maneiras curiosas de ir à guerra

As guerreiras bafudas

O aventureiro e explorador espanhol Francisco de Orellana é o responsável pela primeira menção às amazonas feita em terras do Novo Mundo, no início do século XVI. A lenda das mulheres guerreiras conhecidas por tal nome remete a um repertório de conteúdo clássico, mas a sua ocorrência não se limita apenas à Europa ou ao mundo helênico. As amazonas citadas pelo grego Heródoto habitavam em algum lugar próximo ao reino dos sármatas, na costa do Mar Negro. Para Orellana, as amazonas sul-americanas habitariam algum lugar da densa floresta tropical, hoje bem próximo às Guianas.

Em sua viagem, que atravessou todo o Rio Amazonas, não há nenhuma menção às guerreiras bafudas que aparecem nas lendas mati – distantes de Orellana tanto no tempo como no espaço, uma vez que seu reino estaria mais próximo do Peru, no Vale do Javari, no Alto Solimões, e suas histórias remetam a acontecimentos mais recentes.

Os contadores de histórias da tribo dos mati oferecem uma imagem bastante exótica dessas guerreiras, tanto medo e terror elas levaram aos seus inimigos, brancos ou até mesmo outros índios. Diferentemente de suas parentes históricas, que, pelo que contam, tinham o hábito de arrancar o seio esquerdo para facilitar o manejo do arco, as guerreiras bafudas (é assim que os mati as chamam em seu idioma) não faziam uso de qualquer tipo de arma que não fosse o tacape.

Conta-se que andavam em pequenos bandos pela selva, embrenhadas dia e noite, comendo apenas as pimentas vermelhas e amarelas que traziam amarradas aos tornozelos, em ambos os punhos e no pescoço. A boca estava sempre inchada, enorme e vermelha. Pelos tons rubicundos realçados, a movimentação das guerreiras na selva produzia uma dança assustadora de borrões vermelhos, esguios e elusivos.

Os olhos lacrimejantes e irritados produziram entre os matis uma palavra pouco-mencionada, que traduzida quer dizer algo como “lágrimas de guerra e morte”. Devido à sua forte carga emocional, não há entre os matis o costume de mencionarem essas histórias a não ser em circunstâncias sociais bastante específicas.

Dentre os atributos mais recordados por eles, consta o hálito das guerreiras bafudas, a verdadeira razão para essa alcunha. As representações oferecidas pelos rituais e pela arte mati evoca suas caretas e as labaredas de fogo que saíam de suas bocas, um calor que podia ser sentido a vários metros de distância.

Dentre os relatos de encontros, há aqueles que indicam tamanha fúria sendo empregada em seus ataques, que as tais guerreiras chegavam mesmo a entrar em transe durante o evento, à maneira dos berserkers nórdicos.

A maneira com que se comportavam em combate era notavelmente descontrolada, ainda que, curiosamente, poupassem os desarmados e os indefesos. Durante o transe, era natural que gargalhassem, que suas vozes mudassem de tom e se engasgassem em soluços bastante pronunciados. Também eram recorrentes gritos e uivos, provavelmente causados pela ardência das grandes doses de pimenta que ingeriam pouco antes da luta – algo que talvez lhes provocasse certa dormência física também permitia a elas esparramar pimenta pelo corpo todo. O tacape, por sua vez, preparado para a luta, era coberto com uma solução de vários tipos de pimenta amassada. Algo assim foi testemunhado por seringueiros no início do século XX, durante o ciclo da borracha na Amazônia, eles, os últimos que tiveram a oportunidade de vê-las em ação, pouco antes que fossem finalmente extintas.

Seu desaparecimento pode ser explicado: tais guerreiras, quando saíam de sua tribo para guerrear, jamais regressavam. Tampouco poderiam, uma vez que não seriam aceitas de volta. Restava-lhes morrer em conflito, ou embrenhadas na selva, vítimas de algum ferimento do qual foram incapazes de se curar, nem mesmo com a força restauradora de alguns tipos raros de pimenta tropical. A baixa expectativa de vida, a decadência do espírito guerreiro, e o avanço das frentes de extração são prováveis justificativas para o desaparecimento, além de uma crescente rejeição dos próprios indígenas ao ímpeto imprevisível das guerreiras bafudas.

As razões dessa rejeição são muito bem sugeridas pela cultura xamânica dos mati, fator preponderante de seu sumiço, ao qual respondem os xamãs, responsáveis pela façanha.

É ainda recorrente entre alguns índios matis mais velhos o cultivo e a apreciação de certos sabores, decorrentes de uma divisão dualista de certa substância que eles entendem como uma das fontes de poder dos xamãs de seu povo. A substância sho, que divide-se em bata (doce) e chimu (amarga). O cultivo dos sabores amargos e ardentes, algo exclusivo dos homens, consistia na ingestão de pimentas, no consumo de vários vegetais amargos, chá de cipó, assim como na adoção de práticas relativamente aflitivas, como quando açoitavam-se uns aos outros, e derramavam líquidos irritantes em seus próprios olhos. Chimu sho, seria, de certa forma, uma fonte de poder ambíguo, podendo trazer tanto a força e a sorte para o bom caçador e para o guerreiro, como também o azar das doenças dos brancos e da má feitiçaria. A bata sho, sua contraparte doce, seria cultivada pelas mulheres, responsáveis pela diplomacia e pelas artes mais suaves.

O contato excessivo de algumas mulheres com o chimu sho teria liberado nelas um espírito indomável, capaz de trazer má sorte para a tribo, mesmo que seus ataques fossem dirigidos ao homem branco.

Talvez pela sua proximidade com essa fonte de poder ambígua incontrolável, a possibilidade de servirem como veículo para a doença dos brancos, sua natureza violentamente livre, mas, sobretudo, pelo seu desajuste em relação à divisão dos sexos para com a substância sho, as guerreiras bafudas tiveram seu fim no meio do caminho entre o ataque e a fuga, longe de suas tribos – como assim recordam as histórias que contam a seu respeito.


 

Imagem: Shiva Incinerates Kama with his Third Eye. Bengal. 1800s.

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