AVISO IMPORTANTE: por inúmeros motivos, mas principalmente devido ao ritmo e à duração, esse texto foi feito pra ser lido enquanto o leitor acende e fuma sozinho e silenciosamente um cigarro de maconha, preferencialmente pequeno, mas não importando se sativa ou indica.
O que fazer com os restos?
Estávamos numa festa. Bem meia-boca, por sinal. Joel chegou dizendo que tinha uma ideia. Diante das possibilidades, nenhum flerte sendo sustentado naquele momento, nenhuma música dançante rolando, Joel entendeu aquilo como uma deixa.
– É algo que não vai exigir o menor esforço, essa ideia. – disse, encontrando, com algum custo, um pequeno espaço pra se sentar no sofá logo ao meu lado.
Puxei pro meu colo um livro, uma edição em capa dura, bem velha, da antologia poética do Mario de Sá-Carneiro, deixado ali na mesa de centro por algum veterano jamais mencionado, mas que bem poderia estar pensando, quando abandonou o livro ali, em dar àquele exemplar um uso análogo ao das revistas das salas de espera dos consultórios odontológicos. Só que junto com o livro, e sobre ele, vinham um dixavador e uma sedinha Colomi. Comecei a dixavar um pedaço de maconha que Joel retirou do bolso e me entregou.
– É uma ideia. – ele disse. – tem a ver com maconha.
– Não sei se quero ouvir.
– Você não tem escolha. Ao contrário do que você deve estar imaginando…
– Não estou imaginando nada. – na verdade eu estava imaginando, sim, alguma coisa, mas alguma coisa que era completamente diferente daquilo que ele imaginava que eu pudesse estar imaginando, nada que ver com a conversa que entabulávamos. Imaginava (eu) um cenário festivo um pouco mais permissivo, divertido, e mais libertador do que aquele em que estávamos, que nada mais era do que uma extensão dos nossos próprios dias comuns, só que com um pouco mais de música, mais fumaça, mais gente, e menos luz.
– …e espere eu chegar até o final pra me dar os parabéns…
– Comece quando quiser. – depositei a maconha dixavada numa seda que abri na palma da mão.
– Eu não tive a ideia enquanto fumava um, não senhor. Saiba que foi enquanto procurava por pontas perdidas pela casa pra conseguir elaborar um fininho que fosse.
– A ideia dessa vez veio da abstinência, então?
Era uma época difícil. Ele olhou pra cima pra pensar e responder:
– Sabe que eu acho que deve ter vindo depois que dei a primeira tragada?, mas, isso, olha, isso não importa.
Passei um pouco de saliva pra colar as juntas. Senti naquele instante que poderia estar sendo observado, não por uma mulher, como eu gostaria, mas por alguém, sem nenhum gênero ou sexo visível ou definido, interessado apenas no baseado que eu bolava, mais ou menos como esses autômatos, esses gólens de cânhamo que brotam nos momentos oportunos de uma festa logo antes de acendermos o dito cigarrinho de artista, e passá-lo, obrigatoriamente, a essas rodas espontâneas que acabam se formando ao redor de nós.
– Essas pontas, Judeu. Esses restos de baseados – apontou para as pontas dispostas ao redor de um cinzeiro do qual só tomei conhecimento naquela hora – acho que posso dar um destino pra elas, pras pontas. Um destino melhor, mais lucrativo, mais inteligente.
– Um destino? – cogitei – O destino de toda ponta é juntar-se a outra ponta pra que, juntas, formem um baseado maior e mais chapante. Um monte de pontinhas de mãos dadas transcendendo o próprio ego num ritual queimante e entorpecente, num primitivo ritual reptiliano, sabe?, na região reptiliana do cérebro. Ou algo assim. É o cérebro coletivo das pontas trabalhando pra chapar, coletivamente ou não, aqueles que irão fumar o baseado que elas produzirem.
– Já pensou em colocá-las em uma moldura? – o olhar que ele me deu depois de dizer aquilo parecia exigir que eu reagisse àquilo achando aquilo uma boa ideia.
– Oi…? – foi tudo o que consegui dar a ele.
Como assim, moldura? Pensei.
– A ideia consiste em colocar as pontas, essas pontas que sobram dos baseados que a gente fuma todo dia, colocá-las em pequenas molduras e vendê-las na Internet, como se tivessem sido fumadas por gente famosa. Tipo alguma personalidade, alguém vinculado ao universo da cannabis.
– É essa a ideia? Atribuir as pontas à autoria de alguém famoso e lucrar com isso?
– Por que não?
