as consequências psicossociais das viagens no tempo

Na sala de experiências transtemporais, no subsolo de uma universidade brasileira não mencionada, os cientistas, moliéres e ômis, aguardam ansiosamente pela chegada da viajante do futuro. Atrasos eram previstos. Por se tratar de um evento inédito, a demora em se consumar faz com a crise se acelere e produza uma expectativa muito além daquela suportada até agora pela turma de cientistas escalada para o turno.

As coisas evoluíram depressa. Há exatamente um ano o primeiro memorando, diretamente enviado do futuro, aparecia pra eles na telinha de um monitor. A mesma localização, o mesmo laboratório, indicado pelas coordenadas. Resultados previstos, mas nem por isso isentos de euforia. Haviam acabado de comprovar, antes que qualquer outro centro de pesquisa do mundo chegasse aos mesmos resultados, a possibilidade de se enviar e receber dados digitais para o passado e para o futuro, algo através do continuum espaço-temporal canalizado por um terminal transdimensional construído pelo pessoal da escola de engenharia, com a ajuda de uma consultoria virtual prestada por uns alemães surpreendentemente insubordinados.

A mensagem, ao que tudo indicava, havia sido enviada por eles mesmos. Num futuro próximo de daqui a duas horas.

E, preparados para o dever, sabendo daquilo, acrescentaram à lista de tarefas a obrigação inexorável de enviarem, dentro de duas horas certamente, uma mensagem para o passado de duas horas atrás, com o conteúdo mesmíssimo da mensagem que haviam acabado de receber.

O conteúdo era:

tudo ok, o mundo continua cinza e barulhento

O aparelho havia sido desenhado para parecer-se com um computador, sem que houvesse qualquer necessidade estética justificável. Questões de familiaridade perpetradas pelos patrocinadores do projeto de pesquisa, sendo que o CNPqP não fazia nem ideia do tamanho da injeção de dinheiro particular ali naquela budega. O layout era bastante semelhante ao do mIRC.

Aquela estação, acompanhada de monitor, era o primeiro dispositivo tecnológico criado para receber e enviar mensagens por certos caminhos temporais, futuros e passados permissivos ao envio de bytes, informações, dados, criptografias, .gifs e até compilações de vídeos engraçados já consagradas pelo obtusamente vasto número de visitantes que haviam recebido em mais de século, posto que a humanidade, neste estágio de sua tediosa evolução, já era tão mais numerosa, e havia visitado tantas, e tão repetidas vezes os vídeos icônicos do início da era digital (século XXI), que o número de visitantes, com a contagem garantida até o Fim dos Tempos, precisava de dois dias de barra de rolagem pra ser visto em sua totalidade. O protótipo de uma rede de comunicação já existente no futuro (e portanto já povoada), ao mesmo tempo em que sustentada pelos sinais enviados pelo próprio objeto mesmo, aqui no presente.

Confuso, não? Pois é.

Pra facilitar a imaginação, pensemos numa sala de bate-papo sempre cheia, com cada usuário ali sendo proveniente de uma época diferente. Uma converseira danada de interessante no canal aberto, gente de daqui 30 ou 50 anos no futuro puxando prosa contigo em janelas privativas, e…

O negócio, na prática, mostrou-se bem distante disso.

Porque complicaria ainda mais: iniciada a transmissão, criar-se-ia no laboratório uma área transtemporal de potenciais pan-entrópicos consideravelmente instável, o que exigiria aos cientistas do turno uma atenção triplicada sobre as próprias ações, assim como sobre o estressante cálculo das consequências possíveis de cada uma delas.

A essa altura já estavam todos cientes de que, iniciada a transmissão, não demoraríamos mais de 1 segundo para receber a primeira mensagem do futuro. O Professor era dedicado em suas aulas teóricas.

