corpos e às mentes futuras.

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a sala dos professores

 

Desde que comecei a dar aulas nas escolas da prefeitura venho sendo levado a refletir sobre o potencial dramático do ambiente conhecido popularmente como “sala dos professores”. Posto que sou obrigado a frequentá-lo algumas vezes durante a semana, na chegada, na saída, e nos intervalos, a sua presença inexorável dentro do estabelecimento educacional tem sido cada vez mais alvo de reflexões de minha parte.  Há razões de sobra para que o consideremos, para além da escola, como uma instituição pública tradicional na qual é possível verificar uma variedade notável de comportamentos que encontram ali espaço pra se manifestarem.

Ao passo que dou aula em três escolas distintas, a configuração do humor coletivo, do estado de ânimos, do repertório de assuntos, do tom dos diálogos, são completamente diferentes entre elas. Ainda que seja difícil, se não impossível, apontar com precisão o lugar de onde se originam essas diferenças, a verdade é que tudo isso reincide sobre um único detalhe que transita entre o individual e o coletivo, o subjetivo e o intersubjetivo: a escolha a respeito daquilo que pensamos e, consequentemente, daquilo que falamos.

É necessário, aqui, tomar como objeto de raciocínio a força gravitacional que certos assuntos exercem sobre a atenção dos envolvidos.

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as consequências psicossociais das viagens no tempo

Na sala de experiências transtemporais, no subsolo de uma universidade brasileira não mencionada, os cientistas, moliéres e ômis, aguardam ansiosamente pela chegada da viajante do futuro. Atrasos eram previstos. Por se tratar de um evento inédito, a demora em se consumar faz com a crise se acelere e produza uma expectativa muito além daquela suportada até agora pela turma de cientistas escalada para o turno.

As coisas evoluíram depressa. Há exatamente um ano o primeiro memorando, diretamente enviado do futuro, aparecia pra eles na telinha de um monitor. A mesma localização, o mesmo laboratório, indicado pelas coordenadas. Resultados previstos, mas nem por isso isentos de euforia. Haviam acabado de comprovar, antes que qualquer outro centro de pesquisa do mundo chegasse aos mesmos resultados, a possibilidade de se enviar e receber dados digitais para o passado e para o futuro, algo através do continuum espaço-temporal canalizado por um terminal transdimensional construído pelo pessoal da escola de engenharia, com a ajuda de uma consultoria virtual prestada por uns alemães surpreendentemente insubordinados.

A mensagem, ao que tudo indicava, havia sido enviada por eles mesmos. Num futuro próximo de daqui a duas horas.

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o homem diante da morte

“Garmann esposa a tese da sensibilidade do cadáver. Essa permite-lhe explicar fenômenos bem conservados. Além do sangramento do cadáver na presença do assassino, fato que é suspeito, há casos seguros e bem demonstrados de movimento do cadáver. São, aliás, esses movimentos que tornam tão difícil o reconhecimento da morte (crença ainda disseminada em nossos dias); o suor ainda flui. A morte não impede a ereção do pênis, comum nos enforcados, de onde vem a crença na excitação sexual do enforcado. Contava-se, no século XVIII, que certos amantes procuravam os prazeres do início do enforcamento, contando recuperar o equilíbrio sexual in extremis, por vezes tarde demais. Quando despiram soldados mortos no campo de batalha, encontraram-nos, diz Garmann, no estado em que ficariam se o combate tivesse sido com Vênus. A ereção pode, aliás, ser obtida à vontade nos mortos. Basta injetar certo licor nas artérias.

As especulações sobre o cadáver se aproximam daquelas acerca da indivisibilidade do corpo. A vida pertence ao corpo inteiro ou a seus elementos que poderiam ser separados? É evidente que a doutrina da sensibilidade do cadáver implica a da indivisibilidade do corpo. Garmann relata casos de enxertos, bem conhecidos em seu tempo, de que dá referências e datas: um gentil-homem perdera o nariz na guerra, sendo nele enxertado outro; a operação foi bem-sucedida, e o nariz ficou bem em seu lugar até o momento em que, mais tarde, começou a apodrecer. Investigando, soube-se que esse acidente acontecera no momento da morte do doador: este, ao morrer, levou consigo seu nariz, mesmo separado e distante.

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