– Como assim? Eu desacredito, bicho. De onde brotou isso? De qual centelha? Cara, vão ter que estudar o seu cérebro, cara, ou o que quer que você tenha aí dentro, vão acabar tendo de estudar isso aí depois que você morrer, bicho, certeza. – procurei por um isqueiro e não achei. – Por acaso teria um isqueiro? – disse, com o cigarro entre os dentes.
Ele tirou do bolso e acendeu pra mim, achando graça no que eu dizia, entendo aqueles dizeres como um atestado de sua originalidade. Dei duas tragadas antes de entregar-lhe o banza.
– Acho que devo ter sido influenciado por algumas coisas que vi recentemente. – disse num tom confessional.
– O quê? – perguntei a ele.
– Fiquei sabendo que alguém, lá nos Estados Unidos, pagou uma fortuna por um chiclete mastigado pela Britney Spears, algum fã maluco, deve ter sido. Daí comecei a pensar: e por uma ponta fumada? Quanto alguém desembolsaria por isso? Talvez, meu caro, seja o lance de pensarmos nos fãs, e não exatamente nos maconheiros. Esqueça o pensamento maconheirístico. Num dia desses vi também algo sobre um sujeito que recolheu as cercas de arame farpado da prisão em que guardaram o Nelson Mandela. E o cara, parece, vendeu a cerca metro por metro e fez uma grana grande com isso. Quem é que compra essas coisas, e por quê? Ora, porra, tem fãs que pagam por 120.000 dólares num óculos usado pelo John Lennon!
– Que eles sabem que foi do John Lennon, claro. – fiz questão de fazer aquele adendo. – Tem essa pequena diferença, se você não percebeu. São objetos autênticos.
– Ótimo! Chegou sozinho aonde eu queria que você chegasse. Ótimo! Veja bem: as consequências – disse com a voz presa junto com a fumaça dentro do pulmão. – Se der errado, o que é que pode dar errado? Digo: se der certo, temos muita coisa a ganhar, mas se der errado, não temos nada a perder! Sacou? Ou você acha que alguém, o quê, irá nos processar por isso?
– Ok. – comecei a levá-lo a sério com a intenção de fazê-lo mudar de ideia ao ver que estava conseguindo me convencer. – Então você coloca uma ponta na moldura, e diz que foi o Marcelo D2 que fumou, e vende na Internet pra algum fã maluco que queira comprar? É isso? E se o Marcelo D2 vier dizer que ele não fumou aquela ponta?, digo, a ponta não. O baseado. E se ele disser que não tem nada a ver com isso?
– E como ele vai poder provar que não?
A resposta dele, por algum motivo epistemologicamente inexpressável naquela hora, me irritou mais do que eu gostaria de admitir.
– Ora pois, porra! E como é que VOCÊ vai provar que foi o Marcelo D2 que fumou aquela ponta?
Ele deu risada.
– E você acha mesmo que eu precisaria provar? Tem tanta gente idiota no mundo, que, com certeza vão comprar sem nem pedir nenhum comprovante, nenhuma evidência.
– Brilhante ideia essa sua. O sucesso dela depende da imbecilidade dos outros. Você está precisando tanto assim de dinheiro? Isso me lembra aqueles caras que fabricavam relíquias na Idade Média e vendiam com a alegação de que, sei lá, um manto, uma peça de roupa, uma coroa, uma taça, era algo que pudesse ter sido usado por algum santo, ou até por Jesus. Eles tinham a fé tola de seus fiéis, mas e você?
Havia gente em volta, mas, surpreendentemente, nenhuma roda se formou ao redor do baseado. Éramos os únicos a desfrutar daquela peça.
– Tá aí um assunto em que a humanidade nunca vai decepcionar a gente. Sempre teremos imbecis. O fanatismo que os fãs nutrem pelos famosos, isso ultrapassa qualquer crença religiosa. Mas se eles quiserem alguma evidência melhor, colocarei junto na moldura alguma foto com a ponta do baseado no chão, sendo resgatada do momento em que acabou de ser defenestrada pela celebridade em questão.
– Você não pode acabar sendo preso por isso?
– Com base em quê? Qual poderia ser a acusação?
Pensei, mas não consegui chegar em nada. Peguei das mãos dele o baseado e dei mais algumas tragadas, deixando sair entre um sopro e outro:
– Abuso do bom-senso? Não há nenhuma lei pra isso. Acho que seria melhor se você consultasse algum advogado antes. Alguém que entenda algo sobre propriedade intelectual, copyright, ou talvez, não sei, talvez isso não seja algo tipo calúnia? Forjando evidências falsas? Falsidade ideológica? Uso de informação privilegiada?