“Sei que está um pouco batido, mas vamos imaginar aquela metáfora de Borges, das veredas que se bifurcam de acordo com as ações que tomamos. Cada ação pode abrir ou fechar centenas de possibilidades, milhares ou infinitas, de acordo com as variáveis envolvidas. Se acabamos de inaugurar o sinal e não adotamos nenhuma medida de controle sobre os dados que recebemos, então estaremos recebendo de tudo. Literalmente Tudo, de Todos os Universos Possíveis Daqui em Diante, porque, bem, sabe-se-lá porque, mas imagino que no futuro haja uma competição muito grande pela autoria da primeira mensagem, não acham? A Primeira Mensagem que Viajou pelo Tempo e Foi Lida por Nós? E poderia ser bem leviana essa mensagem, não acham? Talvez o vídeo de um gatinho. A não ser que façamos uma triagem dos canais, a coisa pode ficar bastante complicada. Estamos lidando com um aparelho cuja capacidade final não será nada menos que multiplicar os universos possíveis. É a ideia é de que infinitos universos possíveis são criados e destruídos com cada ação que tomamos. Imagine uma linha do tempo que vai se ramificando infinitamente a cada segundo.”

Era difícil acompanhar o raciocínio. Ninguém pegava muito bem essa ideia dos “universos possíveis”, ou x universos. Além disso, havia uma cisão dentro da equipe: os partidários do Paradoxo do Avô (um problema lógico bastante comum nas discussões a respeito de viagens do tempo), e os adeptos do Dilema da Primeira Máquina (outro problema lógico bem comum). Como as coisas continuavam decorrendo sem muita alteração no subsolo em que viviam, nenhum dos lados prevalecia sobre o outro.

Um subgrupo que corria por fora, ainda, era o dos Saganistas, uma molecada que tinha crescido assistindo Cosmos e debatendo religião e ateísmo nos fóruns da Internet, argumentando com memes e decorando falácias. Sua filosofia para a questão toda era uma variação da velha oração de Carl Sagan que dizia que a prova de que as viagens no tempo são impossíveis é nunca termos recebido algum viajante do futuro.

Essa turma, necessário dizer e com justa causa, era a mais apreensiva daquela tarde, porque se tudo desse certo, se tudo saísse exatamente como previsto, com a chegada da viajante coisa e tal, a própria existência do grupo, enquanto grupo, chegaria ao fim.

E, como se pode ver e concluir, eram muitas facções convivendo ali dentro, todas muito críticas, fatalistas e cínicas umas com as outras: uma população com mais subdivisões que os gêneros do Metal, ou então que o espectro da esquerda brasileira.

E não foi sem crítica que a teoria do Professor mostrou-se correta: assim que o aparelho deu início à transmissão, o processador ficou sobrecarregado, chegando a queimar várias unidades de armazenamento e de memória. A quantidade de dados recebida lotou 2 pentabytes, somente 6 horas após ter sido iniciada a transmissão.

2 pentabytes de puro ruído, estática, chuvisco, só pra encher linguiça.

Conclusões as mais interessantes eram ouvidas nos corredores: a opinião geral dividia-se entre aqueles que acreditavam que esta tecnologia, recém-inventada, em algum lugar do futuro já não estaria mais só sob domínio daqueles que a monopolizavam hoje, no presente. Considerando-se que sequer haviam-na patenteado, outros laboratórios poderiam chegar aos mesmos resultados, sendo mais rápidos nas iniciativas legais.

99% do conteúdo daquilo que recebiam era sequer legível. E, dentro desse 1%, pelo menos 97% não tinha qualquer sentido, algo feito para provocar um excesso de ficção e caos informativo no aparelho receptor, eliminando, justamente pelo excesso, a credibilidade de todo o resto.

Havia ainda aqueles cientistas apressados e indelicados que queria incrementar a paranoia, alegando que algumas mensagens conflituosas já eram a pista que eles precisavam para comprovar a existência de universos paralelos: a afirmação de que no futuro o Brasil seja governado por uma cúpula de santos justiceiros não eliminava a hipótese de que em um outro Brasil futuro e simultâneo a este outro, estivéssemos sendo liderados por uma Liga das Nações Indígenas. Isso tudo, à bem da verdade, só apontava para a necessidade cada vez mais premente de um mecanismo de sintonização que permitisse o recebimento das realidades mais próximas à nossa, bloqueando as realidades mais distantes. Algo que fechasse o canal.

