confissões de um homem ansioso

As Forças Armadas do Brasil têm me tirado o sono.

Não é algo que tenha a ver com a maldita intervenção no estado do Rio de Janeiro, não.  Nada que ver com criancinhas revistadas na entrada da escola e as pobres famílias da favela sendo oprimidas por uma ocupação provavelmente mais desastrada que a cavalaria francesa na batalha de Azincourt (sim, sou fissurado por história militar e, aviso ao leitor, este texto é cheio de referências a isso).

Sofro de ansiedade e insônia. Eis a razão de minha insônia, e o estopim das minhas crises de ansiedade: o sucateamento das corporações militares brasileiras, e a sua inoperância em caso de uma possível invasão estrangeira.

É, para mim, extremamente doloroso escrever estas palavras, abordar o assunto de frente e sem pestanejar, e quando penso na inabilidade geral de nossos combatentes dentro das situações hipotéticas que venho imaginando para eles, chego mesmo a sentir palpitações no coração.

Em casos mais graves, minhas mãos ficam dormentes, as pernas fraquejam, e sou visitado por aquilo que vulgarmente chamaríamos de teto preto.

Entro em labirintos de cogitações, redijo mentalmente e rabisco incríveis roteiros de ficção científica que servem apenas para fomentar minha paranoia.

E não tem tarja preta ou terapeuta que resolva.

Projetando um futuro de 100 anos, não imagino que tenhamos nós, os brasileiros, resolvido qualquer um dos problemas de nosso país. A insegurança, a desigualdade, a injustiça, as más condições de vida, a corrupção, o desemprego, a inflação, o déficit habitacional, a ignorância e o obscurantismo – tudo isso será potencializado pelo cenário de superpopulação e escassez de recursos que se anunciam no sombrio horizonte da humanidade.

Depois de mortos todos estes personagens e figurões dos tempos hodiernos, depois de varridos pra baixo do tapete os Sarneys, Malufes, Lulas, Joões Dória, Ciros Gomes, Marinas Silva, Crivellas, ministros, generais, formadores de opinião e youtubers, quando o material humano disponível tiver sido incrivelmente piorado no decorrer da história, porque fomos incapazes de gerar bons herdeiros, e todos os nossos intelectuais e cientistas tiverem fugido e tomado o último avião pra longe dessa savana de atraso e ignomínia, quem é que poderá nos defender?!

– Apertem os cintos! – é o que o século XXI teria a dizer pra essa pobre gente que ficou.

A vida de motorista de Über tornou-se muito mais difícil, já que me vejo sozinho indo de um ponto a outro, e aí tenho hora pra ficar pensando porcaria, ou mesmo acompanhado, gastando com meus clientes conversas sobre este assunto quase a todo tempo.

É claro que sou sempre eu quem trago o tema para o debate. Sou incisivo e delicado o bastante para conseguir cooptar qualquer tipo de passageiro, até aqueles menos dispostos ao diálogo, apressados, ou mesmo envolvidos em alguma atividade que lhes exija a atenção. Pela reação de algumas clientes do gênero feminino, acredito que dez minutos de conversa comigo as tenham levado a modificar os seus critérios daquilo que pode ser considerado um assédio.

Desconfio que eu tenha me tornado motorista do Über apenas para divulgar minhas ideias, ampliar o alcance de minhas teorias, distribuí-las para estratos sociais variados e indivíduos de todos os tipos. Não foi só pra fazer um bico não. Foi porque eu precisava de um público.

Meus passageiros não têm escolha. Digo a eles que estou preocupado, e que estamos perdendo tempo com a intervenção federal.

– Atribuindo funções policiais ao exército é outra forma de corrompê-lo. É gastar recursos preciosos em tarefas que vão somente atrasar nossas forças armadas em relação às das outras potências, que daqui a pouco vão crescer o zóio aqui no nosso território. Não acredito que essa intervenção federal esteja servindo nem como treinamento pros nossos soldados.

