Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em conturbérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.
Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão…
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!
Augusto dos Anjos
Preparando-se para a maratona televisiva, Maykon, vestido com a usual bermuda de depois do almoço, começa a expelir pelo bóga os primeiros gases que a feijoada de hoje vem forjando desde a ingestão, nos lençóis freáticos do cuecão.
O controle remoto numa mão e o baseado na outra e o isqueiro na outra, pois que Maykon é um marmanjo com três mãos, ele prolonga um suspiro cansado, de dever cumprido. Sem contestar qualquer arroto, uma sacolejada saborosa, como que couve com farofa, sobe-lhe à garganta só pra ser mandada de volta pelo esôfago.
Há uma maratona televisiva pela frente. Um programa sem intervalos nem comerciais. Sem cortes, com a prometida duração de, pelo menos, oito horas. Sem replays, nem narradores obsoletos. Sem comentaristas folgados, nem ex-atletas sendo salvos do ostracismo.
Maykon acompanha, em tempo real, os comentários e as piadas que seus amigos soltam pela rede e compartilham pela rede.
Maykon acredita que está se divertindo muito mais que todos eles. Acredita que está diante do entretenimento mais prenhe de sentido em toda a História do Brasil (com H e B maiúsculos).
Mais do que a Copa do Mundo de futebol de 1970, por exemplo.
Um entretenimento tão sério que muitas gentes ficam incomodadas com quem quer que venha a chamar aquilo de entretenimento. Muito embora entre os espectadores tenha quem esteja rindo, se assustando, se comovendo, e alguns até fingindo indiferença, fingindo que não é com eles, não há como negar esse gosto ambíguo de comédia e de tragédia que sempre sentimos tomar conta de nossa boca quando testemunhamos os assolantes fenômenos políticos da Nação (com N maiúsculo). No caso de hoje, um entretenimento, ou espetáculo de grandes proporções e bastante promissor no que diz respeito à rentabilidade temática que guarda para as próximas semanas, quiçá para as próximas décadas.
Além de uma fonte quase que inesgotável de detalhes semânticos e semióticos que dariam preguiça prévia na cabeça de qualquer teórico da Área (com A maíusculo).
Falamos do impítima da excelentíssima presidentx Dilma Vana Roussef.
Desfrutada à meia-luz numa sala fechada pelas cortinas, e um ar-condicionado potente com aquele ronronado constante, não há porque optar por qualquer outra coisa que não seja esta civilização feita de conforto e canalhice.
Para Maykon, a digestão de três pratos bem servidos de feijoada com farofa, couve e arroz branco, é mais do que o suficiente para acompanharmos o impítima.
Assim como ter três mãos também permite um manejo bem mais destro sobre os objetos tecnológicos ofertados pela civilização de consumo.
De algum modo, razões não se assentam ainda em nenhuma vertente contemporânea dos estudos anatômicos da ciência ocidental, o corpo de Maykon, a partir de uma aliança inédita entre o estômago e o cérebro, deu um jeito de programar-se voluntariamente para fazer coincidir dois momentos vaidosamente importantes da tarde de seu proprietário: a expulsão da matéria fecal resultante da feijoada e o discurso político dos deputados federais em seus votos impítmicos, os quais ele assiste pela TV, reagindo o tempo todo com guinchos e grunhidos guturais.
Mas ele ainda não sabe que seu corpo está planejando pregar-lhe uma Peça (com P maiúsculo).
Tudo o que chegou até agora foram só uns peidos. De qualquer forma, o que ele sabe, sempre soube, é que aqueles três pratos fartos de feijoada precisariam de pelo menos três descargas pra descerem o cano fino do banheiro do seu quarto – o único lugar socialmente admissível em que se poderia dar uma cagada tão violenta.
E que durando o impítima pelo menos umas 8 ou 9 horas, em algum momento da transmissão, ela vai ter de se levantar, vai ter de interromper o filme, vai ter de ir ao banheiro. Calamitosamente.
