Excertos de uma memória apresentada pelo Dr. Rodrigues Dória ao Segundo Congresso Científico Pan-Americano, reunido em Washington D.C, a 27 de dezembro de 1915, intitulada Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício:
“O uso do cânhamo é muito antigo. Heródoto fala da embriaguez dos citas que respiravam e bebiam a decocção dos grãos verdes do cânhamo. No livro de Botânica do dr. J. M. Caminhoá, que foi professor desta matéria na Faculdade de medicina do Rio de Janeiro, lê-se que o famoso ‘remédio das mulheres’ de Dióspolis, bem como o nepente de que fala Homero, e que Helena recebera de Polimnésio, era a Cannabis indica. Os cruzados viram os efeitos nos muçulmanos. Marco Polo observou nas cortes orientais entre emires e os sultões. É muito usado no vale do Tigre e Eufrates, nas Índias, na Pérsia, no Turquestão, na Ásia Menor, no Egito e em todo o litoral africano. Com cânhamo se prepara o haxixe, como já foi dito, e ainda pouco conhecido na sua manipulação; o povo do Oriente fuma o pó das folhas e flores no narguilé.”
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“Entre nós a planta é usada como fumo, ou em infusão, e entra na composição de certas beberagens, empregadas pelos ‘feiticeiros’, em geral pretos africanos ou velhos caboclos. Nos ‘candomblés’ – festas religiosas dos africanos, ou dos pretos crioulos, deles descendentes, e que lhes herdaram os costumes e a fé, é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas. Em Pernambuco a erva é fumada nos ‘catimós’ – lugares onde se fazem os feitiços, e são frequentados pelos que vão ali procurar a sorte e a felicidade. Em Alagoas, nos sambas e batuques, e também entre os que ‘porfiam na colcheia’, o que entre o povo rústico consiste em diálogo rimado e cantado em que cada réplica, quase sempre em quadras, começa pela deixa ou pelas últimas palavras do contendor.”
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“Dizem que a maconha os torna mais espertos, e de inteligência mais pronta e fecunda para encontrar a ideia e achar a consonância. Vi algumas vezes, quando criança, nas feiras semanais de Propriá, minha terra natal, à noite, ao cessar a vendagem, indivíduos se entregarem à prátia de fumarem a erva nos dispositivos rústicos já descritos [a maricas], dos quais muitos se servem promiscuamente, sorvendo em autos profundos a fumarada apetecida, depois do que entrava o desafio ou o duelo poético; algumas vezes a contenda tomava feição diferente, e exigia a intervenção da polícia para apaziguar os contendores exaltados. É fumada nos quartéis, nas prisões, onde penetra às escondidas; é fumada em agrupamentos ocasionais ou em reuniões apropriadas e nos bordéis. Muitos fumam isoladamente à semelhança do uso do tabaco.”
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“Os sintomas apresentados pela embriaguez da maconha são variáveis com a dose fumada, com a proveniência da planta, que pode conter maior quantidade de princípios ativos, com as sugestões, e principalmente o temperamento individual. Um estado de bem-estar, de satisfação, de felicidade, de alegria ruidosa são os efeitos nervosos predominantes. É esse estado agradável de euforia que leva a maior parte dos habituados a procurar a planta, a cujo uso se entregam com mais ou menos aferro. As ideias se tornam mais claras e passam com mais rapidez diante do espírito; os embriagados falam demasiadamente, dão estrepitosas gargalhadas; agitam-se, pulam, caminham; mostram-se amáveis, com expressões fraternais; vêem objetos fantásticos, ou de acordo com as ideias predominantes no indivíduo, ou com as sugestões do momento. Dizem que a embriaguez da maconha mostra o instinto do indivíduo, como se atribui ao vinho – in vino veritas. Algumas vezes dão em beberagem para obterem a revelação de segredos. A esse estado segue-se às vezes sono calmo, visitado por sonhos deliciosos. Há na embriaguez da maconha o fato interessante de, após a dissipação dos fenômenos, lembrar-se o paciente de tudo o que se passou durante a fase do delírio.”