– Nada nos impede também, de, no futuro, quando tivermos mais capital de giro, de irmos atrás das verdadeiras pontas deixadas por esses artistas.
– E ficarmos tipo de tocaia nas rodas de baseado das pessoas famosas? Mais ou menos como papparazzis da droga? É isso? 5 anos de faculdade pra terminarmos assim?
– Por isso é que precisamos pegar só essas celebridades que sabemos serem maconheiras, e que, de alguma forma ou de outra, sejam entusiastas do canabismo.
– Será que isso não se enquadra em nenhum tipo de roubo? Acho que isso não pode ser chamado de roubar… – eu disse, e ele percebeu que a minha sugestão era um sinal de que eu já estava começando a achar aquilo uma boa ideia.
– Pra alguém que tá na fissura, sem nada pra fumar, roubar um baú de pontas é um crime de lesa-pátria, Mas pra quem tem maconha sobrando, o suficiente pra dispensar a ponta…
– As pontas são de Jáh! – pensei ter ouvido alguém pronunciar, no extremo equidistante do sofá, alguma miragem intangível, turvada pela fumaça.
– É claro que teríamos que forjar algumas vendas anteriores. – ele recomeçou, diabólico e pragmático. – Seria bom se gastássemos uma graninha, um capital inicial, pra anunciarem no jornal, algum portal de internet, a notícia de que uma dessas molduras tenha sido vendida por um preço relativamente alto. Porque se alguém ficar sabendo que tem gente pagando por isso, vai querer pagar também, vai querer imitar a idiotice. E, obviamente, não terá como saber que a venda foi falsa, ou que sequer chegou a existir. Ou, quer dizer, pode ser uma auto-venda, tipo essas que acontecem no mercado das artes e que os artistas fazem quando querem valorizar as próprias obras.
– E, que mal lhe pergunte – não hesitei em perguntar – você pensou em quais celebridades seriam essas?
Passei pra ele o baseado, e espreguicei-me no sofá, não sem com isso incomodar os outros, estranhos para mim, que se empoleiravam ali, entre o sofá e a penumbra canábica. Senti que eles estavam se sentindo impelidos a saírem. Senti que seria melhor se assim fosse. Olhei melhor e percebi que era um casal muito envolvido nos beijos em que se davam. Na verdade, com tantos braços e pernas, e um acoplamento tão bem sucedido entre os dois sexos, aquela forma sombria mais se assemelhava a alguma criatura tentacular, habitante das profundezas abissais dos oceanos. Melhor não mexer com ela.
– Bom, além, obviamente, do Marcelo D2, pensei no Caio Blat, Gilberto Gil, Fernando Gabeira, Fernado Henrique, Ronaldo Fenômeno, Edmundo.
– Nenhuma mulher?
– A Camila Pitanga.
– A Camila Pitanga fuma maconha? – a fumaça saindo bruscamente exalava um tipo de dúvida muito pessoal de minha parte.
– Todo mundo fuma maconha. Mas também, bom, tem a Rita Lee. E também considerei o Caco Ciocler, que ficou muito bem depois da cirurgia.
– Não vejo muito potencial neles. Você considerou a hipótese de utilizar celebridades americanas? A Kirsten Dunst, o Robert Downey Jr, quem sabe? O Ahston Kutcher? Matthew McConaughey… como chama aquele carinha que acendeu um baseado no meio do programa de televisão?
– Aquele… James Franco! Boa! Boa ideia. – tirou o celular do bolso pra anotá-la.
– Dependendo, a gente consegue envelhecer uma ponta pra fazer parecer que ela foi fumada pelo Carl Sagan, sei lá. Por que não? Ou pelo David Foster Wallace.
Pude ver que ao ouvir aquilo o seu sorriso triplicava.
– Foi por isso que vim contar pra você primeiro. – disse, consagrando-se vitorioso.
Comecei a pensar que talvez aquela informação pudesse ser valiosa demais pra ser passada assim, no meio de um monte de gente, com tantas chances de alguém acabar ouvindo. Notei que uma garota, muito bonita, do meio da sala olhava para nós dois. Ela chegou discretamente, e sem dizer muita coisa, apenas pegou das mãos de Joel aquilo que restava ser um baseado.
– Sabe quem fumou isso aqui, garota? – ele perguntou pra ela.
– Quem? – ela quis saber, dando uma longa e última tragada.
– A Whoopi Goldberg.
Leonardo Stockler
Eu tenho uma ponta fumada pelo Woody Allen numa festa em NY. Nunca mais tirei da boca.
A ponta de pontonha ahaha
gostei!
Texto maravilhoso. É tão bom poder ler um texto falando da maconha sem tabus, véi.