De qualquer forma, até então, o que parecia era que alguém, sozinho ou em grupo, estatal ou privado, alguém lá do futuro estava tentando pregar uma peça no passado inteiro, quer dizer, no presente. Considerava-se, para tanto, a existência futura de algum outro mecanismo cuja função era unicamente spammear ruído para o restante das existências através de usuários autômatos, mais ou menos como os bots do Aécio Neves ou do PT, em todos os outros universos paralelos possíveis onde houvesse aquela rede de comunicação compartilhada inicialmente pela estação dos nossos cientistas.

Um ativismo inventado exatamente para isso: dificultar a comunicação.

Bastava haver apenas um outro “universo possível”, em qualquer lugar da ridícula ramificação das multi e não-lineares linhas do tempo, para que o terminal fosse inundado pelo ruído desse “universo possível”, inalienável e indestrutível, porque ainda não haviam atrelado sua existência a nenhuma das consequências das ações presentes, de modos que a prevenção do futuro, a essa altura, ainda era uma ideia que estava custando pra entrar na cabeça de todo mundo.

Estabelecer nexos causais é uma tarefa hercúlea, e foram poucos os cientistas que, neste momento, não cogitaram o tamanho do trabalho que teriam dali em diante. A curiosidade e o entusiasmo de outros, porém, seguiram inabalados. Teriam de se reunir, e uma vez reunidos, o problema de armazenamento de dados tornou-se acirrado. Amizades foram colocadas em cheque, autoridades postas à prova. A comunicação com os alemães teve de ser cortada, e tudo ficou bem menos divertido do que havia sido um dia.

A ideia mais inteligente a sair daquela reunião foi a seguinte: ao invés de adquirem maiores unidades de memória, economizando um bocado e evitando produzir tanto lixo durante o procedimento, e também contornando os riscos de sediarem tudo aquilo nas nuvens, fariam uso de um software open beta recém-inventado por uma desenvolvedora sueca com o site sediado na parcialmente afundada ilha do Tuvalu, um programinha batuta que era capaz de ler e avaliar padrões, livrando-se do superficial e do lixo.

Nada disso funcionaria se não criassem para tanto também um canal fechado, a partir do qual testariam, um por um, os anos sintonizados pelo aparelho, e os usuários pertencentes a cada ano ou década. A Zona de Ruído, de onde chegava aquela quantidade imensurável de chiado e e estática, delineada e depois lacrada, recebeu o nome de A Tagarela. Era assim que chamavam aquela fatia de anos que ia de 2144 até 2159.

A vocalização de teorias a respeito deste fenômeno tornou-se um passatempo comum nos laboratórios. Houve quem acreditasse na possibilidade de um outro mecanismo estar criando todo o ruído. O monopólio sobre aquela tecnologia talvez não importasse tanto. Não precisava nem de ser necessariamente alguém.

Talvez pudesse ser mais grave, um holocausto ou uma hecatombe que pusesse fim àquele estado de coisas em algum lugar dessa década vindoura, algo pior que Mad Max, ou então coisas mais misteriosas ainda, como sinais de bloqueio específicos, nuvens, envelopes, mantas & jamantas alienígenas, camadas, qualquer coisa do tipo que pudesse ser inventado entre o hoje e essa esquisita década vindoura.

Os cientistas se aperceberam de que as discussões e as discordâncias também contribuíam para o aumento de entropia.

Foi uma época de auto-censura.

Estavam fascinados pela maneira com que o Tempo se comportava: os tempos de reação haviam diminuído. As respostas eram instantâneas. Não havia tempo de espera. Em alguns casos, ainda, os leitores tinham de driblar as respostas que chegassem antes das próprias perguntas.

O início da triagem, inevitavelmente, provocou a retração da própria rede.

Inda assim, uma semana de vasculhamento na Caixa de Entrada dos Tempos (CET) e o resultado mostrou-se bem acima do esperado. O conteúdo das mensagens  era o mais variado. As que chegavam criptografadas iam direto para os decifradores. Já nas primeiras semanas encontraram de tudo: resultados de loterias, de partidas e campeonatos de futebol, de votações na Câmara e no Senado; meteorologia; assaltos, sequestros; quedas e altas na bolsa de valores, o preço do petróleo; movimentos migratórios; possíveis alvos para atentados terroristas; destinos pessoais, de famosos, celebridades, magnatas, investidores, anônimos e zés ninguém; mortes para as quais já se iniciavam medidas e contornos; tumores que se manifestariam no futuro podendo desde já ser detectados e removidos; relações amorosas autodestrutivas; choques de gestão; o caminho trilhado por encomendas ilícitas; o movimento dos dados no cassino e a duração do giro de algumas roletas milionárias; a extinção de espécies raras e elegantes.