Sem temer pela perda de alguns minutos do conclave, Maykon pensa que, quando chegar a hora, ele deverá levar o celular pra dentro do banheiro, e de lá continuar assistindo à transmissão pelo stream do canal do Youtube.
E, pensando na delicinha que é ter todos esses dispositivos, gadgets, privadas inteligentes e outros objetos de conforto a bordo da aventura da classe média-alta, pra ajudar na digestão ele acende o baseado, o digestivo, o faz-me-rir, bolado com aquela sedinha marrom da Kingsize e fumado pela mão que não é a da esquerda e nem a da direita, mas aquela que fica entre as duas, mais próxima da boca.
A mão que sai do peito, uma má-formação congênita que dá muito medo em quem ainda não conhece o Maykon e acabou de conhecê-lo pela primeira vez. A razão pela qual nosso herói só sai na rua vestindo um moletom. Uma feiura. Não só por ser uma mão diretamente ligada ao peito e por apresentar uma ossatura plenamente desenvolvida, mas também por oferecer ainda a impactante visão de dois dedões, um voltado para o Leste e o outro voltado para o Oeste, na outra extremidade da palma, e ainda um pseudo-punho capaz de fazer movimentos giratórios para qualquer lado, cobrindo todos os 360° graus e usando o peito como plataforma.
Após uma cirurgia eternamente adiada pelo sistema público de saúde, Maykon desistiu de amputar este membro excepcional, e passou a exercitá-lo, chegando mesmo a alcançar velocidades consideráveis com sua rotação.
Usar a tal mãozinha pra fumar um baseado, em seus momentos solitários, é um luxo incontestável para Maykon, quando ele está plenamente instalado em sua intimidade.
Fumaça vem e fumaça vai, no terceiro pega ele percebe que o baseado está com um gosto estranho. Não é de amônia, nem de mofo. É um cheiro mais intestinal, difícil de ser descrito por alguém que nunca fumou um trem com esse cheiro. Não é aquele cheiro de quando a maconha começa a esfarelar, nem de quando ela fica muito tempo guardada no armário.
Era como o cheiro de alguma fruta tropical cítrica mastigada e depois cuspida por um réptil, deixada pra apodrecer dentro de um pântano. O cheiro paralisante de uma paranoia de morte, como a brisa que soprará do baseado derradeiro, uma fragrância até então desconhecida pela botica ocidental, e ainda mais pela naza do Maykon.
Neste instante ele está testemunhando o início da pior bad trip de sua vida. Aquela Bad Trip (com B e T maíusculos) de fazer história; aquelas que mudam para sempre o caráter de uma pessoa – a curva de aprendizado; aquela que deixará saudades. Uma bad trip canábica aumentada de maneira implacável pela fúria intestinal de arrotos e peidos apimentados, derivados de dolorosos peristaltismos, exponencialmente alavancada pelo falatório ininterrupto e prolixo da classe política que habita o tubo luminoso da TV, em direção a patamares inimagináveis de autoflagelação psíquica.
Com o aumento da chapação, proporcionada por consecutivas tragadas (sem que o gosto graxo da droga o impeça de seguir adiante), Maykon tem seus sentidos embaralhados, chegando mesmo, em certo ponto, a perder a capacidade de avaliar se os seus peidos estão saindo em forma puramente gasosa, ou acompanhados de líquidos e/ou outros detritos.
Porque a cueca parece seca e molhada de algum jeito, e ele continua deitado ali, os olhos também paralisados, incapazes de olharem pra outro ponto do campo visual que não seja o televisor.
A mão do meio, contudo, continua levando o baseado à boca, e da boca ao cinzeiro, equilibrado na barriga. Ela, a mão, adquiriu certa independência desde que a paralisia instalou-se no corpo de Maykon, depois da décima sexta tragada no baseado, quando ele perdeu o movimento total dos membros, dos apêndices, e do esfíncter.