Pensemos numa ocasião de escassez de recursos, coisas que no Brasil são abundantes. Petróleo, água, terras cultiváveis, fauna e flora, minérios… Estes recursos continuarão sendo abundantes daqui 100 anos no restante do mundo? E nós aqui, já teremos dado um jeito de entregá-los aos estrangeiros? Já teremos contaminados toda essa riqueza com nossa incapacidade? Já teremos saqueado nossa própria terra sem dar a todos a chance de aproveitarem dela um pouco? Já teremos sujado e desmatado e poluído e agredido violentamente a natureza, maior de nossos bens?

Não acho ruim que reclamem do meu vira-latismo. O vira-latismo é um elemento fundamental de minhas conjecturas, afinal, devo primar pelos piores dos mundos possíveis – worst case scenarios.

Meus amigos (não tenho amigos) dizem que os países hoje em dia preferem optar por outras formas de dominação, por vias mais econômicas, que não envolvam tantos gastos.

– Ótimo, mais ou menos como empresas norueguesas e chinesas adquirindo concessões de exploração e fodendo com a porra toda porque não estão nem aí pros cuidados ecológicos exigidos pela lei.

Querem, os amigos que não tenho, me assegurar que grandes guerras estariam fora de cogitação, e que todas estas vontades de violência agora se encontram dissolvidas na interdependência global das nações, na qual se deslocam grandes fluxos de mercadoria e informação – a maior garantia de paz que temos hoje em dia.

Porque hoje em dia tudo ficou caro e todo mundo só pensa em dinheiro.

Também, devido às armas atômicas, as grandes nações jamais apostariam numa agressão direta, o que sugere a ideia de uma reedição da Guerra Fria. E os novos protagonistas deste pós-guerra que nunca houve estariam agora interessados em investir nas proxy wars, na disputa pelo controle sobre áreas de influência e tudo o mais, como, por exemplo, vem sendo o caso da Síria ou da Ucrânia.

Ou como foi na Guerra Fria original, quando a União Soviética e os States concordaram em brigar somente na casa dos outros pra que não destruíssem o mundo inteiro.

Mas este é um argumento válido apenas para esta realidade presente, e só pessoas sem imaginação alguma podem aceitá-lo.

Optemos por avançar este argumento economicista algumas casas, e adiantemos 100 anos na história do mundo. Coisa muito difícil de se imaginar, porque a futurologia anda em baixa ultimamente, mas tudo o que precisamos é de uma hipótese para emoldurá-la ao lado de todas as outras hipóteses já delineadas por mim mesmo.

É provável que 100 anos de globalização ininterrupta seja um período de tempo suficiente para ruírem todas as fronteiras dos estados nacionais. Derrubadas estas fronteiras, na posse de quem estarão escassos recursos da terra? Obviamente, nas mãos daqueles que tiverem, sob o seu controle, forças dispostas a lhes assegurarem a posse – forças muito bem pagas, provavelmente.

Exércitos particulares se tornarão comuns num mundo dominado por trustes, cartéis e conglomerados dirigidos pela elite internacional. A falência dos estados, vista com interesse pelas grandes corporações, será espoliada, e suas ruínas serão distribuídas entre os ricos, deixando as migalhas para os pobres.

Que os chineses estejam comprando a África, que os russos se expandam pela Ásia Central, ou que os árabes venham se infiltrando na Europa por meio de um movimento migratório, estes caminhos delineiam uma paisagem não tão caótica quanto aquela prevista pela terrível ESCASSEZ DE RECURSOS.

Como defenderemos aquilo que é nosso? Aliás, haverá mesmo algo que possa ser chamado de nosso, tendo em vista a liquidez absoluta na qual estará mergulhada a humanidade vindoura, presa na bolha da não-localidade, sequestrada pelos ambientes urbanos?

Sinto uma coceira nas pernas, e não consigo raciocinar direito neste exato momento.

Ouço vozes?

Como é que superaremos o entreguismo da nossa classe política, a falta de noção das nossas elites econômicas? Como impedir que a corrupção nos atrase não só alguns pontinhos no IDH, mas, neste contexto aqui, em capacidade e poderio bélico? Como impedir que o gasto inadvertido dos bens públicos não comprometa o fortalecimento das nossas tropas?

