a sala dos professores

 

Desde que comecei a dar aulas nas escolas da prefeitura venho sendo levado a refletir sobre o potencial dramático do ambiente conhecido popularmente como “sala dos professores”. Posto que sou obrigado a frequentá-lo algumas vezes durante a semana, na chegada, na saída, e nos intervalos, a sua presença inexorável dentro do estabelecimento educacional tem sido cada vez mais alvo de reflexões de minha parte.  Há razões de sobra para que o consideremos, para além da escola, como uma instituição pública tradicional na qual é possível verificar uma variedade notável de comportamentos que encontram ali espaço pra se manifestarem.

Ao passo que dou aula em três escolas distintas, a configuração do humor coletivo, do estado de ânimos, do repertório de assuntos, do tom dos diálogos, são completamente diferentes entre elas. Ainda que seja difícil, se não impossível, apontar com precisão o lugar de onde se originam essas diferenças, a verdade é que tudo isso reincide sobre um único detalhe que transita entre o individual e o coletivo, o subjetivo e o intersubjetivo: a escolha a respeito daquilo que pensamos e, consequentemente, daquilo que falamos.

É necessário, aqui, tomar como objeto de raciocínio a força gravitacional que certos assuntos exercem sobre a atenção dos envolvidos.

Qualquer pessoa que, por um breve momento em sua vida, nem que na obrigatoriedade de um estágio, tenha frequentado uma sala dos professores, certamente saiu de lá com a impressão mais nítida e mais imediata de todas: esta instituição, ao longo dos seus duradouros anos de funcionamento na vida pública brasileira, construiu com muito trabalho uma identidade bastante ajustada à sua função enquanto um antro semi-oficial de reclamações a respeito de tudo, onde o mau humor tornou-se norma. Um lugar que funciona quase como uma segunda graduação, para onde iriam aqueles indivíduos dispostos a aprender a relinchar comportadamente.

Longe de ser um espaço fértil para a discussão de ideias, de planos pedagógicos, de problemas e soluções para a vida política da comunidade, a sala dos professores é um centro de encontro entre pessoas amarguradas, rancorosas, melindrosas e ressentidas que encontram no ato de reclamar um combustível para a vida e o trabalho.

Nunca é tarde ressaltarmos que nem toda sala dos professores se caracteriza por semelhantes atmosferas. Entre aquelas que frequento, por exemplo, noto diversas gradações. Vários níveis de reclamismo.

E alguns deles bastante engraçados.

Veja bem, este texto não é uma “reclamação sobre a reclamação”, mas um exercício de imaginação sobre como o diálogo reserva um poder muito grande de ação sobre os ânimos de determinados grupos, mais ou menos próximo daquilo que alguns chamam de “egrégora”: a energia resultante dos esforços coletivos.

Este texto também não é fruto de uma vontade pessoal de caçoar ou fazer pouco-caso do conteúdo reclamatório destes pobres professores que encontram ali minutos preciosos em que podem desabafar tranquilamente para os seus colegas de profissão, mais ou menos preparados para entendê-los e aconselhá-los.

Talvez Marx, eu não sei, diria que o rodízio de tópicos nas conversas do dia-a-dia responda a certas exigências que a base material faz à superestrutura. Se as condições de vida fossem plenas, e o trabalho não tão alienante, as gentes estariam mais felizes.

É ou não é?

Não sei se compreensível ou incompreensível, mas digno de nota é o comodismo ruminante no qual tantos professores encontram estímulo pra queixarem-se de tudo, repetidamente, dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano.

E de maneira tão pobre, que, mesmo fazendo isso tantas vezes ao longo de décadas de trabalho repetitivo, não conseguiram alcançar nenhuma inovação em suas lamúrias. O repertório permanece o mesmo, esclerosado. Ninguém se dedica a procurar palavras novas pra expressar a velha e idêntica insatisfação. Na verdade, o que se tem é uma campanha permanente contra qualquer tipo de surpresa.

Tópicos excitantes mencionados recentemente: os celulares dos alunos, o desinteresse, a pobreza espiritual e intelectual (da qual todos somos cúmplices), o fracasso da autoridade, as mulheres que “não se dão ao respeito”, os jovens de futuros amputados, a crise moral, a crise política, a crise do futebol, a crise econômica, o preço do gás, o preço do feijão, o preço do álcool. Tudo isso à medida em que os próprios discursantes vão situando num passado distante, quase idílico, algo intangível, inexistente, um mundo em que todas essas questões não haviam sido apresentadas ou sequer existiam. A idealização do passado é um componente curricular obrigatório da falação ruminante que dá o tom melancólico a certas salas dos professores.