A visão, já há algum tempo, turvou-se, e as coisas têm se apagado lentamente. O famoso teto preto que deve anteceder o desligamento completo em caso de morte. Ou o teto preto que aparece quando desmaiamos.
Tendo já lido bastante a respeito de experiências fora do corpo, aquelas que algumas pessoas alegam ter quando em coma, ou durante uma cirurgia, quando veem a si mesmas do alto da sala de um hospital, a ideia circula pela cabeça de Maykon, produzindo nele pelo menos o desejo de alguma experiência mística decorrente da bad trip, ou então Maykon.
A dor de intestino e o falatório da TV, que agora ele percebeu que está num volume excessivamente alto.
Como se as os ouvidos começassem a escorrer também, junto com um caldo roxo-escuro de merda cerebral, Maykon entra em um estado semiconsciente de repetitivas, porém randômicas, associações entre substantivos, adjetivos, símbolos, narrativas, numerais, e conceitos retirados de repertórios recém frequentados, em ambientes presenciais ou virtuais, geralmente ativados por falsos alarmes de sobrevivência em algumas regiões reptilianas do cérebro.
Vulnerável às frequências televisivas, a trip de Maykon é excessivamente bombardeada pelas sugestões daquilo que passa na televisão: a votação do rito de impeachmant, na Câmara dos Deputados, em Brasília-DF, na tarde do domingo de 17 de abril de 2016.
A feijoada reage mal com o baseado, e o bolo alimentar parece ter inchado de vez no ventre de Maykon. Essa dor de barriga terá até nome:
O Último Revertério.
Não demora para que a imaginação de Maykon comece a se deliciar com uma imitação daquela cena de Alien – O Oitavo Passageiro, em que o Alien sai explodindo de dentro da barriga do cientista, só que no lugar do Alien dessa vez seria algum deputado, vestido com o terninho, todo arrumado e cheiroso, vestido para a democracia, com o braço direito em 90°, erguido, e o dedo indicador apontado pra cima, puxando as entranhas.
Além de tudo, há a impressão de que ele conhece aquele povo todo, os deputados, de algum lugar. Uma sensação de familiaridade advinda sabe-se-lá de onde, e em relação a todos eles: o Eduardo Cunha, o Maluf, a escória & a patota, os da Bancada da Bala e do Boi, e até os metidos a sabichões da esquerda esclarecida. Sob a pálpebra que se fecha, em urros de dor intestinal, o falatório do impítima é como uma conversa calorosa entre conhecidos.
Mais do que o clima tenso do Congresso, há esse sentimento de cumplicidade mútua que faria Maykon acreditar ser capaz de convencer qualquer um dos deputados ali a mudar de voto. Uma empatia sem freios, de conversas amistosas, fala mansa e baixa, cheia de bossa, que pacificaria a República Federativa – uma iniciativa que restituiria a ordem à Nação e endireitaria o governo Dilma até o final do mandato.
Era como se houvesse um senso comum de vizinhança entre eles, uma conduta de jardim de escola, ou de fraternidade republicana, com direito até a piadinhas sobre a sexualidade do amiguinho e o mais camarada deles indo te buscar num puteiro, todo mundo se conhecendo meio que desde a infância, ali, antes que a imagem de um duodeno estremelicante entupisse o fluxo de pensamento de Maykon.
Roubando-lhe a Brisa (maiúscula).
A voz interna se confunde e passa a configurar comandos impossíveis de serem seguidos, repetidas vezes, com pequenas alterações entre uma ordem e outra. Como sonhos febris, cheios de detalhes obsessivos, mas sem que o corpo consiga transpor a barreira entre a imobilidade do sonho e o movimento do real.
Os movimentos do corpo de Maykon se resumem a alguns gemidos e espasmos.
