o homem diante da morte

“Garmann esposa a tese da sensibilidade do cadáver. Essa permite-lhe explicar fenômenos bem conservados. Além do sangramento do cadáver na presença do assassino, fato que é suspeito, há casos seguros e bem demonstrados de movimento do cadáver. São, aliás, esses movimentos que tornam tão difícil o reconhecimento da morte (crença ainda disseminada em nossos dias); o suor ainda flui. A morte não impede a ereção do pênis, comum nos enforcados, de onde vem a crença na excitação sexual do enforcado. Contava-se, no século XVIII, que certos amantes procuravam os prazeres do início do enforcamento, contando recuperar o equilíbrio sexual in extremis, por vezes tarde demais. Quando despiram soldados mortos no campo de batalha, encontraram-nos, diz Garmann, no estado em que ficariam se o combate tivesse sido com Vênus. A ereção pode, aliás, ser obtida à vontade nos mortos. Basta injetar certo licor nas artérias.

As especulações sobre o cadáver se aproximam daquelas acerca da indivisibilidade do corpo. A vida pertence ao corpo inteiro ou a seus elementos que poderiam ser separados? É evidente que a doutrina da sensibilidade do cadáver implica a da indivisibilidade do corpo. Garmann relata casos de enxertos, bem conhecidos em seu tempo, de que dá referências e datas: um gentil-homem perdera o nariz na guerra, sendo nele enxertado outro; a operação foi bem-sucedida, e o nariz ficou bem em seu lugar até o momento em que, mais tarde, começou a apodrecer. Investigando, soube-se que esse acidente acontecera no momento da morte do doador: este, ao morrer, levou consigo seu nariz, mesmo separado e distante.

Esses fenômenos são naturais. Outros, em compensação, são certamente milagrosos, como os de mortos que andam ou que exalam odores, sinais certos de santidade. Outros são ambíguos e podem ser atribuídos à natureza, à credulidade popular, a uma falsa interpretação ou, ainda, ao milagre ou prodígio diabólico… Por exemplo, certos movimentos dos membros depois da morte: uma freira beija a mão de outra, morta, e a mão da morta responde apertando três vezes a da viva.

Também duvidosos, mas sérios e dignos de estudo aprofundado, são os casos de cadáveres que emitem sons – como os dos porcos – do fundo de seus túmulos; quando esses são abertos, descobre-se que os mortos devoraram o sudário as suas vestes, o que constitui terrível presságio de peste. Garmann consagra um longo capítulo de seu livro a esses cadáveres barulhentos e esfomeados. Tratava-se de fenômenos seminaturais, semi-demoníacos, como já se discute… Nós devemos reter aqui não somente a passagem do natural ao sobrenatural, a dificuldade de distinguir o natural, o preternatural, às vezes diabólico, e o milagroso ou sobrenatural autêntico, mas principalmente a verossimilhança dos próprios fenômenos, por mais inauditos que sejam, que provam a existência de certa sensibilidade no cadáver: são comentados, não sem reservas e remorsos, mas finalmente aceitos.

Essa sensibilidade do cadáver tem consequências práticas não desprezíveis na vida cotidiana e, principalmente, constitui a origem de toda uma farmacopeia: os cadáveres fornecem a matéria-prima de remédios muito eficazes (porém sem caráter mágico). Assim, o suor dos mortos é bom para hemorroidas e as ‘excrescências’; o toque de mão do cadáver, a fricção com essa mão na parte doente podem curar, como aconteceu a uma mulher hidrópica, que levou a mão de um cadáver ainda quente a acariciar seu ventre [eis porque os anatomistas têm as mãos em bom estado]. Uma série de remédios é destinada a curar o membro vivo pelo mesmo membro morto, o braço pelo braço, a perna pela perna. O crânio dessecado alivia o epiléptico (os ossos são absorvidos em forma de pó, por decocção). O priapus do veado é aplicado com bons resultados nos histéricos, mas ele também tem um poder ad Venerem promovendam, sinal aliás de uma relação entre a histeria e os delírios amorosos. 

Esses remédios são determinados pela aplicação, ao cadáver, de um princípio geral de simpatia e de antipatia, que implica um resíduo de vida nos corpos mortos. Esse princípio faz com que, se alguém tiver o azar de fabricar um tambor com peles de lobo e de cordeiro, a do cordeiro romper-se-á na primeira ressonância, com medo do lobo.

Plínio relatou que um ferido se curava comendo carne de animal, morto com o mesmo ferro que o golpeara. Do mesmo modo, o ferimento de uma flecha será tratado com uma compressa de cinzas de flechas. O ferro que matou um homem possui virtudes terapêuticas.

Os ossos também têm poder profilático. Recomenda-se trazê-los pendentes ao pescoço ou presos às roupas, não como um memento mori, mas por suas virtudes intrínsecas: passa-se do memento mori, desde o rosário feito de vértebras até chegar no amuleto profilático. Os soldados que trazem com eles o dedo de um soldado morto, sentem-se bem.

A terra dos túmulos, principalmente dos enforcados (sempre a mesma obsessão), é também rica em poderes terapêuticos (tanto para o homem, como para os animais). A proximidade de um cadáver acelera também o crescimento de uma planta, sendo mais férteis as terras impregnadas de ossos: o emprego de cadáveres como adubo, que a ciência moderna justifica, não está separado dos usos medicinais. A decomposição é fecunda: a terra dos mortos, como a própria morte, é fonte de vida: exquisitum alimentum est. Uma ideia que se tornará comum no século XVIII e início do século XIX, até a revolução de Pasteur.

A lista das propriedades benéficas do cadáver alonga-se até a beberagem afrodisíaca, composta de ossos calcinados de cônjuges felizes e de amantes mortos. As vestes dos mortos, mesmo um fragmento, curam as dores de cabeça e de hemorroidas; pelo menos era o que acreditavam os belgas”.

Philippe Ariès, O Homem Diante da Morte [Editora Unesp, 2013; tradução de Luiza Ribeiro]


Imagem: De Anatomische les van Dr. Nicolaes Tulp, Rembrandt, 1632.

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