Como fogos de artifício no tecido noturno do tempo.

Pela triagem que fizeram, puderam tomar conhecimento de que, dentro de 20 anos, pelo teor do conteúdo popular e comum compartilhado pelas mensagens daí em diante, a tecnologia de envio e recebimento teria então se democratizado. A coisa ficou romântica na cabeça e nos sonhos de alguns cientistas. Na de outros, tudo o que viram foi a profecia de mais um empreendimento, mais um negócio comercial, privado ou estatal, um serviço de postagem temporal, cuja consequência mais óbvia e nefasta seria a criação ininterrupta de outros tantos universos de possibilidades e horizontes de eventos, de cadeias causais e sequências epifenomênicas dando sopa para especuladores e empresários da informação, ou então profissionais de áreas que passariam a existir daqui pra frente sem que nunca tivéssemos imaginado qualquer coisa assim.

Um serviço premium de correspondência que começaria custando caro, famílias reunindo o dinheiro dos membros mais ricos pra enviarem longas listas de precauções para o passado, dando chances pra que esses outros eus não se tornassem o que teriam se tornado nesta escusa linha do tempo em que viviam agora, como vozes chamando pelas veredas laterais uma humanidade ninguém sabe se a mesma, perdida num buritizal.

Tudo isso, por quê? A única recompensa para os remetentes era a notícia de que houve um momento, em algum lugar da eterna ramificação infinita das veredas que se bifurcam no tempo, um momento em algum lugar que este destino daqui não se cumpriu, e as coisas e as gentes foram dar em caminhos diferentes, só porque sabiam o que é que os aguardava pela frente.

Isso parecendo tão frustrante, apesar de poético, as gentes preferiram se antecipar. Comunicar-se com o futuro era mais eficiente, e mais estimulante.

E, por isso mesmo, mais caro.

Os cientistas em questão foram os primeiros a lançarem-se nesta maravilhosa consulta com as humanidades vindouras, e sem terem de pagar nada, é claro. Deviam, contudo, subtraírem-se de suas motivações pessoais. Ninguém pôde perguntar se seria avô, ou se terminaria a construção da própria casa, ou se conseguiria passar pra frente um tal terreno. E, muito cautelosos, proibiram a si mesmos de inquirirem os moradores do futuro a respeito do próprio aparelho que estavam usando para a comunicação.

Tentando contornar as próprias restrições, nas primeiras listas de perguntas que enviaram para o futuro constava uma muito especial a respeito da década de 2144, a Zona do Ruído, a Tagarela. A pergunta havia sido endereçada para o ano de 2160 – quando a Zona do Ruído terminava. Por motivo de contenção de riscos, eram dúvidas curtas e objetivas, frases, comunicações bastante ingênuas. Os do lado de lá provavelmente saberiam do decoro desses novatos do escambo temporal, estando portanto já preparados para ele. Afinal, como seria cada vez mais comum daí em diante, já teriam acumulado vários passados, infinitos séculos dentro de anos, décadas, milênios.

Alguns decifradores, com as retinas cansadas, os cérebros exaustos, imaginavam seres de cérebros multidimensionais vasculhando linhas do tempo simultâneas, semelhantes à nossa por questões de frações de eventos ou centésimos de ações, tudo isso em um clima de ultra-guerra-fria, os olhos eternamente atentos a pistas que indicassem mudanças de rumo, guinadas em destinos políticos de fazerem sombra em pelo menos alguns bilhões de indivíduos.

Simplesmente não havia tempo para que se vasculhasse tudo. As tecnologias futuras cooptavam e coagiam os navegadores do passado, incapazes de transpor certos bloqueios, redes fantasmas, policiais do tempo, canais permanentemente fechados para todo o sempre.

Os pioneiros deste laboratório o que viam era uma noite em que milhões de mísseis cruzavam o céu carregando informações imprevisíveis.  O futuro exercia, sobre o passado, uma opressão até então imprevista.