Um país deste tamanho e sairemos como retardatários na grande guerra apocalíptica final. É algo que, realmente, me tira o sono.

Imagino um futuro em que os meninos da favela serão treinados para acertar os drones inimigos que sobrevoam e bombardeiam as cidades brasileiras, tal e qual os franco-atiradores treinados para acertar os pombos-correio durante a Primeira Guerra Mundial.

Imagino os trâmites burocráticos, os esquemas de licitação, os editais direcionados, a má vontade da gestão pública, todos estes empecilhos que atravancam a civilização brasileira de algum jeito funcionando e abrindo o caminho para a nossa derrota naquela que seria a guerra derradeira de nossa cultura: o acerto de contas jamais esperado, a provação e o teste de fogo que semeariam entre nós os laços de solidariedade de que tanto precisávamos.

Penso na dificuldade de reposição de uma aeronave abatida em combate, um Super Tucano da FAB, por exemplo, do qual sempre ouvi falar horrores a respeito de sua aviônica.

Penso na lentidão e ineficiência do poder público, na complexidade burocrática e hierárquica que uma ordem teria de percorrer até chegar no seu destino, no pesadelo logístico que uma guerra dessas proporções demandaria, e na falta de compromisso dos envolvidos, que pulariam fora com medo de que sobrassem pra eles caso qualquer coisa desse errado.

Uma catástrofe militar cometida pelo funcionarismo público, e as nossas guarnições apodrecendo em alguma montanha ou em meio ao pântano.

Penso no superfaturamento da guerra, no enriquecimento ilícito dos parasitas do poder, que se refestelam enquanto o povo paga a conta.

Tenho em meu celular aquela fotografia de Don McCullin. A do soldado com o olhar perdido, tirada na Guerra do Vietnã. É o olhar sem esperança dos nossos soldados, que nunca estiveram até então envolvidos em situações de combate real.

Assim tenho estado nos últimos dias. A todo momento tiro o celular do bolso e dou uma checada na foto. Olho para a televisão e não vejo nada. Mal distingo as letras nos jornais, nem mesmo as letras maiores das manchetes. Nenhuma propaganda é capaz de me convencer. O sexo não tem mais graça. O frentista me pede pra conferir os números na bomba de gasolina, e eu apenas meneio com a cabeça, confiando no que ele me diz.

Estou em modo piloto automático, dando caronas pelo Über de 13 a 15 horas por dia, almoçando e jantando fast-food pela metade, nos mesmos drive-thrus de sempre.

O aplicativo é o cronômetro de uma bomba relógio.

Às vezes falo sozinho:

– Acredito piamente que nosso sistema de segurança digital seja mais vazado que a fortaleza do Atlântico, construída pelos nazistas nas praias da Normandia. Desconfio que nossos oficiais na central de inteligência e espionagem sejam menos espertos que o general Maurice Gamelin, e que nossas tropas, até lá, estarão mais tristes e desmotivadas do que os guerreiros de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir. E, pela força dos fatos, também sou levado a crer que nossos equipamentos militares estarão mais obsoletos que a cavalaria polonesa durante a Blitzkrieg, nossas colunas mais desamparadas que o exército napoleônico marchando na Rússia durante o inverno, e, por sua vez, mais abandonadas e perdidas que os texanos no Álamo. Levando em conta, ainda, nossa predisposição para o azar e o acaso, quaisquer planos de batalha nos serão mais desastrosos que a viagem da invencível armada espanhola até a ilha da Bretanha, ou que o desembarque de Kublai Khan no Japão.

Como vai o nosso programa nuclear? O SIVAM vai bem? A nossa Força Aérea já está à altura da dos nossos vizinhos? O espaço aéreo brasileiro continua sendo regulado por empresas civis? Temos munição disponível para quantas horas de guerra? Nossos fabricantes de armamentos e aviões são confiáveis (parece que a Taurus andava bem mal das pernas)? A quantas andam as nossas defesas contra os ICBMs? Os radares estão funcionando direitinho? A patrulha litorânea está em dia? A guarda fronteiriça se encontra devidamente posicionada?

