“Nasceu em Tebas, foi discípulo de Diógenes e também conheceu Alexandre. Seu pai, Ascondas, era rico e deixou-lhe duzentos talentos. Certo dia, ao assistir uma tragédia de Eurípedes, sentiu-se inspirado com a aparição de Télefo, rei da Mísia, vestindo molambos de mendigo e carregando uma cesta na mão. Levantou-se no teatro e anunciou com voz forte que distribuiria a quem quisesse os duzentos talentos de sua herança, e que doravante lhe bastariam as roupas de Télefo. Os tebanos puseram-se a rir e se amontoaram em frente à sua casa; ele, contudo, ria mais do que eles. Jogou-lhes seu dinheiro e seus móveis pelas janelas, apanhou um manto de linho e um alforje, e então se foi.
Literatura
Espirais Políticas
É triste, e até mesmo um tanto inevitável, que uma pesquisa pela Internet contendo os caracteres ‘Agosto’ e ‘Rubem Fonseca’ acuse uma quantidade gigantesca de resumos preparatórios para o vestibular, e quase nenhum artigo realmente importante que tenha se dado conta de um valor que, neste livro, vai muito além daquele esperado pelas exigências de uma prova. É quase como se, ao colocarem o romance numa lista obrigatória de vestibular com a bela e nobre justificativa de canonizá-lo ou, o que é mais plausível, de obrigá-lo à leitura da população, todo o seu conteúdo acabasse se limitando a estas mesmas exigências, a ponto de fazer parecer que o livro existe apenas para isso. A verdade é que nada disto importa. Agosto, romance de Rubem Fonseca publicado em 1990, talvez, tornou-se obrigatório porque é, provavelmente, o livro mais famoso dentre aqueles que se dedicaram ao tema da entropia e da paranóia política que de vez em quando, em certas situações bem específicas, aflora na opinião pública brasileira.
Odisseias
“Quando em 1934 atravessei sozinho o deserto de Iguidi, tendo por única companhia um casal de borboletas, ocorreu-me a aventura mais surpreendente que pode acontecer a um homem vivo ou morto, e procurarei resumir em três linhas. Foi o caso que um dia despertei transformado em mulher e, nessa qualidade, fui pouco depois recrutado para o harém do sultão de Marrocos, onde servi como pude durante um ano e 14 dias. (Minha experiência nesse setor só deve interessar a mim mesmo, e manda o recato que eu me abstenha de entrar em maiores detalhes sobre o assunto, a menos que a isso me obrigue a minha consciência na hora derradeira).
Em Negativo
“Houve um tempo em que deixei crescer a barba, tinha tanta vergonha de ser branco que procurava escurecer-me de qualquer jeito – foi muito antes da guerra. Usava luvas também, a pretexto de frio: e eu sentia mesmo um frio por dentro, só de pensar que me haviam feito branco. O cabelo, esse sempre me ajudou bastante, aos 15 anos já era carapinha, não fosse minha mãe quem era e eu nem sei o que teria pensado: ou então eram as raízes dele que conheciam o meu sentimento e foram muito além do que fui: de qualquer forma um mistério.
“Yo no estoy completo de la mente…”
Insensatez, o romance do salvadorenho Horacio Castellanos Moya, é, no mínimo, desconcertante. Escrito em 2004, o movimento que parece ilustrar as poucas páginas do livro (155, ao todo) é um debruçar vertiginoso sobre a violência e as incicatrizáveis feridas da América latina – e consequentemente de sua própria literatura. Mais do que isso, é também um potente testemunho do poder e da responsabilidade da leitura, ao mesmo tempo em que aponta certas tendências literárias do nosso tempo.
A história: narrador, cujo nome nunca é revelado, espécie de alter-ego de Moya, aceita a tarefa de ir a algum país da América Central (Guatemala) revisar certos documentos que tratam do massacre das populações nativas – massacre este perpetrado pelo próprio exército guatemalteca ao longo de mais de vinte anos de genocídio. O trabalho faz parte da iniciativa de uma diocese local interessada em expor a matança para os órgãos internacionais que se dedicam às questões que envolvem os direitos humanos. A recompensa pelo serviço prestado envolve uma quantia de mais ou menos cinco mil dólares. Trata-se, portanto, do romance de uma leitura – a leitura, feita pelo narrador, de um passado sangrento perpetuado em relatos que, muitas vezes, acabam ganhando dimensões ainda maiores nas vozes das próprias vítimas.
ao fim das viagens
Os seres humanos aprenderam a viajar a partir do momento em que abandonaram o nomadismo. A necessidade das viagens nasceu quando as comunidades humanas se sedentarizaram. Sim, porque enquanto vivíamos mudando de um lugar para o outro, viajar era uma impossibilidade. Mas quem foi que empreendeu a primeira viagem, e por quê?