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“O dr. Aristides Fontes, que conversou com pescadores, habituados a usar a maconha, ouviu que, quando se encontram no mar em canoas ou jangadas, fumam em grupos para se sentirem mais alegres, dispostos ao trabalho, e menos penosamente vencerem o frio e as agruras da vida no mar. Denominam ‘assembleia’ a essa reunião, e começam a sessão fumando no cachimbo ‘maricas’, no qual cada um ‘puxa a sua tragada’, na frase por eles empregada, para exprimir o esforço que exige o cachimbo tosco e a quantidade maior de fumaça que procuram absorver. Depois de algumas fumadas, tocados pelo efeito da maconha, tornam-se alegres, conversadores, íntimos e amáveis na palestra, uns contam histórias; tais fazem versos, outros têm alucinações agradáveis, ouvem sons melodiosos, como o canto da sereia, entidade muito em voga entre eles. Um desses, caboclo, robusto, de 43 anos de idade, fumando a erva há mais de vinte anos, sem apresentar perturbações de saúde, informou que a usava, quando se sentia triste, com falta de apetite e pouca disposição para o trabalho, principalmente à noite, quando ia para a pescaria, ficando satisfeito, disposto e podendo comer copiosamente. Dizem que faz cessar as câimbras que experimentam ao entrar n’água, à noite. Ao dr. Xavier do Monte referiu L.S., a quem conheço, homem de 45 anos de idade mais ou menos, robusto, que fumou a maconha, como experiência, sentindo-se alegre, achando graça em tudo, dando estridentes gargalhadas a todo propósito, como um louco, e tinha muita fome. Comeu desmesuradamente, e após cessou o delírio, entrando em sono profundo e calmo. “
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“É também notado por toda a parte esse aumento de apetite, que faz empregar a planta como aperitivo, exceto nos iniciantes, que às vezes têm náuseas e vômitos. Kaempfen menciona a fome ‘canina’, como sintoma do haxixismo. O apetite, porém, se perde e embota nas intoxicações e na forma crônica.
Villard, citado por Charles Eloy, observou no Cairo, entre os fumadores de haxixe essa erupção de alegria retumbante, palrice, com grande volubilidade, gestos rápidos e gargalhadas. Notou que as alucinações se relacionam, nas casas de fumar a erva, com as figuras pintadas nas paredes, e muitas vezes refletem as ideias dominantes na pessoa e daí o estado de beatitude, de sensações indivisíveis de felicidade, de languidez, com criações imaginativas bizarras dos orientais.
Em uma nota do livro Les Opiomanes, já citado, se lê a seguinte descrição de Sachs:
‘O haxixe produz os efeitos seguintes: o ar se adelgaça e parece conter suaves perfumes. Tudo é belo e radioso. Sente-se prazer em viver. Sob sua influência fiz passeios soberbos; meu arrebatamento foi além de toda expressão. Sua influência depende do temperamento de quem o usa. Faz alegria; produz gargalhadas pelo motivo o mais fútil. Exagera o apetite, torna eloquente, gracioso, encantador. Sob sua influência, durante duas horas me exprimi em versos livres; as rimas eram ricas e as ideias perfeitamente sensatas e seguidas. Seus inconvenientes são a sensação de um estrangulamento mais forte do que no ópio, uma tinta lívida, esverdinhada, uma fome que nada aplaca, algumas vezes desejos sexuais loucos, com requintes impossíveis de sexualidade…, a produção de ataques epilépticos e perturbações atáxicas..’