Do ano de 2160 a mensagem mais abundante que receberam foi a seguinte:

DESTRUAM A MÁQUINA! ELIMINEM TODOS OS ENVOLVIDOS! NINGUÉM DEVE SABER NADA A RESPEITO!

Mas decidiram não destruir. E obviamente ninguém foi eliminado. Foi um ano difícil nos laboratórios. Nenhum sono durava mais que três ou quatro horas. Não havia quem ou o quê pusesse freio às especulações. Impedidos de saírem dali por conta de um contrato que havia sido prorrogado contra a vontade dos próprios envolvidos, à força sabe-se-lá de quem (mas considerava-se um consórcio internacional germano-brasileiro assegurado por uma força particular bastante equipada), alguns começavam a apresentar, além da insônia, sinais de paranoia aguda, alucinação, depressão, melancolia, anorexia e obesidade mórbida.

Das três tentativas de suicídio, duas haviam sido interrompidos sem que chegassem às vias de fato.

O Psicólogo, usando veneno de rato, foi o único a lograr êxito, e a partir daí as coisas ficaram ainda piores porque não colocaram nenhum outro no lugar dele com a desculpa de que deviam diminuir as chances de um vazamento de informações, além do fato de que, dali pra frente, não estariam contratando mais ninguém, nenhum substituto, nada.

Nem na Cozinha nem na Limpeza.

Foi quando começaram a construir um túnel pra ser usado em fugas eventuais, no dia em que a coisa ficasse feia mesmo. A Turma do Paradoxo do Avô começara a cavar, munidos com colheres Tramontina, uma passagem que ia dar coincidentemente no Centro Acadêmico de Psicologia, um buraco atrás do armário, não sem terem de por isso ouvir reclamações incisivas de seus rivais, os do Dilema da Primeira Máquina.

A visita da viajante do futuro, marcada para aquela tarde, era a culminação de tudo aquilo, um final para o qual tudo confluía. A própria visita era a resposta a um pedido de ajuda feito na calada da noite por um cientista à beira de um colapso nervoso. Alguém que viria do ano de 2160 – por quê e sobre o que se devia a visita, ninguém também falou qualquer coisa, mesmo diante e depois de ameaças intimidadoras e verdadeiros interrogatórios, nos quais eram citados, inclusive, os nomes de familiares associados a medidas que todos, sem exceção, haviam concordado em classificar como muito além da conta, até mesmo para os padrões dos superiores, eles mesmos dando demonstrações de esgotamento psicológico em relação àquilo tudo.

No histórico de mensagens não havia nada que incriminasse ninguém.

As instruções para a construção da transplataforma onde chegaria a tal da viajante do tempo haviam naturalmente sido transmitidas via comunicação pela máquina, advindas do ano de 2143, exatamente o último ano antes da década de 2144, a Zona de Ruído. Talvez a existência de tal tecnologia pudesse estar relacionada ao ruído da década seguinte, alguns gostavam de pensar. Para outros, como a turma do Dilema da Primeira Máquina, isso aumentava ainda mais a tensão para possibilidade de terem o seu dilema resolvido, a saber: o transporte de uma tecnologia futura para o passado elimina a necessidade de invenção dessa mesma tecnologia em algum lugar dessa linha do tempo?

A maior parte dos funcionários, no entanto, sentia-se solitária e triste, apequenada diante da enorme possibilidade que tinham pela frente, uma vez que não contavam com um contingente que pudesse operar nas inúmeras ramificações da comunicação temporal: havia-se formado, apenas pelo acaso da conveniência, grupos de estudo sobre datas específicas, escolhidas arbitrariamente, porque ainda não se sabia muita coisa sobre as realidades futuras. Haviam passados enormes para todas elas. Um passado que antes da Máquina parecia, ou era, único. Áreas de interesse e lugares (hoje) considerados importantes, como a economia, por exemplo, pareciam mais interessantes dentro dos planos pessoais de alguns cientistas. Se Deus deu demonstrações de Sua existência ou se alguma inteligência extraterrena havia entrado em contato conosco no futuro, nada disso foi perguntado, nem sequer considerado importante pelos cientistas do turno em questão, por razões de vergonha alheia científica.