A idealização do passado deve ser também um dos caminhos pelos quais passa aquele outro pensamento que põe as pessoas pra defenderem a ditadura militar em ambientes não tão cara-a-cara quanto a sala dos professores, como por exemplo o grupo no zap zap, onde são mais abundantes as correntes portando mensagens positivas e good vibes.

Todavia, diante da crise educacional e do descaso com o ensino público, é razoável pensar que reclamações, se é a isso que eles se prestam, sejam sempre bem-vindas, até mesmo como forma de convergir interesses. Reclamações são resultantes ou resultam em indignação, que por sua vez podem produzir ações efetivas de mudanças, nonde quer que seja. Ainda que não conduzam a ações, também podem chegar à reconsideração da experiência.

Pois bem: o tom das melúrias que nascem e morrem na sala dos professores é absolutamente estéril, preguiçoso, pueril, pedestre e rastejante. Na maioria absoluta das vezes são mesquinhas, invejosas e, em alguns momentos peculiares, vêm acompanhadas de doses consideráveis de incredulidade, como se tivessem saído da mente de alguém que não só é incapaz de compreender o mundo à sua volta, mas até mesmo se recusa a procurar compreender.

São tão monótonas que levam alguns outros professores a desfrutar a menor quantidade possível de tempo lá dentro, apenas o necessário. Estes passam o tempo todo do lado de fora, checando seus celulares.

Outros tentam passar despercebidos.

Não é questão de exagerar o dano espiritual que essa ruminância causa àqueles que a ela se entregam. Há evidências gritantes de quão capaz a Fala é de reproduzir ou recriar a realidade. Trata-se de um desperdício de energia, uma intervenção ruidosa.

Ali, onde a humanidade se concentra nessa autoflagelação psicossocial, há pouca oportunidade para que surjam outros comentários, tão comuns em outras plagas: resumos novelescos, provocações políticas, fofocas sempre atrasadas, crises de ansiedade, teorias da conspiração, transações comerciais envolvendo produtos da AVON, Jequiti, Mary Kay e semelhantes, piadas jocosas e de duplo sentido a respeito da sexualidade de algum professor homem escolhido pela ocasião, causos os mais variados.

Veja, tudo isso é bastante saudável. Serve pra quebrar o gelo, pra construir laços afetivos mais brandos, que dão a impressão de uma família unida pra suportar as vicissitudes do ofício. Do contrário, o que resta é um carrossel de apontações de dedo, uma sensação crescente de gota d’água, de urgência.

Essa crítica toda poderia ser acusada de ser leviana e injusta com profissionais que escolheram dedicar suas vidas ao ensino público. De fato, se as coisas não fossem tão difíceis, se o trabalho não fosse tão árduo, acredito que muito deles não estariam mergulhados nesse abismo escuro de reclamações. Às vezes reclamar é tudo o que resta.

O problema, contudo, está na ausência de garantias para que a reclamação responda à urgência de desafios mais imediatos. Ela é muito mais uma modalidade, uma predisposição do espírito para turvar o ânimo das almas mais suscetíveis, ou então dos indivíduos cujo karma tenha se enveredado a apreciar penitências públicas com aposentadoria e duas férias remuneradas por ano. É uma indignação que, neste caso, nunca resulta em ação.

Ela não é crítica, não é autocrítica.

É quase um beco sem saída. E vem sempre acompanhada de uma escatologia cínica: a sensação de que vivemos os últimos dias, observando-os de um lugar confortável, a partir do qual só vemos a ribanceira que aguarda a queda.

As reclamações, assim sendo, não pertencem apenas ao universo escolar. Também são dirigidas ao futebol, e os jogadores que hoje se preocupam mais com o cabelo do que com jogar bola; à política, e à suposição de que hoje não haja nenhum político “que salva”; às relações familiares, e ao fato de que há filhos matando pais, mães parindo milhares de filhos sem condições de criá-los com a devida atenção; aos universitários, que só querem saber de sexo e drogas; aos médicos cubanos, por quem você não deveria querer ser operado; à segurança da própria escola, sem a qual todos estamos correndo sérios riscos nas mãos dos alunos marginais; aos homossexuais, que “obrigam outras pessoas a serem homossexuais também”. A união desses inúmeros lugares comuns funciona para a conclusão de que tudo hoje está perdido, de que as coisas estão todas ao contrário, tudo de cabeça pra baixo, ninguém respeita ninguém, e Deus não tem mais lugar no coração das pessoas.