Sua mente, no entanto, a todo instante encontra aqueles labirintos irritantes criados em situações de pesadelo, como quando em um sonho estamos procurando um objeto, a outra parte de um par de sapatos, por exemplo, um sapato vermelho, que seja, sob uma montanha de outros sapatos, no meio de uma festa onde todos usam sapatos coloridos e quando acontece de você encontrar o sapato vermelho você olha para a parte do par que estava na sua mão e não era um sapato vermelho.
Era um sapato de outra cor.
E na televisão, os votos, os votos sucedem-se, um depois do outro.
– Como vota, deputado?
Ele, Maykon, gostaria de desfrutar melhor do espetáculo. Gostaria até de ter apostado no bolão do bar. Mas agora, na bad, abandonada aquela inocência de há pouco, cada detalhe tornou-se doloroso demais no meio desse turbilhão de arrotos e peidos. É um pacto fáustico. Não há volta. O cheiro do baseado vai desaparecendo agora que a brasa por fim apagou-se no cinzeiro e o aroma que impregna a câmara-quarto tem a espessura de um cheirum abafado de almoxarifado onde os funcionários parecem ter guardado as fraldas usadas pela turma da ala idosa de um hospital de loucos.
A boca de um deputado do PSC é aberta a dentadas, e serve como uma pia batismal respingada de merda recém-nascida. Outro deputado, da coligação, antes de proferir o discurso, foi escalpelado pela piroca de um travesti nível 4, e quando puseram o microfone na sua frente tudo o que conseguiu expressar foi um urro cheio de ira e revolta.
Outro deputado parece ter dedicado seu voto ao Godzilla.
E é tudo a coisa mais importante que já aconteceu. As mensagens de agradecimento que preenchem as almofadas, o lençol, o ar-condicionado, as coisas são incompreensíveis, como se a glândula pineal de Maykon fosse se calcificando com o cinismo dos deputados, e, incapaz de olhar nos olhos qualquer uma daquelas aberrações, amigas suas, ele visse a si mesmo, abismos de dúvida, incapaz de aceitar que aquilo tudo, o impítima, a feijoada, a terceira mão, que tudo aquilo esteja acontecendo.
Retorcido em um torvelinho intestinal de ideias humanitárias, o sentimento que domina essa atual etapa da bad trip é a Incredulidade (com I maiúsculo e em itálico).
O gatilho, ele raciocina, deve ser alguma substância química acidentalmente depositada neste pedaço de maconha utilizado para confeccionar o baseado. É ele que ativa esse alarme de transbordamento no desconfiômetro. O mundo civilizado, como o resultado de uma equação, não parece crível o bastante. Eu nunca vi um baseadinho com tanta ideia errada, tanta informação rearranjada, caminhos perigosos.
Não há para onde desviar o olhar, nem para quem transferir a culpa.
O mundo tornou-se obscuro novamente, cheio de falsos profetas, e falsos ídolos. Falsas explicações. Explicações fáceis.
Mercadores do pensamento. Vinganças imaginárias.
Parando pra pensar: qualquer mente criativa poderia passar o resto da vida encarando uma parede branca, repetindo e procurando nela alguma pergunta civilizatória inconformada e intraduzível, para a qual nenhuma resposta será completa o bastante.
Conspirações compram-se em balde: nenhuma informação permanecerá por muito tempo solta por aí, flutuando; logo alguém conseguirá amarrá-la aonde deve. O laço que se rompeu. O limite da banda da Internet, a queda de um avião, investigações suspensas de uma hora pra outra, fetiches envolvendo escutas telefônicas, karmas instantâneos, chuvas fora de época, leis ruralistas, tangentes ideológicas, a geometria das opiniões.
Quantos insights caberiam em uma timeline?
Qual é o nome que se dá para aquela vontade que combina dentro de si o desejo de nulidade e a angústia de pertencermos a uma humanidade que é incapaz de expressar o tamanho do asco que sente por si mesma, terminando por sonhar com liquidificadores de fezes e regurgito?
