Uma comissão sem nome perambula pelos corredores do Palácio do Planalto. Ninguém sabe quem convocou seus membros. Ninguém sabe de onde veio a ideia. Ninguém sabe a que serve e o que se pretende fazer.
A comissão discutirá a situação do país e fará reuniões deliberativas. A comissão paga hora extra e tem pausa pro cafezinho.
O terno é o uniforme dos canalhas. Os funcionários podem ser corruptos, cretinos, estelionatários, picaretas, o que quer que seja, mas têm sentimentos e sabem se emocionar. O heroísmo é proporcional ao melodrama.
Um dia recebemos uma moção, vinda de um representante de outro ministério. No outro dia noticiaram cortes no orçamento. No instante seguinte, boatos desmentem boatos anteriores. Listas negras, infogramas, quadros de avisos, informes – de repente alguém olhou e viu o tamanho do trabalho que teríamos pela frente, e aí já era tarde. Não dava mais pra desistir.
A comissão ficará responsável pela tarefa de sustentar mentiras e prolongar boatos. O objetivo do grupo é fornecer, ao conjunto público dos cidadãos deste país, evidências empíricas que ajudem a comprovar como verdadeiros os complôs que se sustentam no imaginário popular.
Projetos populares poderão mover mentiras públicas através de campanhas de financiamento coletivo e de parcerias público-privado. Os critérios ficarão mais claros conforme se adquira experiência. Quando chegamos pra reunião, nos pediram pra entrar sem os sapatos. O que eles queriam dizer era que ainda não tinham chegado num consenso sobre qual seria a pasta a que ficaria submetida a comissão.
O quadro de funcionários foi oficialmente cortado pela metade, mas os salários continuam caindo.
Secretarias brigam com supervisores. Ordens chegam de lugar nenhum e quando chegam ninguém entende. Também não há quem as explique. Há uma confusão geométrica. Os três poderes não respeitam as três dimensões do espaço. Em virtude disso, o continuum espaço-temporal ficou cheio de furos. Um parlamentar em Brasília corre o risco de viajar no tempo acidentalmente. Dizem que isso aconteceu com um deputado que durante pelo menos quatro meses andou habitando duas esferas diferentes do poder público – só porque pegou um atalho que não devia.
Má sinalização ideológica.
Quantos bolsos eu não quis furar à distância? Os buracos nas contas públicas funcionam de maneira semelhante a um queijo: quanto maior o queijo, maiores os furos; então quanto mais queijo menos queijo. É assim nas prefeituras, é assim no governo do estado.
Enquanto isso despachantes e cartórios se amotinam nas fronteiras. Todas as repartições burocráticas do governo se rebelaram, trocaram suas bandeiras, e, como ninguém foi trabalhar, a semana amanheceu funcionando melhor do que nunca.
Pela manhã não fazemos nada e durante a tarde aproveitamos para descansar.
As mentiras se acumulam. Novos clientes aparecem. Mitômanos procuram nossos serviços e vêm dizer pra nós que andaram inventando mentiras muito cavernosas, e que precisam de nossa ajuda para sustentá-las.
Os que acreditam nas mentiras, também eles, mentem.
E será o caso em que um dia, chegando no trabalho, olharemos um pro outro e diremos “nossa, realmente, eu pagaria bem caro pra sustentar uma mentira desse tamanho”.
Abrimos uma exceção no caso das igrejas. Isso porque toda mentira envolve manipular a fé dos outros.
Além disso, a comissão está encarregada de produzir conteúdo e material narrativo para os cidadãos de todo o país, para que o consumam – e para que seja regurgitado de volta na cara de seus próprios compatriotas.
Cumpre que implantemos neles a semente da hostilidade, pra que toda fala se torne um pronunciamento, e toda conversa uma declaração de guerra.
O público aprova comportamentos beligerantes. Não existem vácuos de poder. O poder é a ação e a iniciativa desinibida.
O núcleo duro do governo não parece temer o colapso ambiental.
Temos um projeto econômico de transferência de renda que promete ventilar a economia e o negócio é mais ou menos o seguinte: cada ser humano que tiver a condição de doar um dólar por dia, doará este dólar para uma pessoa qualquer da lista de 7,53 bilhões de habitantes do mundo. Todas as doações do mesmo dia irão para uma só pessoa, que, ao final do dia, estará bilionária. Levaremos 7,53 bilhões de dias para percorrer a lista inteira, o que dá mais ou menos 20.000 anos. Mas ao final destes 20.000 anos, tendo percorrido toda esta lista, todas as pessoas do mundo estarão bilionárias. Não serão, obviamente, as mesmas pessoas da lista original – porque infelizmente já terão morrido – mas os seus descendentes. Para que o projeto funcione corretamente, será necessário preservar intacta a quantidade de seres humanos habitantes do planeta Terra, e mais ou menos iguais os laços familiares de parentesco que existem hoje em dia.