Uma sucessão de clichês que produz um caldo discursivo bastante semelhante ao dos profetas do Velho Testamento.

E não sobrando um pra ficar livre, qualquer área de interesse humano está sujeita às garras lamuriosas e reclamantes do professor frustrado.

“As tias do português” – apelido dado por um amigo meu, e que acompanha a descrição de um arquétipo muito bem-sucedido no imaginário brasileiro, o da trupe de tias gordas que dominam alguma repartição pública, donas de uma cordialidade que lhes renderiam elogios açucarados de parte da crítica sociológica tradicional brasileira.

Elas, que, se as coisas melhorassem, ficariam sem assunto

E é justamente a cordialidade que impede que essas reclamações sejam levadas àqueles que devem ouvi-las. O confronto direto é sempre evitado.

Essa história de professor muitas vezes coincide com alguns devaneios pedagógicos que sugerem nela um ofício que deveria recrutar os melhores dentre nós. Os mais disciplinados e os mais criativos, os mais sábios, os mais amigos.

Alguém que não reclamasse tanto de seu público.

Acredito que uma parcela significativa da insatisfação lamuriosa que acaba produzindo essa ruminância inerte tão pouco saudável à vida intelectual corresponde a uma vocação natural que os indivíduos têm de conceberem o mundo que os cerca a partir de uma perspectiva absolutamente egoísta. A insatisfação brota justamente do contraste entre aquele mundo desejável, que só existe nos sonhos alimentados pelos valores embutidos em nossa própria educação, e este outro mundo rochoso e real, sempre disposto a dobrar as nossas vontades.

Acrescente a isso uma tradição pedagógica que, num certo ponto da tragédia, tornou-se mais imobilizante do que libertadora, e a coisa se tornará centralizadora à beira do insuportável.

O professor frustrado procurará nos seus ritos mais tradicionais um esconderijo que o dispense do compromisso de renovar seus métodos. A concha para dentro do qual ele rasteja.

Porque qualquer tela de celular obviamente parecerá mais interessante que o quadro negro, hoje em dia, e uma quantidade considerável de alunos entrará na sua aula com os olhos vermelhos e as bocas arenosas de tanta maconha seca que fumaram no intervalo. E isso não é razão pra achar que o magistério esteja com os dias contados. A ausência de prestígio oferecida pelo cargo também não deveria ser motivo pra tanto queixume.

Há ainda aqueles professores que criam situações de vingança contra seus próprios alunos quando estes se encontram em momentos de necessidade – aqueles a quem os fessôres julgam merecedores de alguma frase dita com pretensões de lição de vida, aqueles necessitados a quem eles devem recusar o auxílio…

Como esse estado de ânimos é ao mesmo tempo a causa e a consequência de uma série de desdobramentos, sua onipresença parecerá incontestável, mesmo não sendo. O fato de assentar-se em alguns detalhes (perenes, mas ainda assim detalhes), permite que a coisa se manifeste de maneira totalmente diferente em ambientes distintos. Há inúmeras outras salas dos professores por aí afora que não sofrem destes males – eu mesmo conheço algumas.

Tudo isso me lembra duas outras coisas: uma é o famoso discurso de David Foster Wallace, comunicado a uma turma de formandos do Kenyon College, e intitulado “This is Water” – “Isto é água“, disponível aqui, do qual destaco o seguinte parágrafo:

“Vinte anos após minha própria formatura, eu gradualmente compreendi que o clichê das artes liberais sobre ‘ensinar você a pensar’ é na verdade a abreviação de uma ideia muito mais profunda, e mais séria: aprender a pensar significa aprender a exercer a algum controle sobre como e o que você pensa. Significa estar consciente e atento o suficiente para escolher ao que você presta atenção e para escolher como você constrói significado a partir da experiência. Porque se você não consegue exercer esse tipo de decisão na vida adulta, você estará em apuros. […] E eu sugiro que é este o valor real, sem perda de tempo, que a sua educação em artes liberais supostamente oferece: como deixar de passar a sua confortável, próspera e respeitável vida de adulto morto, inconsciente, escravo da própria cabeça e da sua configuração natural de ser unicamente, completamente e imperialmente sozinho, todos os dias. […] É a maneira automática em que eu percebo as partes enfadonhas, frustrantes e cheias da vida adulta quando eu estou operando na crença automática e inconsciente de que eu sou o centro mundo, e que minhas necessidades e sentimentos imediatos são o que deveria determinar as prioridades do mundo.”