Tudo isso porque alguns são pró-ativos o bastante pra defenderem seus próprios interesses. A pachorra. Alguém que foi lá e fez. A ação humana – a empresa humana. Alguém que não está preocupado em contemplar a beleza de qualquer coisa, planta, bicho, ou o céu, antes de separar pra si e pros outros um pouco de dever e de trabalho.
Ninguém deixará nenhum assunto morrer. Nada ficará por isso mesmo. Ninguém deixará de cagar em um jardim bonito, não importa se tem dono.
O que fodeu a porra toda é que alguém cresceu o zóio lá atrás, em algum lugar da nossa história. Gente que não estava satisfeita com o seu lote.
As ruínas do passado são mais interessantes que as obras do presente. Não há como juntar todas as peças do mosaico: falta tempo e vontade, e estamos comovidos demais com as imagens parciais, pequenas partes de um rosto maior e mais sombrio que nunca chegaremos a contemplar diretamente.
Não há nenhuma arma que os impeça de continuarem tomando decisões.
Como que preso ao instrumento de tortura, balbuciando maldições moralistas, as horas, para Maykon, transcorrem em ritmos alternados. Entre picos de epifanias brilhantes de lucidez, como algum tipo de orgasmo ontológico que os estudantes de humanas perseguem sem saber, há verdadeiros vales de desgosto e ressentimento. E é como se ele tivesse de passar por um pra alcançar o outro, liquefazendo-se repetidas vezes durante o processo.
(Esta feijoada jamais sairá inteiramente do teu corpo).
Recentemente, por exemplo, ele esteve durante alguns minutos (que foram como uma vida inteira, do nascimento à morte) vivendo e alcançando uma utopia seborreica, um presente simultâneo em que era um messias predestinado, cujos sermões nasciam de suas crises estomacais. Um messias citado nos versos de antigos povos caipiras que esperaram milênios por sua chegada: o messias com uma terceira mão, colada no peito.
A mão que era a marca esperada por aqueles que ao longo de gerações tiveram suas vidas arruinadas pelos desmandos e desmanches promovidos pelas mãos esquerdas e direitas: agora chegava a Era da Terceira Mão, onde todos seriam redimidos por um reinado de mil anos em que prevaleceria a mais pura paz e harmonia, entre todos os seres, a quem ele abençoa rotacionando sua terceira mão em velocidade alucinante.
Longe dali…
O número do placar da votação, a essa altura, é o placar mais alto já exibido em qualquer esporte. Não dá pra fazer pouco caso. Não dá pra não se contagiar com a emoção. Depois dos votos do Sérgio Reis, Tiririca, da Maria do Rosario, do ex-goleiro Danrlei, e do tom solene e apocalíptico do presidente da câmara, é a vez daquele deputado cujo nome até então a bad trip não tinha considerado:
O tal do Jair Bolsonaro.
Porque tanto a mente quanto o corpo de Maykon sabiam que ele não precisava sofrer por antecipação, e seus aparelhos cognitivos fizeram questão de não apresentá-lo antes da hora ao monstro (porque, dentro da bad trip, ele, o Jair Bolsonaro, é meio que um monstro). Qualquer menção anterior ao monstro suspenderia a atenção do garoto, desviando-o do caminho árduo percorrido até agora, em que cada obstáculo-monumento-merda-monstro tem uma hora certa pra ser apresentado, como os degraus de uma escada em direção à iluminação. Não. O Bolsonaro tinha hora pra chegar e pra acontecer. E, com a pressão baixa, menos de 10 por 6, a boca, que até então salivava, está seca. Árida. Algo que pede por um cuspe.
Nenhum pensamento muito inovador sairá dali. Nenhuma proposta cheia de imaginação e criatividade que redima a Nação.
(É quase a mesma sensação de quando morremos por dentro vendo milhares de gaivotas, pinguins, peixes e focas fofinhas manchadas de petróleo por conta de algum acidente petrolífero em águas internacionais, os animais mortos, boiando afogados no meio do óleo).
