Visões de um mundo que persiste

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“Assim como outros povos tiveram civilizações marcadas pelo símbolo do cavalo ou do touro, o índio com perfil de ave pôs suas civilizações sob a invocação da ave. O deus volante, o deus pássaro, a serpente emplumada, estão no centro de suas mitologias, e tudo que é belo para ele se adorna de plumas. De plumas foram as tiaras dos imperadores de Tenochtitlán, como são hoje de plumas os ornamentos das flautas, os objetos de jogo, as vestimentas festivas e rituais dos que aqui conheci. Admirado pela revelação de que vivo agora nas Terras da Ave, emito alguma fácil opinião a respeito da provável dificuldade de achar, nas cosmogonias desta gente, algum mito coincidente com os nossos. Frei Pedro me pergunta se li um livro chamado Popol-Vuh, cujo próprio nome me era desconhecido. “Nesse texto sagrado dos antigos quitchés” – afirma o frade -, “inscreve-se já, com trágica adivinhação, o mito do robô; mais ainda: acredito que é a única cosmogonia que pressentiu a ameaça da máquina e a tragédia do Aprendiz de Feiticeiro.” E, surpreendo-me com uma linguagem de estudioso, que deve ter sido a sua antes de endurecer na selva, conta-me de um capítulo inicial da Criação, em que os objetos e utensílios inventados pelo homem, e usados com a ajuda do fogo, rebelam-se contra ele e o matam; as tinas, os comales, os pratos, as panelas, as pedras de moer e as próprias casas, em pavoroso apocalipse que os cães enraivecidos e amotinados urdem com seus latidos, aniquilam uma geração humana… Disso me fala ainda quando elevo os olhos, e me vejo ao pé do paredão de rocha cinza em que aparecem profundamente cavados os desenhos que se atribuem ao demiurgo vencedor do Dilúvio e repovoador do mundo, por uma tradição que chegou aos ouvidos dos mais primitivos habitantes da selva de baixo. Estamos aqui no Monte Ararat deste vasto mundo. Estamos onde a Arca chegou e encalhou com surdo embate, quando as águas começaram a se retirar e o rato retornou com uma espiga de milho entre as patas. Estamos onde o demiurgo jogou pedras às suas costas, como Deucalião, para dar nascimento a uma nova geração humana. Mas nem Deucalião, nem Noé, nem Utnapisthim, nem os Noés chineses ou egípcios, deixaram sua rubrica fixada pelos séculos no lugar de sua chegada. Aqui, em contrapartida, há enormes figuras de insetos, de serpentes, seres do ar, bestas das águas e da terra, figurações de luas, sóis e estrelas, que alguém cavou aí, com ciclópico pincel, mediante um processo que não conseguimos explicar. Mesmo hoje seria impossível erigir em tal lugar o andaime gigantesco que levantasse um exército de entalhadores de pedras até onde pudessem atacar o paredão de rochas com suas ferramentas, deixando-o tão firmemente marcado como está… Agora Frei Pedro me leva ao outro extremo dos Signos e me mostra, daquele lado da montanha, uma espécie de cratera, de âmbito fechado, em cujo fundo crescem pavorosas ervas. São como gramíneas membranosas, cujos ramos têm uma mórbida redondez de braço e de tentáculo. As folhas enormes, abertas como mãos, parecem de flora submarina, por suas texturas de madrépora e de alga, com flores bulbosas, como faróis de plumas, pássaros pendurados por uma veia, espigas de larvas, pistilos sanguinolentos, que saem de suas bordas por um processo de erupção e rompimento, sem conhecer a graça de um caule. E tudo isso, lá embaixo, enreda-se, emaranha-se, amarra-se, num vasto movimento de posse, de acoplamento, de incestos, ao mesmo tempo monstruoso e orgiástico, que é suprema a confusão das formas. “Estas são as plantas que fugiram do homem num começo” – diz-me o frade. “As plantas rebeldes, que se negaram a servir-lhe de alimento, que atravessaram rios, escalaram cordilheiras, saltaram por sobre os desertos, durante milênios e milênios, para se ocultarem aqui, nos últimos vales da Pré-história.” Com mudo espanto passo a contemplar o que em outros lugares é fóssil, pinta-se num vão ou dorme, petrificado, nas nervuras da hulha, mas continua vivendo aqui, numa primavera sem data, anterior aos tempos humanos, cujos ritmos talvez não sejam os do ano solar, lançando sementes que germinam em horas, ou, pelo contrário, demoram meio século para formar uma árvore. “Esta é a vegetação diabólica que rodeava o Paraíso Terrestre antes da Culpa”. Inclinando sobre o caldeirão demoníaco, sinto-me invadido pela vertigem dos abismos; sei que se me deixasse fascinar pelo que vejo aqui, mundo do pré-natal, pelo que existia quando não havia olhos, acabaria por me jogar, por me afundar, nessa tremenda espessura de folhas que desaparecerão do planeta, um dia, sem terem sido nomeadas, sem terem sido recriadas pela Palavra – obra, talvez, de deuses anteriores a nossos deuses, deuses postos à prova, inábeis em criar, ignorados porque jamais foram nomeados, porque não adquiriram contorno nas bocas dos homens…”

Os Passos Perdidos, de Alejo Carpentier [Martins Fontes, tradução de Marcelo Tápia].

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