Nas experiências de Villard, as ideias se sucedem com rapidez, se contradizem, se entrechocam, as palavras se comprimem para exprimi-las, e tornam-se incoerentes. O intoxicado ouve o murmúrio de uma fonte, julga-se no meio do mar, transportado, embalado em um barco, ao lado de belas mulheres, ora assiste a um fogo de artifício, tendo a cabeça cercada de uma auréola brilhante, a brincar com os anjos. Wood diz que para o ‘haxixado’ a duração de um minuto representa um século, um estreito aposento alarga-se até a imensidade; transpõe mares, continentes, atravessa os ares, seu espírito perde o sentimento de extensão
O quadro sintomático pode ser diverso. É conhecido nos lugares, onde abusam da maconha, o delírio, a loucura transitória e mesmo definitiva, causados pela planta, e com fisionomia perigosa. Os embriagados tornam-se rixosos, agressivos, e vão até a prática de violências e crimes, se não contidos. Um trabalhador, pardo, de 30 anos, robusto, referiu ao dr. Xavier do Monte ter fumado a maconha, como remédio para dores de dentes, e logo sobrevieram-lhe suores frios e abundantes, língua pesada, pegajosa, e delírio. Tudo o amedrontava, via-se perseguido pelo povo, sentia fome devoradora, e depois de ter comido uma porção de batatas-doces e farinha de mandioca, foi melhorando, até voltar ao estado normal.
Do inquérito feito pelo dr. Aristides Fontes, que é médico da Escola de Aprendizes Marinheiros de Aracaju, ouviu a um sargento da mesma escola contando 28 anos de idade, que, quando aprendia na Escola de Maceió, aos 16 anos, vendo frequentemente um preto velho africano fumar a maconha no ‘maricas’, experimentou a erva em cigarro, sentindo-se logo tonto e vendo tudo girar ao redor de si. Por mais baixo que lhe falassem ouvia as vozes em alta tonalidade; tinha alucinações auditivas e visuais, ouvia cantos de pássaros, e via vagalumes no ar. Tinha a impressão de que tudo ia cair sobre ele e estendia os braços para se amparar. Sentia as pernas pesadas, fatigadas, e a impressão de que estava a subir uma ladeira; as ideias eram confusas. Adormeceu, e quatro horas depois desperto, sentindo apenas fome intensa, chegando a comer 6 pães de 200 gramas cada um.“
Os grifos são meus, e, com exceção do aumento das possibilidades alimentares da nossa época, essas descrições ajustam-se perfeitamente à narração encontrada, quase um século depois, no romance Graça Infinita, do escritor americano David Foster Wallace, o qual transcrevo aqui abaixo:
“Essa tendência à abstração convoluta às vezes é chamada de ‘Pensamento Maconheiro’; e aliás, a dita ‘Síndrome Amotivacional’ em decorrência do consumo pesado de Bob Hope (maconha) é um equívoco terminológico, pois não é que os fumantes de Bob Hope percam interesse no seu funcionamento prático, mas sim que eles entram via Pensamento Maconheiro em labirintos de abstração reflexiva que parecem pôr em dúvida a própria possibilidade do funcionamento prático, e o esforço mental de achar uma saída dali consome toda a atenção disponível e faz fumante de Bob Hope parecer fisicamente entorpecido, apático e amotivado ali sentado, quando na verdade ele está tentando rasgar com as unhas a parede do labirinto. Perceba que a fome avassaladora (a chamada larica) que acompanha a intoxicação por cannabis pode ser um mecanismo natural de defesa contra esse tipo de perda de função prática, já que não há função mais prática neste mundo que procurar comida.” [Cia. das Letras, 2014; tradução de Caetano W. Galindo].
Me deu vontade de fumar.
Incrível!!!
Estamos do lado dos que querem liberar! Ok!!!!
Tudo se resume a política…. As drogas geram mais dinheiro sendo ilegais que legais. Não há essa de que só trazem malefícios. Maconha livre!!!!
Muito curioso. Nunca tinha pensado nisso, na maneira como a maconha era vista séculos atrás. Agora toda vez que eu fumar acho q vou lembrar desse texto kkkkkk