E quando o deputado, o monstro, sobe ao palanque, logo nas primeiras sílabas que diz, um apito mal-assombrado começa a soar nas profundezas do crânio de Maykon, onde vidraças se quebram, como o sibilo ensurdecedor que deve preceder as abduções conduzidas por essas raças de alienígenas mais científicos.
Algo que consegue ser quase pior que a dor mística-intestinal de agora a pouco, pior que a dor do parto. Ele não consegue ouvir com exatidão as palavras do deputado, mas ao vê-lo apontar para a televisão, sente que é uma coisa pessoal, e que aquelas palavras, aquele movimento de lábios, é tudo endereçado para ele, Maykon. O carnaval de gestos vai desencadeando em Maykon um tipo muito estranho de pânico mudo. Seu suor é congelante.
Impotência, porque nosso jovem de três mãos sente, pelo brilho dormente que emana de suas vísceras magicamente expostas, que o tal do Jair Bolsonaro também almoçou uma feijoada, antes de ir proferir essa merda de discurso.
E por cima de tudo, além de tudo, tem esse ruído fino, agudo, que só vai embora depois que o candidato-monstro é ovacionado, outros candidatos dão seus votos, e chega a vez do Jã Uílis proferir outro discurso acalorado, pelo menos nas expressões e nos gestos. A saliva se concentra na ponta da boca, represada.
Só aí, depois do discurso do Jã Uílis, a imagem retorna ao seu áudio original, mas Maykon continua absolutamente atordoado.
É quando ele tem uma visão.
A Visão.
Uma criatura enlameada irrompe do chão do quarto, perfurando o concreto. Ela é inteira maiúscula. Tem uma coloração cinza, mas está coberta de um creme-carapaça que é como o chorume de todos os aterros sanitários do mundo, algum bicho que brotou da cova de alguma humanidade morta e já apodrecida. É uma silhueta verminosa.
Sua boca se abre, e ela, pelas primeiras palavras, mais críveis que o discurso de qualquer deputado ou senador, tem toda a pinta de ser fluente no português contemporâneo, falado aqui nas terras tupiniquins:
– Jovem Maykon! Estes são os teus primeiros ensinamentos. Reflita sobre eles. Não te esqueças daquilo que viu e que sentiu durante a bad trip. A ti é dada a chance de contemplar teu mestre, então olhe para mim. Não te esqueças de onde vim, nem de minha figura, nem do meu cheiro. É essa a tua primeira lição: lembra-te de quem sou, o rei sob o mundo.
Mas antes de ver o verme escafeder-se de volta para os abismos de onde veio, Maykon tenta pronunciar qualquer coisa que é tudo o que ele consegue pensar ou transmitir naquela hora:
– Espera… Quem é você?
– Dentro do panteão pessoal que erigistes ao longo das tuas repetidas encarnações, eu sou a entidade escolhida para representar tudo aquilo que há de podre, tudo aquilo que nasce germinando da excreção, do vômito e da massa estercorária, das matérias em decomposição que podem servir de moradas aos vermes e a outros seres de classes mais inferiores. O Deus-Abjeto, amigo das doenças parasitárias, patrono da ventilação e da renovação, do ciclo telúrico que compreende a Vida e a Morte. Não te esqueças disso: não te esqueça que as ideias também me alimentam, e que mais nutritivas ainda são as estruturas políticas. Saiba do teu poder: teu asco mais genuíno sempre será um prenúncio de minha chegada. Sou um deus sempre faminto. Considere-se privilegiado.
E, depois da fala apetitosa, numa bocada só arrancou toda a parte superior do corpo de Maykon, levando-a consigo túnel adentro, para os sub-reinos da Terra, de onde o jovem rapaz acordou com frio, todo cagado, sem apresentar qualquer interesse a respeito do resultado da votação do impítima, e, na verdade, pensando:
“Porra, será que na próxima eu não consigo tirar uma selfie com o Vermão?” (com V maiúsculo.)
Imagem: Eberhard Werner Happel