A outra é o artigo escrito por Colin Wilson, “Maslow, Sheldrake e as Experiências de Pico” disponível na coletânea Futuro Proibido [Editora Conrad, 2003], e também aqui, e do qual transcrevo a parte abaixo:

Há cerca de 25 anos, recebi uma carta de um professor americano de psicologia chamado Abraham Maslow. O que ele tinha para dizer me surpreendeu com algo totalmente original. Maslow disse que, como psicólogo, ele estava cansado de estudar pessoas doentes, porque elas nunca falavam de outra coisa que não fosse sua doença. Então ele perguntou para os amigos: “Quem é a pessoa mais saudável que você conhece?” E reuniu essas pessoas saudáveis e começou a fazer perguntas. Ele descobriu imediatamente algo que ninguém tinha percebido antes: que essas pessoas extremamente saudáveis tinham, com freqüência razoável, o que Maslow chamou de “experiências de pico”, momentos de felicidade borbulhante e arrebatadora.

Um exemplo típico. Uma jovem mãe estava observando o marido e os filhos tomando o café da manhã. De repente, um raio de sol entrou pela janela. Ela pensou: “Meu Deus, eu tenho muita sorte!” – e entrou na experiência de pico.

Quando Maslow falou sobre as experiências de pico com seus alunos, ele fez outra descoberta importante. Eles começaram a se lembrar de suas próprias experiências de pico no passado, que já estavam quase esquecidas. Ele percebeu que esse era o problema: todos temos experiências de pico, mas nós as desconsideramos e logo as esquecemos. Mas, no momento em que seus alunos começaram a se lembrar das experiências de pico, eles começaram a ter novas experiências de pico. Falar e pensar a respeito delas parecia colocá-los na disposição certa para viver novas experiências de pico.

Suas conclusões, localizadas mais adiante no texto, são provocantes e incômodas, porque impõem uma responsabilidade bastante dura àquilo que escolhemos transmitir por meio da palavra. Trata-se de um dilema ético: como reagir a isso sem necessariamente impedir os outros de externarem aquelas insatisfações todas?

Assim como entre os alunos a carência acaba produzindo comportamentos histéricos, dificuldade de atenção, comichões, batuques na carteira, dependência afetiva de aparelhos tecnológicos, os solilóquios em que os professores desfilam suas frustrações também imploram por público e por interlocutores.

Mais ainda: por quem os ouça sem dizer nada.

Os conteúdos essenciais de cada disciplina, nesse momento, são apenas obstáculos para uma relação afetiva suplicante, nunca estabelecida realmente –  contornada pelos profissionais do ramo, dispostos apenas a cumprir com suas obrigações curriculares.

E muito mais do que as estruturas mal preservadas do ensino, sempre possíveis de serem contornadas pelas nossas manhas, o principal inimigo declarado da liberdade acaba sendo o próprio humor.

A Liberdade (com L maiúsculo), de quem só ouvimos falar quando ela já nem nos pertence mais.

Pulando pras conclusões: sem que a coisa chegue ao esoterismo furado de um The Secret, e menos ainda a uma simples questão de psicologia do trabalho, não há nada nesse raciocínio todo que não pareça pelo menos um pouco óbvio. A ruminância reclamatória é uma síndrome, um vírus discursivo, qualquer coisa sombria e pesada rondando as conversas, pedindo pra ser exorcizada pela leveza dos espíritos da natureza, como o Ariel, espírito do Ar, de A Tempestade.

A reprodução descontrolada dessa espécie ruminante de indivíduos dentro do cativeiro conhecido como “sala dos professores” é a pista mais óbvia de quão cretina é a realidade reservada para os melhores sonhos que a nossa civilização sonhou pra si. Uma contradição que debocha na cara daqueles que procuravam na Educação um projeto emancipador da humanidade: ela ficou nas mãos dos chatos.

E ali eles ergueram os frigoríficos mais sutis da nossa alma.


Imagem: Jacob Taanmann, When Teachers Back Is Turned Painting.

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