Mas e se os salários começarem a atrasar?

Esses dias dei carona a um professor de História. O tipinho clássico, faculdade de humanas, barba e boina. Pelo teor da prosa, com o rumo da conversa, lá pelas tantas ele achou que eu era um eleitor do Jair Bolsonaro.

Não sei porquê, mas julguei que o sujeito fosse dono de um pensamento deveras curto pra alguém acostumado a pensar a sociedade no tempo: é só porque o Bolsonaro é milico? E ele viu que eu fiquei ainda mais nervoso nessa hora, mudei de marcha, acelerei mais fundo, reclamei da manobra feita pelo motoqueiro.

– Pois o Bolsonaro é justamente o pior tipo de militar que temos neste país! – aumentei o volume de minha voz. – Muito me admira que ele tenha eleitores dentro do exército. Só demonstra quão feia é a corja que nos defenderá no caso de um conflito armado, no futuro, ou então nem tão futuro assim, mas no caso de uma possível ESCASSEZ DE RECURSOS.

Daí pra frente, sabendo que não lidava diretamente com um antagonista seu, tentou me acalmar.

– Veja bem, o exército brasileiro nunca foi derrotado em nenhuma guerra até hoje! Vencemos todas!

– Porque sempre nos aliamos ao lado vencedor. – foi o que respondi a ele. – Puro oportunismo, ou então porque fomos forçados a isso! América para os americanos, doutrina Monroe, Big Stick e o caralho! Acha que eu não sei?

– Temos o melhor exército de selva do mundo! – ele argumentou.

– Até lá já teremos desmatado tudo.

– Pois também nossas unidades de caatinga e cerrado são páreo duro.

– Se estiverem bem alimentadas, é claro. O que será muito difícil, tendo em vista a ESCASSEZ DE RECURSOS.

– Não estou entendendo o seu ponto. Por que perder tanto tempo pensando na guerra que a gente vai perder no futuro? – ele começou a filosofar. – Veja só os pobres na periferia. O governo já decretou guerra contra eles! Só não vê quem não quer, o massacre da população pobre e negra.

– Certo, claro. Aquilo que vocês historiadores vão chamar de colonialismo interno. Tenho leitura, viu, rapaz. – eu disse a ele, com um sorriso histérico. –  Mas não sou de aceitar eufemismos não. Estou falando da colisão de duas forças bélicas, ou mais!, que não descansarão até subjugarem uma a outra. Gente armada dos dois lados, e muitíssimo bem armada! Estou falando de trincheiras, da sua mãe e a minha ficando pra trás na correria, de racionamento de água, comida e energia. Estou falando de campos de prisioneiros, você e eu tendo que procurar sapatos aproveitáveis nos corpos dos cadáveres, tendo de usar roupas de estranhos. Dias e dias sem tomar banho, porra!

O meu ponto, leitores, é que sonho com o Apocalipse (quando sonho). E no Apocalipse não escolheremos de que lado ficar. Não teremos chance alguma. Não há pra onde correr. Nenhum corrimão onde segurar. Nenhum cadeira pra sentar. É impossível parar o trem, mudar de trilho, saltar pela janela.

Só mesmo um milagre… Até lá, vou dirigindo meu Über, espalhando o meu medo, pra que a minha voz chegue em algum lugar, até onde deve chegar: a consciência de nosso povo.

Já que não tenho pra quem ligar, não disponho de uma agenda de contatos importantes, com gente ocupando cargos importantes nos gabinetes certos… Que minha voz percorra então o caminho mais longo, e germine lentamente. Temos pelo menos 100 anos pra mudar as coisas.

Enquanto isso vou pensando: quem serão os nossos algozes? Quem serão os que fincarão sua bandeira sobre o solo brasileiro? Quem alterará o nosso idioma, o hino, e as cores da nossa bandeira?

A cobrança chegará de qualquer jeito, na hora que tiver de chegar. Mais ou menos como a chuva de granizo em Sekigahara, naquela tarde de 21 de outubro de 1600, ensopando o uniforme de 160.000 homens que marchavam bravamente para a luta…

 

 

 

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