Entrevistas, a longo prazo, são como água e pedra. A população de repórteres aumentou 60% em 15 anos – tudo por causa dos youtubers. E o governo achou que seria boa ideia dispensar o relações públicas.
Todo deputado tem um exorcista trabalhando em seu gabinete, empregado em expulsar os funcionários fantasmas dos políticos anteriores, cujos mandatos expiraram faz tempo. Às vezes é o caso de uma operação da polícia federal bater na sua porta, mirarem uma lanterna tua cabeça, e começarem com umas perguntas que é melhor já ter uma resposta preparada pra elas.
É difícil dormir com um holocausto acontecendo lá fora. Os membros do governo não dormem mais do que quatro horas por dia.
O presidente sonha que está num bambuzal. É um pesadelo recorrente. Na frequência de quinze dias, el presidente sonha que está correndo num bambuzal. Às vezes nu, às vezes com medo.
Desta vez, ao transpor as fronteiras do bambuzal, o presidente tem uma visão: um milhão de garotas jovens e belas trabalham na construção de um castelo de bambu. Sua entrada não é permitida ali.
O presidente se lembra da estranha sensação de não poder transpor certos limites – como por exemplo quando ele um dia foi criança e achou que pisar no azulejo do banheiro feminino da escola faria cair sua perna.
O presidente acordou suado e com torcicolo, chamou um emissário, deu uma dúzia de ordens, entrou no banho, vestiu um terno, comeu pão com leite condensado e foi à igreja.
No dia seguinte, durante uma festa em um clube, membros do governo foram vistos trabalhando juntos na pilhagem de um buffet. O presidente fez questão de elogiar o trabalho em equipe, coisa rara nos dias de hoje. Uma pilhagem, um saque, são coisas que exigem preparo e dedicação, pra que não vire bagunça.
A comissão andou recrutando gente de tudo quanto foi lugar. O único critério era ser cara de pau. Trambiqueiros paraguaios, repentistas, torcedores do Botafogo, fãs de rock brasileiro dos anos 80, ex-membros de seitas neo-hindu, lutadores de MMA com perspectivas niilistas sobre a realidade, criadores de galo de rinha, surfistas e professores de sociologia – a comissão prezava pela diversidade. Deu emprego a todos eles.
Com o passar dos anos, tantas mentiras, boatos, rumores e lorotas pra serem sustentadas, financiadas e alimentadas com falsas notícias e reviravoltas, a energia mental de tanta gente estranha trabalhando junta pariu uma espécie de superconsciência psíquica.
Naquela época ela já era uma entidade, e qualquer um que se concentrasse muito e estivesse mais ou menos à toa durante o horário de serviço seria capaz de evocar a superconsciência. Uma noite, o próprio presidente se deparou com uma manifestação sua: no meio do caminho entre o banheiro e o quarto, um ser sem forma fixa vacilava entre uma dimensão e a outra, e sua aparência vagava por um milhão de cogitações estranhas, ora expressando mandíbulas afiadas, olhos esbugalhadas, hálito de morte, uma poça d’água e sucessivas ondas num litoral, bambus e vísceras, uma faca tentando acertar um coração, através da ferida o vazamento de uma graxa que, se provássemos, teria sabor de vinagre de maçã, a névoa escura de um temporal cobrindo um monitor em que eram exibidos gráficos com ações de empresas estatais, e então uma massa amorfa, um congestionamento nasal, um catarro escuro como uma tempestade, e tiros de fuzil saindo de dentro de um ciclone, rajadas de metralhadora arrancando pedaços da parede.
Ele resolveu puxar uma conversa com o monstro: “quantos iguais a você existem?”.
“Tantos quanto o seu pensamento puder cogitar”, a entidade respondeu.
Ao ouvir aquilo, sua mente involuntariamente multiplicou a entidade até a possibilidade do infinito, preenchendo todos os espaços habitáveis do mundo com a sua forma grotesca.
Mas aquilo tudo era visível só pra ele. O presidente tem interesses pessoais em tudo aquilo que ele defende.
Cada mentira exigia o emprego de muitas outras mentiras. Precisávamos cortar gastos, juntar uma mentira com a outra. Simplificar a imaginação. Resumir os outros boatos num só grande boato. Um grande rumor que dê logo significado a tudo, respondendo (com deboche) a qualquer especulação que esse povo criativo seja capaz de alimentar.
Destruiremos a natureza, sua vegetação e os seus rios. Faremos com o resto grandes castelos de bambu. Talvez a comissão tenha perdido de vista o seu sentido, e agora não sabemos mais diferenciar o fato da mentira. O encantamento funcionou.
No futuro toda a natureza terá sido destruída – a nossa natureza, e a natureza que há em volta.
Esse negócio de tirar coelho da cartola, isso vai pegar muito mal.
Imagem: Walter Spies