Mas tudo aquilo era um mapa grande demais pra ser explorado por aquela gente vivendo num compartimento debaixo da terra. Uma visão panorâmica satisfatória ainda estava longe de se apresentar.

E aquela mensagem: – DESTRUAM A MÁQUINA -, ninguém tinha se esquecido dela. Continuavam a recebê-la.

Com detalhes que a deixavam ainda mais mórbida: ela era comunicada por todos os anos, de 2144 até 2159, sempre por um mesmo terminal, numa latitude nem tão longe da que estavam recebendo-a, sem que se acrescentassem a ela quaisquer comentários, nem que se oferecessem respostas para as mensagens que era enviadas de volta, pedindo por explicações.

Além disso, era o único terminal funcionando naquela quase-década vindoura. As coisas, findada a década, pareciam voltar à normalidade e à mesmice daí então, talvez um pouco como eram antes, se bem que muito mais sucintas. Como se, a partir das respostas obtidas e transmitidas com tanto desinteresse, desse pra sentir daqui (do presente) que o tal aparelho já teria sido escanteado após a Zona de Ruído, caído no ostracismo do desuso, deixado pra se empoeirar num fundo de porão.

Quando enfim a viajante do tempo chegou, relâmpagos de purpurina, groselha e glitter estremeceram as estruturas do subsolo, e as lâmpadas se aqueceram até o limite. Na plataforma transtemporal, à vista total dos olhos estupefatos dos cientistas, transportava-se a silhueta atômica & presente da viajante, com uma vestimenta que provocava até certa paralisia cognitiva: 1 metro e 91 centímetros de altura, ombreiras vermelhas, cachecol azul-bebê, costeletas do Elvis, batom vermelho PT, dentes de vampiro da Cafelândia, peitoral de lobisômi do Agreste, peruca da Bioncê, óculos do Djolêno, espartilho preto, minissaia verde-limão, meia-calça púrpura, tamanco salto-fino, e lacrando cus desde o futuro distante, com os genitais sobressalentes, implantados nos antebraços.

Após uma comemoração regada com champagne, gardenal, frontal, ritalina, energético, café e rivotril, MC João no talo e bexigas coloridas, a viajante do futuro, apresentada como Sandra Suprema, discursou em prol da energia solar, da cobertura grátis de Wi-Fi e 3G em todo o território nacional, da união proveitosa entre o Estado e as empresas privadas, a transposição do Rio São Francisco, deu garantias do sucesso da Usina de Belo Monte, além de defender ainda o voto facultativo e o canibalismo, quando aproveitou para convidar algum cientista, morador do presente, para visitar o futuro, onde, se quisesse, poderia ser canibalizado pela bem-sucedida e bem-resolvida sociedade cientística futura, até lá, séculos depois, vivendo ainda no subsolo desta universidade brasileira não mencionada.

Ninguém sabe ao certo como foi que começou a contenda, mas depois de ouvir aquilo, alguém, com a cuca bem fundida, cismou que a missão da viajante do tempo era destruir o aparelho, e resolveu agir. Melindrada pelas reações excessivamente sinceras, hostis e melancólicas de seu público, Sandra Suprema protagonizou o maior escândalo lógico já acontecido nos laboratórios da Terra de Santa Cruz. Uma briga que por sua vez deflagrou um motim no laboratório, tubos de ensaio explodindo, provetas sendo arremessadas, talheres voando pra tudo quanto é lado, os do Paradoxo do Avô de um lado comovidos com a verdade revelada de seu destino neste mundo, e os do Dilema da Primeira Máquina revoltados com o resultado que os excluía, e os Saganistas mirradinhos tentando se esconder da treta, esmagados por aqueles bem maiores que eles.

E sem breque nem beira a manada quis correr pra fora do laboratório, mas a pancadaria, o empurra-empurra, foi ficando tudo tão pior, tão mais violento e irresolvível de um jeito que evoluiu para uma debandada geral e descontrolada, com todos os envolvidos entupidos e sufocados no túnel que dava pro Centro Acadêmico de Psicologia, e a Sandra Suprema lá no meio, lacrando o cu da geral.


Imagem: Karl Wirsum

 

 

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