E a partir de que momento da história humana foi que nós começamos a gostar de viajar?
É verdade que nem todos gostam desse negócio de ter de fazer as malas, tomar um ônibus, um avião, passar um tempo num hotel e depois voltar pra casa. Mas essa é só uma das formas contemporâneas de viajar. Quer dizer, empreender uma viagem nem sempre foi a mesma coisa, e nem sempre teve o mesmo significado que tem hoje.
O filósofo Sêneca, em suas Cartas a Lucílio, nos diz o que pensa um estoico sobre a arte de viajar, e faz suas recomendações:
“Que utilidade pode ter, para quem quer que seja, o simples fato de viajar? Não é isso que modera os prazeres, que refreia os desejos, que reprime a ira, que quebra os excessos das paixões eróticas, que, em suma, arranca os males que povoam a alma. Não faculta o discernimento nem dissipa o erro, apenas detém a atenção momentaneamente pelo atrativo da novidade, como a uma criança que pasma perante algo que nunca viu! Além disso, o contínuo movimento de um lado para o outro acentua a instabilidade (já de si considerável!) do espírito, tornando-o ainda mais inconstante e incapaz de se fixar. Os viajantes abandonam ainda com mais vontade os lugares que tanto desejavam visitar; atravessam-nos voando como aves, vão-se ainda mais depressa do que vieram. Viajar nos dá a conhecer novas gentes, mostra-nos formações montanhosas desconhecidas, planícies habitualmente não visitadas, ou vales irrigados por nascentes inesgotáveis; proporciona-nos a observação de algum rio de características invulgares, como o Nilo extravasando com as cheias de Verão, o Tigre, que desaparece à nossa vista e faz debaixo de terra parte do seu curso, retomando mais longe o seu abundante caudal, ou ainda o Meandro, tema favorito das elucubrações dos poetas, contorcendo-se em incontáveis sinuosidades, fazendo incessantemente ainda mais um circuito antes de enfim descansar no leito de que se aproxima. Mas viajar não torna ninguém melhor de caráter nem mais são de espírito. Teremos de nos aplicar ao estudo, de frequentar os mestres da filosofia, a fim de assimilarmos os princípios já estabelecidos e investigar o que ainda está por descobrir. Só assim a alma se pode arrancar à mais dura servidão e alcançar a verdadeira liberdade. Enquanto ignorares a distinção entre o evitável e o desejável, o necessário e o supérfluo, o justo e o injusto, o moral e o imoral — nunca serás um viajante, mas apenas um ser à deriva.As tuas deambulações não te trarão qualquer proveito, já que viajas na companhia das tuas paixões, seguido sempre pelos males que te dominam. E bom era que estes males apenas te seguissem! Bom era que eles estivessem longe de ti! O que se passa, porém, é que os levas em cima, e não atrás de ti. Deste modo, onde quer que estejas, eles oprimem-te, destroem-te com a mesma virulência. Como pensar que a sabedoria, a mais importante das artes, se pode adquirir saltando daqui para acolá?! Podes crer que nenhuma viagem te põe ao abrigo do desejo, da ira, do medo; se tal fosse o caso, todo o gênero humano começaria em massa a viajar. Estes males não cessarão de atormentar-te, de desgastar-te ao longo das tuas viagens, terrestres ou marítimas, enquanto tiveres em ti as suas causas. Admiras-te que de nada valha fugir quando tens dentro de ti aquilo de que foges?”
Continuar lendoVisões de um mundo que persiste

“Assim como outros povos tiveram civilizações marcadas pelo símbolo do cavalo ou do touro, o índio com perfil de ave pôs suas civilizações sob a invocação da ave. O deus volante, o deus pássaro, a serpente emplumada, estão no centro de suas mitologias, e tudo que é belo para ele se adorna de plumas. De plumas foram as tiaras dos imperadores de Tenochtitlán, como são hoje de plumas os ornamentos das flautas, os objetos de jogo, as vestimentas festivas e rituais dos que aqui conheci. Admirado pela revelação de que vivo agora nas Terras da Ave, emito alguma fácil opinião a respeito da provável dificuldade de achar, nas cosmogonias desta gente, algum mito coincidente com os nossos. Frei Pedro me pergunta se li um livro chamado Popol-Vuh, cujo próprio nome me era desconhecido. “Nesse texto sagrado dos antigos quitchés” – afirma o frade -, “inscreve-se já, com trágica adivinhação, o mito do robô; mais ainda: acredito que é a única cosmogonia que pressentiu a ameaça da máquina e a tragédia do Aprendiz de Feiticeiro.” E, surpreendo-me com uma linguagem de estudioso, que deve ter sido a sua antes de endurecer na selva, conta-me de um capítulo inicial da Criação, em que os objetos e utensílios inventados pelo homem, e usados com a ajuda do fogo, rebelam-se contra ele e o matam; as tinas, os comales, os pratos, as panelas, as pedras de moer e as próprias casas, em pavoroso apocalipse que os cães enraivecidos e amotinados urdem com seus latidos, aniquilam uma geração humana… Disso me fala ainda quando elevo os olhos, e me vejo ao pé do paredão de rocha cinza em que aparecem profundamente cavados os desenhos que se atribuem ao demiurgo vencedor do Dilúvio e repovoador do mundo, por uma tradição que chegou aos ouvidos dos mais primitivos habitantes da selva de baixo. Estamos aqui no Monte Ararat deste vasto mundo. Estamos onde a Arca chegou e encalhou com surdo embate, quando as águas começaram a se retirar e o rato retornou com uma espiga de milho entre as patas. Estamos onde o demiurgo jogou pedras às suas costas, como Deucalião, para dar nascimento a uma nova geração humana. Mas nem Deucalião, nem Noé, nem Utnapisthim, nem os Noés chineses ou egípcios, deixaram sua rubrica fixada pelos séculos no lugar de sua chegada. Aqui, em contrapartida, há enormes figuras de insetos, de serpentes, seres do ar, bestas das águas e da terra, figurações de luas, sóis e estrelas, que alguém cavou aí, com ciclópico pincel, mediante um processo que não conseguimos explicar. Mesmo hoje seria impossível erigir em tal lugar o andaime gigantesco que levantasse um exército de entalhadores de pedras até onde pudessem atacar o paredão de rochas com suas ferramentas, deixando-o tão firmemente marcado como está… Agora Frei Pedro me leva ao outro extremo dos Signos e me mostra, daquele lado da montanha, uma espécie de cratera, de âmbito fechado, em cujo fundo crescem pavorosas ervas. São como gramíneas membranosas, cujos ramos têm uma mórbida redondez de braço e de tentáculo. As folhas enormes, abertas como mãos, parecem de flora submarina, por suas texturas de madrépora e de alga, com flores bulbosas, como faróis de plumas, pássaros pendurados por uma veia, espigas de larvas, pistilos sanguinolentos, que saem de suas bordas por um processo de erupção e rompimento, sem conhecer a graça de um caule. E tudo isso, lá embaixo, enreda-se, emaranha-se, amarra-se, num vasto movimento de posse, de acoplamento, de incestos, ao mesmo tempo monstruoso e orgiástico, que é suprema a confusão das formas. “Estas são as plantas que fugiram do homem num começo” – diz-me o frade. “As plantas rebeldes, que se negaram a servir-lhe de alimento, que atravessaram rios, escalaram cordilheiras, saltaram por sobre os desertos, durante milênios e milênios, para se ocultarem aqui, nos últimos vales da Pré-história.” Com mudo espanto passo a contemplar o que em outros lugares é fóssil, pinta-se num vão ou dorme, petrificado, nas nervuras da hulha, mas continua vivendo aqui, numa primavera sem data, anterior aos tempos humanos, cujos ritmos talvez não sejam os do ano solar, lançando sementes que germinam em horas, ou, pelo contrário, demoram meio século para formar uma árvore. “Esta é a vegetação diabólica que rodeava o Paraíso Terrestre antes da Culpa”. Inclinando sobre o caldeirão demoníaco, sinto-me invadido pela vertigem dos abismos; sei que se me deixasse fascinar pelo que vejo aqui, mundo do pré-natal, pelo que existia quando não havia olhos, acabaria por me jogar, por me afundar, nessa tremenda espessura de folhas que desaparecerão do planeta, um dia, sem terem sido nomeadas, sem terem sido recriadas pela Palavra – obra, talvez, de deuses anteriores a nossos deuses, deuses postos à prova, inábeis em criar, ignorados porque jamais foram nomeados, porque não adquiriram contorno nas bocas dos homens…”
Os Passos Perdidos, de Alejo Carpentier [Martins Fontes, tradução de Marcelo Tápia].




